sábado, abril 30, 2011

ROBBIE ROBERTSON E FELICE BROTHERS EVOCAM O LEGADO MUSICAL DO THE BAND EM SEUS NOVOS LPs (por Chico Marques)


Sempre que algum ícone pop sai de cena, é comum o jornalismo musical apelar para uma manchete bombástica e meio ridícula: “O Dia Em Que A Música Morreu”. Foi assim quando Buddy Holly morreu, e também com Elvis Presley, John Lennon e mesmo Michael Jackson.

Mas quando o cantor, compositor e guitarrista Robbie Robertson anunciou em 1976, no documentário “The Last Waltz” de Martin Scorsese, que The Band -- a grande banda canadense-naturalizada-americana da qual fez parte -- estava encerrando atividades de forma consensual e pacífica depois de mais de 15 anos de carreira em uma festa com jantar de gala e tudo mais no Estádio Winterland, em San Francisco, nenhum jornalista ousou recorrer a esse clichê.


The Band – que tinha esse nome por ser “a banda” que ajudou Bob Dylan a cunhar (a ferro e fogo) sua persona roqueira depois de anos como um artista folk muito bem sucedido -- era considerada por crítica e público o que havia de mais arrojado e criativo na cena musical dos anos 60 e 70, e se despediu com uma frase lapidar de Robbie: “A estrada se tornou um meio de vida impossível”. A alegação era que tanto ele quanto seus parceiros Garth Hudson, Rick Danko, Levon Helm e Richard Manuel estavam esgotados, e ansiosos por experimentar aventuras musicais diferentes de tudo o que The Band havia realizado até então.


Ma, infelizmente, as carreiras solo dos integrantes de The Band saíram pela culatra e resultaram em fiascos artísticos e comerciais. Para pagar as dívidas desses fiascos, Levon Helm aventou a hipótese de trazer The Band de volta à ativa no início dos anos 1980. Todos toparam na hora, menos Robbie Robertson, que estava satisfeito produzindo discos para amigos como Eric Clapton e trilhas sonoras para os filmes de Martin Scorsese. Além do mais, Robbie se recuperava de muitos anos de uso constante de cocaína e destilados, e – como já havia declarado antes -- queria distancia das rotinas nada saudáveis da estrada.

Então, The Band voltou. Sem Robbie Robertson. Gravaram 3 discos bonitos, mas nada memoráveis. Fizeram tournées irrelevantes, que em nada lembravam os anos de glória do grupo. Nesse meio tempo, em uma crise de depressão aguda, o pianista Richard Manuel cometeu suicídio. No final dos anos 1990, o baixista Rick Danko morreu dormindo depois de uma festa de aniversário repleta de excessos. Foi quando a ficha caiu para Levon Helm: The Band acabara em “The Last Waltz”. O que veio depois disso foi apenas a prorrogação e a disputa de penaltys de um jogo terminado 15 anos atrás.


Mas o legado musical de The Band permanece. O termo “Americana” tão em voga atualmente foi criado a partir da dificuldade em classificar a música deles – que mesclava country, folk, gospel, rock and roll, jazz e blues sem jamais perder sua personalidade musical. Tudo o que eles gravaram entre 1967 e 1975 – incluíndo os discos com Bob Dylan e Muddy Waters -- é fundamental, e pode ser ouvido ainda hoje com muito prazer, pois não ficou datado como a maioria da música produzida na época. Além do mais, as canções de Robbie Robertson sempre tiveram uma grandeza literária e musical indiscutíveis. Seu amigo e parceiro musical Bob Dylan era sempre o primeiro a ressaltar as virtudes de canções lindíssimas como “Unfaithful Servant”, “The Weight”, “Acadian Driftwood” e “The Night They Drove Old Dixie Down”. Não é pouca coisa.



Robbie Robertson custou a embarcar numa carreira solo, até porque nunca achou que sua voz fosse boa o suficiente para segurar um LP inteiro. Sua estréia solo em 1987 -- um projeto caríssimo que David Geffen pagou para ver -- é uma ótima coleção de canções que caberiam em qualquer disco do The Band, mas que vinham embaladas em arranjos estranhamente orgânicos como os que Brian Eno e Daniel Lanois criavam para os discos de Bob Dylan e do U2. Seu segundo LP, “Storyville”, já veio bem diferente, com investigações musicais sobre a música moderna de New Orleans. Em seguida, Robbie – que tem sangue Mohawk – reuniu numa mesma banda artistas com antepassados em várias tribos indígenas e criou o belíssimo “Music For The Native Americans”, uma viagem modernosa inspirada pela música de seus ancestrais, que proseguiu em “Contract From The Underworld With Red Boy”, dessa vez utilizando música eletrônica e uma série de elementos musicais cada vez mais distantes de seu trabalho com The Band e dos fãs mais ferrenhos da banda.


O fiasco comercial desses dois últimos discos fez com que Robbie Robertson ficasse mais de dez anos sem pensar em retomar sua carreira solo. Já que não podia fazer o que queria como artista solo, tratou de continuar como produtor e compositor de trilhas sonoras para o cinema. Mas então, dois anos atrás, numa visita do amigo Eric Clapton a Los Angeles, os dois se reencontraram e fizeram algo que há muito não faziam: tocar juntos num estúdio. Esboçaram algumas canções novas nesses dois ou três dias, e daí seguiram para outros compromissos. Meses mais tarde, ouvindo essas gravações, Robbie ficou assombrado com a qualidade do que haviam feito de forma tão descompromissada. Combinaram um reencontro em Londres e retomaram os trabalhos com o suporte de Steve Winwood. A idéia inicial era fazer um disco assinado pelos dois, como os que Eric havia feito com B B King e J J Cale, mas Eric, generoso como sempre, descartou a idéia. Fez questão que elas seguissem para um disco assinado unicamente por Robbie Robertson, para reativar sua carreira solo com chave de ouro. Então Robbie voltou para Los Angeles, acrescentou mais algumas canções àquelas sessões de gravação, e finalizou esse explêndido “How To Become Clairvoyant” -- que, na essência, lembra um pouco seu LP de 1987, mas ostenta uma leveza musical que inexiste em seus trabalhos solo anteriores, e que era constante nos discos do The Band.

Falando em The Band, e na influência que eles ainda exercem na cena musical americana, é um prazer ver uma banda como The Felice Brothers crescendo disco após disco dentro daquela mesma tradição musical. Se The Band desabrochou no ambiente descontraído da casa cor de rosa de Woodstock em que Bob Dylan e amigos se esconderam entre 1966 e 1968, os Felice Brothers surgiram não muito longe dali, no alto das Montanhas Catskill, no norte do Estado de Nova York.



Filhos de um carpinteiro, os irmãos Ian, James e Simone Felice recebiam em casa todo fim de semana os amigos Greg Farley, Christmas Clapton e David Turberville e saíam pela cidade tocando country, folk, rock and roll e até jazz de forma muito bem humorada em calçadas e lugares abertos. Como eram músicos muito bons e divertidos, começaram a ser convidados para tocar um cidades vizinhas. Não muito tempo depois, já estavam todos morando num pequeno apartamento no Brooklyn e tocando nas ruas de Manhattan, entre as estações do metrô da Rua 42, Union Square e Greenwich Village. O ano era 2005, e os Felice Brothers rapidamente conseguiram um contrato de gravação com um selo independente, Team Love Records, ganhando pouco a pouco projeção na cena independente do país inteiro.


Os Felice Brothers são absolutamente incansáveis. Acabam de lançar seu oitavo LP em seis anos, “Celebration, Florida”, e estão finalmente estreando num selo maior, o Fat Possum, que possui muitos artistas de blues e de punk hardcore. É o trabalho mais experimental da banda até agora. Os acordeons e violinos habituais foram acrescidos de arranjos de metais e um piano bem jazzístico, e as canções falam sobre coisas triviais (“Honda Civic”, “Container Ship”), momentos felizes (“Oliver Stone”, “Best I Ever Had”) e a vida desencanada que levavam em Catskill (“Cus's Catskill Gym”, “Back To The Dancehalls”). Praticamente impossível tentar definir a música dos Felice Brothers em palavras. O jeito é ouvir a banda com atenção e tirar suas próprias conclusões. A música deles é ousada e corajosa, e se você se habituar com ela com certeza vai acabar virando admirador incondicional do trabalho que eles desenvolvem. Comigo, ao menos, foi assim que aconteceu.


É engraçado como essa coisa de viver na estrada tocando cada dia numa cidade afeta cada banda de uma maneira diferente. Para Robbie Robertson, nos tempos do The Band, foi uma experiência terrível. Seu novo disco traz uma canção, “This Is Where I Get Off”, que fala justamente disso, e de como ele teve que deixar seus velhos companheiros de lado por não conseguir seguir em frente. Os Felice Brothers, por sua vez, vivem o extremo oposto disso. Encaram a estrada de forma saudável e não conseguem esconder o prazer de estar cada dia num lugar diferente. Basta dizer que eles até hoje eles promovem seus shows tocando horas antes na calçada em frente aos teatros em que se apresentam à noite.

Alguém aí conhece alguma banda que tope fazer esse tipo de coisa hoje em dia?



HIGHLIGHTS
ROBBIE ROBERTSON - "HOW TO BECOME CLAIRVOYANT"






ENTREVISTA
ROBBIE ROBERTSON



HIGHLIGHTS
FELICE BROTHERS - "CELEBRATION, FLORIDA"




sexta-feira, abril 29, 2011

SENHORAS E SENHORES... ROBBIE ROBERTSON


“Tocamos em Woodstock em 1969, mas não existem imagens nossas no filme. É que Albert Grossman, nosso empresário, não deixou as câmeras nos perturbarem no palco. Ele dizia que um dia nós teríamos um filme só nosso, que aquilo ali era confuso demais. Tínhamos plena confiança nele. E não é que ele estava certo?”


“Quando se faz parte de uma banda como The Band, não dá para seguir em frente com um pneu meio vazio. Não era uma banda de cantor e guitarrista. Se chamava The Band porque todas as partes envolvidas sempre funcionavam de forma extraordinária”


“Música foi a voz da minha geração. Sinto falta da unidade que havia nos meus tempos de juventude. A Guerra do Vietnam e as mortes dos Kennedys e de Martin Luther King mantiveram minha geração unida. Nossa voz era muito forte. É triste ver como tudo aquilo se dissipou e o individualismo predominou.”


“Dizem que Bob (Dylan) era deliberadamente imprevisível e não nos respeitava como banda. Bobagem. Bob tinha é um pouco de medo de ser engolido estando à frente de uma banda. Pensava em si mesmo como um artista folk solo e às vezes nos atropelava. Mas não demorou muito até ele se integrar à banda, e a partir daí tudo começou a funcionar muito bem”


“Esse novo disco começou casualmente em minha casa em Los Angeles, numa visita de Eric Clapton. Somos velhos amigos, tocamos juntos alguns dias e esboçamos algumas composições, mas aí Eric teve que ir embora, e eu fui trabalhar numa trilha sonora para Martin Scorsese. Meses mais tarde, ouvindo aquelas gravações, fiquei impressionado com o que havíamos realizado. Liguei para Eric em Londres e disse: “Acho que temos algo muito interessante aqui”. Ele disse: “Pois eu tenho certeza. Venha já para Londres, vamos continuar o que começamos”. Estou muito orgulhoso do rumo que isso tudo tomou.”



LPS ROBBIE ROBERTSON SOLO
Robbie Robertson (1987)
Storyville (1991)
Music For The Native Americans (1994)
Contract From The Underworld With Red Boy (1998)
How To Become Clairvoyant (2011)

LPS COM THE BAND
The Basement Tapes (com Bob Dylan 1967)
Music From Big Pink (1968)
The Band (1969)
Stage Fright (1970)
Cahoots (1971)
Rock Of Ages (1972)
Moondog Matinee (1973)
Woodstock Album (com Muddy Waters 1974)
Planet Waves (com Bob Dylan 1974)
Before The Flood (com Bob Dylan 1974)
Northern Lights Southern Cross (1975)
Islands (1977)
The Last Waltz (1978)
WEBSITES OFICIAIS
http://www.robbie-robertson.com/
http://www.thebandmusic.net/

SENHORAS E SENHORES... THE FELICE BROTHERS


“Somos uma banda country-folk da cidade de Nova York. Muita gente acha estranho quando nos autodefinimos assim, mas... fazer o que?”


“The Felice Brothers começou como uma banda de rua porque, antes de mais nada, a gente precisava comer. Nos tempos mais bicudos, bem no começo, era assim que a banda se aguentava em pé. Tocávamos um do no mercado, outro dia no metrô, cada dia num lugar diferente”.


“Muita gente acha um absurdo termos gravado oito cds em apenas seis anos, mas o caso é que todos na banda são compositores. Para nós, nunca falta material novo e original para gravar.”


“Não circulamos muito pela cena musical, pois estamos sempre em tournée. Os artistas com quem nos relacionamos são os que abrem os nossos shows, que são sempre amigos de longa data, como Taylor Hollingsworth e Willy Mason. Mas não somos anti-sociais. Só não temos muito tempo livre para isso.”


“Somos essencialmente uma banda de rua, mesmo quando tocamos em palcos tradicionais. Nossa comunicação é sempre direta com o público, olho no olho. Acho que jamais conseguiremos ter uma atitude cool com nosso público. A gente simplesmente não funciona assim”



LPS THE FELICE BROTHERS
Iantown (2005)
Through These Reigns And Gone (2006)
Tonight At The Arizona (2007)
Adventures Of The Felice Brothers Vol.1 (2007)
The Felice Brothers (2008)
Yonder Is The Clock (2009)
Mixtape (2010)
Celebration, Florida (2011)

WEBSITE OFICIAL

http://www.thefelicebrothers.com/

terça-feira, abril 26, 2011

HUGH LAURIE E MARCIA BALL LEVAM A MÚSICA DE NEW ORLEANS PARA UM PÚBLICO MAIS AMPLO (por Chico Marques)


Pode até parecer exagero, mas certamente não é absurdo dizer que a música da região de New Orleans fez mais amigos pelo mundo afora nos últimos 50 anos do que em território americano. A cena do blues britânico, por exemplo, deve tanto a músicos do Estado da Louisiana -- como o gaitista Slim Harpo e guitarristas como Pee Wee Crayton e Guitar Slim – quanto aos grandes medalhões do gênero em Memphis e Chicago. A cena musical caribenha não seria o que é hoje se jamais tivesse tomado contato num determinado momento com o swing contagiante de Earl King, Snooks Eaglin e Fats Domino. E o jazz eletrificado de Miles Davis e Cia. só escapou dos muitos becos sem saída surgidos na primeira metade da década de 1970 porque bebeu na fonte inesgotável de ritmos e cores musicais que a Crescent City – apelido tradicional de New Orleans -- sempre ostentou.

Como bem notou o saudoso crítico de jazz do The New York Times, Robert Palmer, apesar de New Orleans ficar bem na foz do Rio Mississipi, o blues da Louisiana é um primo meio distante do blues da região do Delta, onde o gênero teria nascido. Sua afinidade maior sempre foi com o blues de Memphis e Kansas City. O fato é que a música que vem do “melting pot” de New Orleans descende do jazz, e é muito marcada tanto pelos ritmos africanos que eram praticados em Congo Square quanto pelo piano sempre afinado com tubas, trombones, trumpetes e saxofones. Na Louisiana -- e só lá -- quem toca guitarra ou harmônica é obrigado a fugir da musicalidade rudimentar do Delta do Mississipi para buscar harmonias mais complexas -- sob o risco de ficar desenturmado musicalmente.


O blues da Louisiana se mesclou muito facilmente com o jazz e o rhythm & blues, e isso sempre atrapalhou a classificação das diversas modalidades musicais da cidade nas paradas de sucesso nacionais. Nos anos áureos do rock and roll, ninguém sabia dizer ao certo se artistas como Earl King e Fats Domino podiam ser classificados como tal. Na dúvida, os dois acabaram preteridos. No auge do sucesso de Aretha Franklin e Otis Redding, ninguém sabia dizer ao certo se Irmã Thomas e Allen Toussaint também eram artistas soul. Na dúvida, também ficaram de lado. Só na explosão funk dos anos 70 não houve dúvidas: os veteranos The Meters e os emergentes The Neville Brothers eram o que havia de melhor e mais representativo no gênero. Daí em diante, nunca mais a música de New Orleans ficou fora do mapa musical pop americano.

Se somarmos isso à consolidação do New Orleans Jazz & Heritage Festival como um grande evento cultural internacional ao longo dos últimos 25 anos, e à desistência do pessoal da revista Billboard em fazer a música da cidade caber em nomenclaturas pouco adequadas e sempre desconfortáveis, podemos entender o prestígio artístico que o Estado da Louisiana ostenta atualmente e o fascínio que desperta em gente no mundo inteiro.

Que o digam alguns forasteiros ilustres, como o inglês Hugh Laurie e a texana Márcia Ball.


Hugh Laurie é um admirador incondicional da música de New Orleans há muitos anos. Todo mundo o conhece como o idiossincrático Dr. Gregory House do seriado de TV “House MD”, mas poucos sabem que ele começou sua carreira como músico e comediante na BBC-TV, onde fez por mais de dez anos um show de muito sucesso ao lado de seu grande amigo e padrinho artístico Stephen Fry. Nascido em Oxford, em 11 de Junho de 1969, Hugh Laurie trocou seu sotaque da Velha Inglaterra pelo da Nova Inglaterra, e foi tentar a sorte no cinema americano, mudando de mala e cuia para Los Angeles. Depois de alguns filmes infantis, e outros que quase ninguém viu, deixou o cinema de lado para tentar a sorte na telinha. Hoje é o ator mais bem pago da TV americana. Mais até que o ruidoso Charlie Sheen.

Fiel ao espírito que fez dele um artista completo na saudosa dobradinha com Stephen Fry, Hugh Laurie nunca deixou a música sair de sua vida artística. Insistiu com os produtores de “House MD” para que mantivessem num canto do apartamento do turbulento doutor um piano meia cauda e algumas guitarras e violões pendurados na parede. Vez ou outra, quando não está assistindo corridas de Monster Trucks ou seriados médicos de quinta categoria, o Dr. House sai tocando algum dos instrumentos em sua sala de estar. E como essas intervenções musicais sempre tiveram uma boa acolhida do público, não foi difícil convencer os executivos da Warner Bros Records a contratá-lo para gravar.


Daí nasceu “Let Them Talk”, seu LP de estréia, um mergulho fascinante na história do blues e do rhythm & blues de New Orleans. Produzido pelo talentosíssimo Joe Henry com apoio de alguns dos melhores músicos de estúdio do extremo sul dos Estados Unidos, Laurie abre seu recital bluesy com uma versão instrumental ao piano da centenária “St. James Infirmary”, para em seguida dar panorâmicas (não necessariamente cronológicas) na diversidade musical da cidade ao longo de todo o Século 20. "Let Them Talk" lembra um pouco o projeto “Going Back To New Orleans”, de Dr. John, mas não é tão pretensioso quanto. Pretende – e consegue -- ser um trabalho de blues honesto, mas também denso, climático, aventuresco, ainda que sempre em tom menor – recurso que facilita a colocação da voz pouco potente, mas muito expressiva, de Laurie. Uma bela estréia, que conta com participações muito inspiradas de Dr. John, Allen Toussaint, Irmã Thomas e Tom Jones.


Já Márcia Ball é um caso à parte. Nascida em 20 de Março de 1949 na cidade de Orange -- epicentro do chamado “triângulo texano”, que incluí parte do Texas e parte da Louisiana, de onde vieram grandes figuras como Janis Joplin, Johnny & Edgar Winter, Clifton Chenier e Lonnie Brooks --, ela aprendeu a tocar piano ainda menina, e aos poucos foi dominando os principais estilos do blues: o barrelhouse, o stride e, claro, o boogie woogie. Marcia Ball nunca quis ser propriamente uma artista de blues. Sua música é deliciosamente híbrida e tipicamente de New Orleans. Cada um dos LPs que ela gravou ao longo dos últimos 30 anos é uma aventura musical diferente, onde ela sempre exercita suas habilidades como pianista, compositora, cantora e band leader.



Seu novo trabalho para a Alligator Records, “Roadside Attractions”, não é uma exceção à regra. Com uma banda afiada e um repertório cheio de atitude e sem altos e baixos, Márcia Ball não deixa dúvidas de que, aos 63 anos de idade, continua esbanjando jovialidade e se renovando ano após ano. Quem a viu ao vivo em São Paulo com sua banda dois anos atrás sabe exatamente do que estou falando. Podem ter certeza que o Ball de seu sobrenome não está lá à toa.


Felizmente, foi-se o tempo em que grandes artistas de New Orleans e outros centros musicais do sul dos Estados Unidos tinham que se mudar para a Europa para conseguir reconhecimento artístico e cachês decentes. Hoje é possível para uma artista como Márcia Ball, por exemplo, fixar residência em Austin, Texas, e circular boa parte do ano só pelo circuito de nightclubs e roadhouses americanos e canadenses, com casa cheia todas as noites. Assim como também é possível que um grande astro do horário nobre da TV americana como Hugh Laurie possa incorporar seu gênero musical favorito -- ainda que pouco popular -- às preferências pessoais de seu personagem mundialmente famoso, e levar isso ao grande público sem maiores traumas.

Para todos aqueles que ainda hoje acham que blues é música de gueto -- de interesse apenas para folcloristas e arqueólogos musicais --, aí estão Márcia Ball e Hugh Laurie para provar justamente o contrário.


HIGHLIGHTS
HUGH LAURIE - "LET THEM TALK"





ENTREVISTA
HUGH LAURIE



HIGHLIGHTS
MARCIA BALL - "ROADSIDE ATTRACTIONS"




sábado, abril 23, 2011

SENHORAS E SENHORES... MARCIA BALL


“Adoro fazer o que faço, e me sinto muito à vontade na estrada. Viajar, conhecer gente nova, tocar ao vivo 4 noites por semana no mínimo... é comigo mesma!”


“Minhas composições são sempre autobiográficas. Mas isso não quer dizer que as coisas tenham acontecido exatamente daquele jeito. Elas são sempre a minha versão da realidade.”


“Gravar discos às vezes não é fácil, pois nem sempre o resultado final sai do jeito que eu gostaria. Mas esses últimos trabalhos para a Alligator saíram perfeitos, um melhor que o outro. Nada como gravar o que a gente quer gravar, e sentir que é exatamente isso que o público quer escutar”.


“Pinetop Perkins era um doce de pessoa. Sempre vinha nos ver tocar, e adorava subir ao palco para tocar conosco, apesar de seus 96 anos de idade. Estava sempre muito feliz no palco. Muito triste constatar que isso nunca mais vai acontecer."


“De todos os artistas com quem já toquei, meus favoritos com certeza foram Irma Thomas e Dr. John. São enormes, maravilhosos. Artistas com quem ainda nunca contracenei, mas espero ansiosamente pelo dia em que isso acontecer? Eric Clapton, com certeza.”



LPS MARCIA BALL SOLO
Circuit Queen (1978)
Freda & The Firedogs Live (1980)
Soulful Dress (1984)
Hot Tamale Baby (1985)
Gatorhythms (1989)
Blue House (1994)
Let Me Play With Your Poodle (1997)
Sing It! (with Irma Thomas and Tracy Nelson 1998)
Presumed Innocent (2001)
So Many Rivers (2003)
Live! Down The Road (2005)
Choices And Changes (2007)
Peace, Love And BBQ (2008)
Roadside Attractions (2011)

WEBSITE OFICIAL
http://www.marciaball.com/

SENHORAS E SENHORES... HUGH LAURIE


“Sento ao piano achando que vou tocar cinco ou dez minutos e, quando me dou conta, já são 3 da manhã.”


“Em casa, sempre gostei de tocar com meus 3 filhos. Um toca saxofone, outro bateria, e minha filha toca clarinete. Somos uma espécie de Família Partridge à moda de New Orleans. Só falta agora eu conseguir convencer minha mulher a cantar.”


“Muddy Waters é meu músico favorito. Conheço a discografia dele inteira. Nunca ouvi tanto um artista de blues quanto ele.”


“Se tivesse que escolher minha canção pop favorita, acho que seria “Brown Eyed Girl”, de Van Morrison. É a canção favorita da minha mulher.”


“Agora que virei romancista e consegui gravar um disco com os melhores músicos de New Orleans, para mim só ficou faltando realizar um sonho: ser convidado para fazer um vilão num filme de James Bond.”



LPS HUGH LAURIE SOLO

Let Them Talk (2011)


WEBSITES OFICIAIS

http://www.hughlaurie.net/
http://www.hughlaurie.co.uk/

quarta-feira, abril 20, 2011

O RENASCIMENTO DO SOM PSICODÉLICO DA SAN FRANCISCO DOS ANOS 60 NOS NOVOS TRABALHOS DO HOT TUNA E DA STEVE MILLER BAND (por Chico Marques)


Lendo recentemente os obituários de Owsley "The Bear" Stanley – lendário engenheiro de som honoris causa dos shows do Grateful Dead, que acumulava as funções de conselheiro espiritual e químico diletante nos Acid Tests que a banda costumava promover --, fiquei pensando no que foi feito da magia que tomava conta não só dos shows das bandas psicodélicas, mas também do bairro de Haight Asbury e de toda a comunidade artística que morava ou circulava por lá.

San Francisco, como todos sabem, sempre foi berço de costumes libertários na ensolarada Califórnia -- nada a ver com o narcisismo corporativo da Grande Los Angeles e com o “zensurfismo” de San Diego. É uma tradição que remonta aos primórdios da cidade, que, desde a Era do Ouro, recebe de braços (mais ou menos) abertos a fauna mais variada de desalinhados da América – um fenômeno que se acentuou no pós-guerra, com o advento da Beat Generation, e que ganhou contornos ainda mais ostensivos na década de 1960, com a imigração de milhares de jovens de todos os cantos da América em busca de uma vida descomprometida dos valores do capitalismo e da caretice nouveau riche da América empreendedora.



Obviamente, a imensa maioria dos que chegavam a San Francisco todos os dias nos anos de explendor do “flower power” só queria mesmo se divertir no parque de diversões farmacológico e musical em que a cidade havia se transformado. Desnecessário dizer também que o “sonho americano hippie” morreu sufocado pelo crescimento avassalador do tráfico de drogas e da criminalidade na cidade – como pode ser visto ainda hoje em filmes como “Bullitt”, com Steve McQueen, e em séries de TV da época, como “San Francisco Urgente”, que lançou Michael Douglas ao estrelato.

Pois bem: passados quase 45 anos do “Verão do Amor” de 1967, o charme arrebatador do "San Francisco Sound" deixou de ser um segredo guardado a sete chaves. As sonoridades etéreas e envolventes -- comuns a grupos como Grateful Dead, Quicksilver Messenger Service, Jefferson Airplane, New Riders Of The Purple Sage e It´s A Beautiful Day – foram facilmente dignosticadas dentro do universo musical do folk e do bluegrass, que, mesclados à música oriental e ao jazz, deram naquele jeitão curioso e meio displicente de tocar dos músicos da cidade.



Mas, voltando aos obituários de Owsley "The Bear" Stanley, o bonitão da foto acima, a questão que ainda persiste (para mim, pelo menos) é: Faz sentido nos dias de hoje creditar parte dessa personalidade musical do "San Francisco Sound" ao que na época era divulgado como “uma nova consciência coletiva” pelos pensadores pop? Eu gostaria de acreditar que sim, que aquele bando de malucos maravilhosos da Contracultura eram na verdade Deuses de algum Olimpo Lisérgico que abusaram de certas substâncias e, por algum acidente de percurso, vieram parar no Norte da California meio que por engano...

Mas deixando a fenomenologia psicodélica de lado, e olhando para trás com algum distanciamento empírico, o caso é que existe uma explicação lógica e nada mística para tudo isso. O "San Francisco Sound" soa estranho e envolvente por ser rock and roll tocado por músicos que só sabiam tocar instrumentos acústicos, e que estavam experimentando instrumentos elétricos pela primeira vez. Para eles, as guitarras tinham que ter sempre uma sonoridade bem aberta, como se fossem banjos ou mandolins. As alavancas eram completamente indispensáveis. E o volume tinha que estar sempre nas alturas. Como a maioria desses músicos que migraram para a cena musical da cidade vinham de vários cantos do país e de cenas musicais bem distintas umas das outras, eles trataram de adequar suas bagagens musicais à cor local de San Francisco. E, meio sem querer, reinventaram o rock and roll e o blues de uma maneira muito peculiar.


Aliás, o blues é um capítulo à parte no "San Francisco Sound". Todas as grandes bandas da Califórnia sempre fizeram questão de ter um número ou outro de blues em seu repertório, ainda mais depois que a Butterfield Blues Band explodiu na cena americana em 1966. Era um gênero que já fazia parte do cardápio musical da região, na medida em que muitos bluesmen veteranos reumáticos -- que haviam deixado o vento gelado de Chicago pelo clima ameno da Costa Oeste, e se estabelecido em Oakland, do outro lado da Baía de San Francisco -- começaram a ser descobertos por esses jovens músicos da cidade. Sobreviviam muitas vezes tocando na noite de Oakland e dando aulas durante o dia. Com isso, meio que acidentalmente, formaram toda uma geração de guitarristas, pianistas, gaitistas e cantores de blues à beira mar.


Jorma Kaukonen é um desses jovens guitarristas. Mergulhou de cabeça no folk blues e virou talvez a maior autoridade na obra musical do bluesman Reverend Gary Davis em toda a América. Como era também admirador do jazz de Charlie Christian e Django Reinhardt, Jorma esboçou seu estilo mesclando essas duas vertentes musicais. Daí, quis o destino que ele viesse a participar de uma banda de rock and roll – nada menos que o recém-formado Jefferson Airplane, cujo nome ele próprio escolheu, e onde conheceu seu parceiro e contrabaixista Jack Casady. De LP em LP do Airplane, Jorma e Jack, que eram exímios músicos acústicos, ajudaram a redimensionar o papel da guitarra elétrica e do contrabaixo elétrico na música da época. Um pouco mais adiante, já nos anos 1970, os dois criaram um projeto paralelo ao Airplane chamado Hot Tuna, que começou como um trio acústico e rapidamente evoluiu para o formato power-trio elétrico, à moda do Cream e do Jimi Hendrix Experience, bem ao gosto da época. Gravaram uma série impecável de 8 LPs para a RCA durante os anos 70, e mais alguns em selos independentes nos 1980 e 1990. Trabalham juntos sempre que possível.



Já Steve Miller é um caso diametralmente oposto. Fascinado pelo blues desde garoto em Milwalkee e Houston, circulou bastante pela noite de Chicago atrás de experiências e vivências musicais. Trabalhou com Buddy Guy e Jimmy Reed, e descobriu que poderia cantar blues quando ouviu o cantor e guitarrista J B Lenoir, que, assim como ele, tinha uma voz fraca e pouco encorpada, fugindo ao arquétipo do blues shouter clássico. Veio para San Francisco no vácuo da Paul Butterfield Blues Band, reuniu um grupo de músicos – entre eles, Boz Scaggs e Gary Mallaber -- numa banda que alternava material próprio com o papel de “banda cavalo” para vários bluesmen que passavam por San Francisco. Apesar do assédio constante dos “A&R Men” de várias gravadoras, demorou mais de um ano até a Steve Miller Band assinar com uma delas – no caso, a Capitol. Estreou finalmente em 1967, e se notabilizou logo de cara por incorporar sintetizadores ao blues e ao rock and roll antes de todos os seus colegas de geração, em LPs clássicos como “Children Of The Future”, ‘Sailor” e “Brave New World”, todos de 1968. Sumiram das paradas na virada dos 60 para os 70, mas voltaram com uma popularidade impressionante em meados dos anos 1970, em ‘The Joker” e “Fly Like An Eagle”, até pararem de gravar material próprio depois do fisco comercial do ótimo LP “Wide River”, em 1992.

Pois bem: tanto o Hot Tuna quanto a Steve Miller Band estão de volta com álbuns muito bons, que servem para manter o "San Francisco Sound" vivo e seu charme musical intacto.


”Steady As It Goes”, novo e surpreendente trabalho do Hot Tuna, vem cercado de grandes expectativas. É o segundo LP de estúdio da banda em 30 anos, e o primeiro com material inédito em 20. Agora no formato de um quinteto -- Jorma Kaukonen na guitarra e vocais, Jack Casady no contrabaixo, Barry Mitterhoff no mandolin, Larry Campbell no violino e Skoota Wagner na bateria --, nossos bravos rapazes setentões passeiam pelo passado musical glorioso da banda em 12 números acústicos e elétricos muito vigorosos, que incluem dois blues clássicos de Reverend Gary Davis devidamente repaginados, e ainda evocam a herança musical do Jefferson Airplane em dois rocks poderosos com participação da cantora Teresa Williams -- cujo timbre lembra, e muito, o de Grace Slick. “Steady As It Goes” foi gravado nos Estúdios de Levon Helm em Woodstock, NY, e celebra a amizade musical e pessoal de 50 anos entre Kaukonen e Casady, que mantém juntos uma Escola Livre de Música no interior de Ohio chamada Fur Peach Ranch. "Steady As It Goes" tem um jeitão de disco de despedida da banda. Mas pode ser engano. Afinal, Kaukonen e Casady são incansáveis, vai saber o que eles vão resolver fazer no ano que vem. Como eles próprios declaram na letra de “Second Chances”, a mais bela canção do disco, “for life is but a highway beneath tomorrow skies”.


Já ‘Let Your Hair Down”, da Steve Miller Band, vem na mesma linha de “Bingo!”, lançado no fim do ano passado. Composto por dez números bem ligeiros gravados nas mesmas sessões de “Bingo!”, sob a supervisão luxuosa do produtor Andy Johns, ‘Let Your Hair Down” tem seu repertório focado em blues e rhythm & blues clássicos de outros autores – todos revistos, atualizados, e com a sonoridade sempre jovial da Steve Miller Band. Aliás, esses dois LPs formam uma trinca impecável com o excelente “Living In The 20th Century”, de 1987. Não há aqui nenhuma novidade. Apenas a surpresa de ouvir Steve Miller cantando com a mesma voz de menino aos 68 anos de idade e tocando com a mesma urgência, a mesma destreza e o mesmo prazer ao longo desses vitoriosos 45 anos de carreira. Steve não tem mais nada a provar a quem quer que seja. Se quiser continuar nos brindando com novos trabalhos rápidos e rasteiros como esse daqui por diante, seguindo essa linha “mais do mesmo”, será sempre benvindo. Acreditem, não é pouca coisa.


Enfim, não dá para negar que alguma coisa muito interessante – e muito louca -- aconteceu em San Francisco na segunda metade dos anos 1960, tanto que seus ecos permanecem por aí até hoje, intactos, por mais que muitos dos ideais cultuados na época tenham sucumbido à dura realidade. Jorma Kaukonen afirma que, se não tivesse embarcado no avião dos Jeffersons, talvez nunca tivesse sido nada além de um músico folk obscuro. Steve Miller diz que, se não tivesse caído de paraquedas nas noites do Fillmore, talvez estivesse até hoje tocando blues na noite de Chicago e sofrendo de reumatismo.

Sendo assim, brindemos aos visionários que semearam a Cultura Pop de San Francisco pelo mundo afora, e que já se foram. Um brinde a Bill Graham, dono do Fillmore e do Winterland, notável agitador cultural. Um brinde a Hunter S. Thompson, cronista do apogeu e queda da Era Psicodélica. Um brinde a Ralph J. Gleason, crítico de jazz genial que fundou o jornal Rolling Stone e reinventou a imprensa musical. Um brinde ao Dr. Timothy Leary, pai do uso terapêutico do LSD e dos softwares alucinógenos. Um brinde a todas as bandas psicodélicas daquela época, e também a todas que mantém vivo até hoje o espírito do "San Francisco Sound".

E, claro, um brinde ao maravilhoso Owsley "The Bear" Stanley. Que as ninfas recepcionistas do tal Olimpo Lisérgico o recebam bem, e cuidem dele. Nosso ursinho merece do bom e do melhor.




HIGHLIGHTS
HOT TUNA - "STEADY AS SHE GOES"





ENTREVISTA:
JORMA KAUKONEN



HIGHLIGHTS
STEVE MILLER BAND - "LET YOUR HAIR DOWN"