segunda-feira, julho 04, 2011

A VOLTA TRIUNFAL DE UM ALTO SACERDOTE DA GUITARRA E QUATRO DE SEUS APÓSTOLOS MAIS APLICADOS (por Chico Marques)


De todos os formatos que o rock and roll vem experimentando desde 1955, o mais menosprezado deles é, sem dúvida alguma, o rock instrumental.

Ele surgiu numa grande febre musical que durou entre 1958 e 1963, bem no momento de entressafra entre a primeira e a segunda gerações do rock and roll, quando as figuras mais lascivas da cena roqueira americana foram retiradas da cena uma por uma pelas forças conservadoras.

Como todos devem lembrar, só Elvis Presley foi preservado – e mandado para a Coréia, para fazer de conta que estava lutando pela pátria.

Chuck Berry foi em cana por fraude no Imposto de Renda. Jerry Lee Lewis, execrado pela opinião pública por pedofilia depois de casar-se com sua prima de 13 anos de idade. E Little Richard... bem, Little Richard foi “convidado” a parar de dar “mau exemplo” às novas gerações com sua conduta escancaradamente afeminada, e virou o pastor batista mais bipolar e escandaloso da história na cena musical gospel.

Apesar de tudo isso, esse breve período entre 1958 e 1963, em que números instrumentais conseguiam emplacar nos primeiros postos da Billboard, foi de uma riqueza musical ímpar, apesar de pouco lembrado pelos historiadores do rock and roll.

Bandas instrumentais que até então eram comandadas por pianistas ou saxofonistas, de uma hora para outra passaram a ter guitarras na linha de frente e viraram febre nacional. De repente, toda cidade em qualquer canto do país tinha a sua, e elas serviam tanto como “bandas cavalo” para cantores de diversos gêneros diferentes que se apresentassem pela cidade quanto como bandas para animar festas dos mais diversos tipos.

Foi nessa onda que surgiram em cena grupos de destaque nacional como Johnny & The Hurricanes e The Ventures e músicos geniais como Link Wray e Duane Eddy, que influenciaram todos os guitarristas daquela época – vide os discos instrumentais de artistas de blues insuspeitos como Freddie King e Albert Collins do início dos anos 1960 – e desencadearam a febre da surf music instrumental através de grandes bandas como Dick Dale & The Del-Tones e The Surfaris.

De todos esses pioneiros do rock instrumental, o mais bem sucedido foi, sem dúvida, Duane Eddy, que emplacou quase 20 singles no Top 40 da Billboard popularizando o “twang” – jeito de tocar guitarra muito peculiar, usando o “tremolo” no uso contínuo das três cordas superiores para assim criar um som envolvente e hipnótico.

Apesar de ter sido engolido pelo advento dos Beatles, dos Rolling Stones e de tudo mais que veio na segunda metade dos anos 60, a verdade é que o rock instrumental nunca morreu.

Seu legado permanece vivo nas palhetas da maioria dos guitarristas do sul dos Estados Unidos -- particularmente dos que vivem nos estados que fazem fronteira com o México.

Vamos trazer hoje para vocês cinco guitarristas especialistas em twang.

Dois – Jimmie Vaughan e Jimmy Thackery – com uma ligação muito intensa com esse formato musical, apesar de serem músicos extremamente versáteis e difíceis de classificar.

Outros dois – Tab Benoit e Tommy Castro – com uma relação menos estreita, mas com uma afinidade muito respeitosa por todo esse legado musical.

E, para completar o quadro, temos também o disco de retorno do lendário Duane Eddy. O primeiro depois de mais de duas décadas sem entrar num estúdio de gravação.

Vamos a eles:




















JIMMIE VAUGHAN
PLAYS MORE BLUES, BALLADS AND FAVORITES
Como guitarrista, Jimmie Vaughan é a delicadeza em pessoa – o extremo oposto de seu turbulento irmão, Stevie Ray. Econômico nos ataques, craque no “twang” e sempre contundente no stacatto em sua Telecaster, ele se destacou, juntamente com o cantor e gaitista Kim Wilson, à frente dos Fabulous Thuderbirds em 4 discos espetaculares para o selo inglês Chrysalis gravados entre 1979 e 1982 – que não venderam quase nada fora do Texas e da Inglaterra, mas fizeram da banda os queridinhos da crítica dos dois lados do Atlântico. Sobreviveram na míngua, sem contrato com nenhuma gravadora, entre 1983 e 1986 – justamente o período em que Stevie Ray explodiu nacionalmente com 3 discos de blues rock de altíssima combustão. Resultado: Stevie Ray acabou fornecendo o passaporte para o retorno de Jimmie e dos TBirds num disco explosivo chamado “Tuff Enuff”, produzido pelo guitarrista inglês Dave Edmunds, que, para surpresa geral, vendeu mais de um milhão de cópias e levou a banda finalmente ao estrelato. Pena que, com o estrelato, tenha vindo junto a obrigação de fazer discos que vendessem mais ainda que "Tuff Enuff", e que fossem cada vez menos aventurescos musicalmente. Então, em 1989, logo após a morte do irmão Stevie Ray num acidente de helicóptero, Jimmie decidiu cair fora da banda e tentar uma carreira solo. E que carreira solo! Gravou apenas 6 discos desde então, um melhor que o outro, mesclando blues, rock and roll e country music à moda do Texas em projetos aparentemente descompromissados – como esse “Jimmie Vaughan Plays More Blues, Ballads and Favorites” --, onde se revela um excelente band leader em uma banda que lembra uma versão extendida dos Fabulous Thunderbirds, só que com muitos metais. Não é o tipo de disco que vá agradar aos fãs do beat desgovernado de Stevie Ray, com o Double Trouble correndo atrás dele o tempo todo. Mas vai agradar em cheio aos que gostam de rock and roll tocado com muita malandragem e com uma sintonia muito fina entre todos os músicos envolvidos. Ouçam Jimmie Vaughan e entendam porque o Texas produz a melhor música de beira de estrada do mundo.




















JIMMY THACKERY & THE DRIVERS

FEEL THE HEAT
Jimmy Thackery é um velho conhecido de todos nós. Depois de passar os anos 1970 e 1980 defendendo o posto do guitarrista do grupo de roadhouse blues The Nighthawks em exatos 20 LPs, ele decidiu se aventurar à frente de seu próprio power trio, The Drivers -- que sempre teve uma ótima acolhida de público mas nunca conseguiu entusiasmar a crítica, que o achava um guitarrista exagerado e um cantor deficiente. Pois essas críticas parecem ter incomodado Thackery a ponto dele rever algumas de suas posturas musicais. Começou a compor canções que exigissem mais dele como cantor e tratou de reduzir o tempo dos números para poder contracenar melhor com os músicos de sua banda. Desde então, Thackery produziu dois LPs muito bons, “Solid Ice” (2007) e “Inside Tracks” (2008), com os quais esse “Feel the Heat” forma uma trinca impecável. Claro que isso não o impede de, vez ou outra, atacar com números instrumentais deliciosos como “Hang Up & Drive”, que lembra um pouco “Scuttle Bootin´”, de Stevie Ray Vaughan com o Doublé Trouble, e também nos remete de volta aos anos de ouro dos Nighthawks. "Feel The Heat" traz também momentos acústicos bem aventurescos como “Take My Blues” e números repletos de twang, à moda de seu herói musical Duane Eddy, como “Bluephoria”. Trocando em miúdos: é mais uma bela demonstração de música americana de beira de estrada de primeira, onde blues, rockabilly, jazz, bebop, and surf music se misturam sem fazer a menor cerimônia.




















TAB BENOIT

MEDICINE
Quando Tab Benoit lançou seu primeiro LP, “Nice & Warm, quase 20 anos atrás pelo selo independente texano Justice Records, todo mundo que ouviu percebeu logo de cara que estava diante de um artista original, e não apenas mais um guitarrista espalhafatoso brigando pela vaga de guitarrista mais rápido do Oeste deixada em aberto com a morte prematura de Stevie Ray Vaughan. Seu mix de blues, rock and roll e cajun music era de uma intensidade incomum, e sua atitude como músico era incansável, tocando 300 noites por ano tanto em cidades grandes quanto cidades pequenas, e sempre se colocando à disposição de qualquer pequena emissora de rádio que se dispusesse a abrir algum espaço para ele. Com isso, seu discos começaram a alcançar facilmente a marca de 50 mil cópias vendidas -- nada mal para um artista independente -- e os grandes selos começaram a crescer o olho nele. Mas Tab Benoit preferiu permanecer independente. Gravou LPs ótimos para a Vanguard, Rykodisc e agora para a Telarc Blues, sempre com controle artístico completo sobre seu trabalho. “Medicine” é seu primeiro disco de estúdio em quatro anos, depois de se dedicar intensamente à sua ONG “Voice Of The Wetlands”, criada para angariar fundos para as regiões da Louisiana mais afetadas pelo Furacão Katrina e ajudar a recuperá-las sem desfigurar suas feições originais – Benoit é da cidade de Houma, a 50 kilômetros de New Orleans. Pois aqui em "Medicine" ele une forças ao guitarrista e também compositor Anders Osborn, e os dois convocam músicos de primeira como o tecladista Ivan Neville (dos Neville Brothers), o violinista Michael Doucet (do Beausoleil) e o baterista Brady Blade, desfilando um repertório que comporta praticamente todas as variantes musicais do Deep South americano -- do soul rasgado de “Next To Me” e “Sunrise”, passando pelo cajun impecável de “Can´t You See” e “Mudboat Melissa” para desaguar na hendrixiana faixa título. Sempre esbanjando toneladas de swing, tanto nos vocais quando na guitarra. Para quem ainda não conhece Tab Benoit, “Medicine”, é tanto um excelente ponto de partida quanto um destino sem a menor contra indicação.




















TOMMY CASTRO

PRESENTS THE LEGENDARY RHYTHM & BLUES REVUE LIVE!

Quando o ótimo cantor e guitarrista Tommy Castro comemorou seus 10 anos de carreira solo com o disco “Live At The Fillmore” (2000), muita gente se impressionou com sua destreza em combinar o heavy blues acelerado de seu quarteto com intervenções intensas de uma sessão de metais totalmente endiabrada, com quatro honkers de primeira. O motivo desse estranhamento é que nem mestres como Philip Walker e Albert King ousavam trabalhar em uptempo com uma banda tão extensa, já que a chance de alguma coisa dar errado num improviso ou outro é sempre muito alta. Mas isso, pelo visto, nunca intimidou Tommy Castro, nascido há 55 anos em San José, Califórnia, e escolado musicalmente na gloriosa San Francisco, onde vive há mais de 30 anos. Depois de construir sua carreira na Blind Pig Records, Castro agora é uma das estrelas do elenco da Alligator Records, que decidiu que estava mais do que na hora dele repetir a dose daquele clássico disco ao vivo, só que agora com convidados ilustres que seguiram pipocando nos palcos de vários shows de sua última tournée – entre eles, Janiva Magness, Sista Mônica Parker, Debbie Davies, Rick Estrin e Joe Louis Walker. Deu nesse triunfal e irremediavelmente festivo “Tommy Castro Presents...”, uma dose cavalar de soul e blues acelerado de tirar o fôlego de qualquer um. Seu mentor artístico, o saudoso guitarrista Mike Bloomfield, deve estar orgulhoso de seu pupilo. Onde quer que esteja.




















DUANE EDDY
ROAD TRIP
O que dizer quando uma das figuras mais emblemáticas da era de ouro do rock and roll resolve gravar um disco depois de 24 anos de silêncio? Aos 72 anos de idade, Duane Eddy, grande herói da twang guitar da virada dos anos 1950 para os 1960, aceitou o convite do produtor inglês Richard Hawley e voou de Phoenix, Arizona, para Sheffield, Inglaterra, para gravar essa pequena obra prima chamada “Road Trip”. Totalmente instrumental, atemporalmente pop, é um disco tão delicado e adorável que vai despertar lágrimas na maioria dos guitarristas da cena atual – e isso inclui, claro, os quatro mencionados nos comentários anteriores. As canções do disco são novas. Mas são tão familiares que é como se as conhecêssemos a vida inteira. “Road Trip” é um seríssimo candidato a disco mais agradável do ano. Para quem não tem idéia da importância de Duane Eddy, ele foi, juntamente com Chuck Berry, o grande responsável pela popularização da guitarra elétrica no mundo inteiro no final dos anos 50. E é – e sempre vai ser – o grande mestre do twang – por mais que os fãs dos guitarristas rivais Link Wray e Al Casey insistam que não. Guardadas as devidas proporções, Duane Eddy está para o rock and roll assim como João Gilberto está para o samba. Tanto um quanto o outro operam no útero dos gêneros musicais que escolheram. Um privilégio que, definitivamente, não é para qualquer um.



DISCOGRAFIAS

LPs JIMMIE VAUGHAN
Strange Pleasure (1994)
Out There (1998)
Do You Get The Blues (2001)
Play Jimmy Reed (With Omar Kent Dykes 2007)
Plays Blues, Ballads & Favorites (with Lou Ann Barton 2010)
Plays More Blues, Ballads & Favorites (with Lou Ann Barton 2011)


LPs JIMMY THACKERY
Empty Arms Hotel (1992)
Sideways In Paradise (1993)
Trouble Man (1994)
Wild Night Out (1995)
Switching Gears (1998)
Partners In Crime (1999)
Sinner Street (2000)
We Got It (2002)
True Stories (2003)
Live (2004)
Healin´ Ground (2005)
In the Natural State (2006)
Solid Ice (2007)
Inside Tracks (2008)
Gotta Mind To Travel (2010)
Live In Detroit (2010)
Feel The Heat (2011)


LPs TAB BENOIT
Nice & Warm (1992)
What I Live For (1994)
Standing In the Bank (1995)
Live Swampland Jam (1997)
Homesick For The Road (1999)
These Blues Are All Mine (1999)
Wetlands (2002)
Whiskey Store (2002)
The Sea Saint Sessions (2003)
Whiskey Store Live (2004)
Fever For The Bayou (2005)
Voice Of The Wetlands (2005)
Brother To The Blues (2006)
Power Of the Pontchartrain (2007)
Night Train To Nashville (2008)
Medicine (2011)


LPs TOMMY CASTRO
No Footin´ (1994)
Exception To The Rule (1995)
Can´t Keep A Good Man Down (1997)
Right As Rain (1999)
Live At The Fillmore (2000)
Guilty Of Love (2001)
Gratitude (2003)
Triple Trouble (2003)
Soul Shaker (2005)
Painkiller (2007)
Hard Believer (2009)
Legendary Rhythm & Blues Revue Live! (2011)


LPs DUANE EDDY
Have Twangy Guitar Will Travel (1958)
Especially For You (1959)
The Twang´s The Thang (1959)
Songs Of Our Heritage (1960)
Girls! Girls! Girls! (1961)
Twangy Guitar, Silky Strings (1962)
Twistin´ & Twangin´ (1962)
Twistin´ With Duane Eddy (1962)
Duane Eddy In Person (1963)
Surfin´ (1963)
Twang A Country Song (1963)
Twangin´ Up A Storm (1964)
Lonely Guitar (1964)
Water Skiing (1964)
Duane A Go-Go (1965)
Duane Goes Dylan (1965)
Twangin´ The Golden Hits (1965)
Twangsville (1965)
The Biggest Twang Of All (1966)
The Roaring Twangies (1967)
Duane Eddy (1987)
Road Trip (2011)


PORTA-RETRATOS


“Fiquei muito tempo sem gravar porque tenho composto pouco nos últimos anos e ficava meio acanhado de sair gravando covers. Até que um amigo meu disse: Toque o tipo de música que você quer ouvir. Comecei a fazer isso e este já é meu terceiro disco em 3 anos.” (Jimmie Vaughan)


“De uns tempos para cá, sempre que chega o Inverno, me tranco em casa e saio compondo no Pro-Tools. Tenho conseguido fazer canções bem mais climáticas desde então, e meu repertório está mais aberto musicalmente. Compor no violão termina deixando tudo monocórdico demais. Estou evitando um pouco isso, e acho que está funcionando bem.” (Jimmy Thackery)


“Gosto de gravar ao vivo no estúdio, sem overdubs, sem frescuras, em no máximo 3 takes. Era assim que Lightning Hopkins e John Lee Hooker faziam, e funcionava às mil maravilhas. Como quem manda na minha carreira sou eu, é assim que eu vou pretendo seguir gravando meus discos.” (Tab Benoit)


“Comecei a entender o que era realmente o blues por volta de 1973 quando vi Mike Bloomfield falando de seu aprendizado como músico em Chicago e do prazer que sentiu quando tocou com B B King pela primeira vez. Comprei vários discos de B B King, comecei a ouvi-los sem parar e passei uns bons anos tentando imitá-lo. Nunca mais quis saber de ouvir guitarristas de rock.” (Tommy Castro)


“Ganhei meu primeiro violão quando tinha 5 anos de idade. Meu sonho de criança era ser Roy Rogers ou Gene Autry quando crescesse” (Duane Eddy)


“Eu devo ser um pesadelo para os empresários. Odeio viajar. Gosto de tocar aqui em Austin e redondezas. Gravo o que eu quero e lanço os discos por selos independentes. Além do mais, sou tímido e não tenho paciência para me autopromover. Eles devem me achar um chato”. (Jimmie Vaughan)


“Depois de muitos anos usando apenas a minha boa e velha Fender Stratocaster, decidi começar a usar também uma Gibson Firebird de 50 anos atrás. É uma guitarra admirável. Por muito tempo fiquei sem entender que prazer Johnny Winter tinha em tocar nela. Agora eu sei.” (Jimmy Thackery)


“Meu background musical é totalmente eclético. Sempre gostei de blues, soul, country music e cajun na mesma proporção. Acho que esse equilíbrio se reflete na música que eu faço.” (Tab Benoit)


“Fico feliz em ser reconhecido como um cantor e guitarrista na cena do blues, mas confesso que gostaria de ser um compositor capaz de fazer canções que muita gente quisesse gravar. Estou estudando composição, tentando me aperfeiçoar nisso, e juro que no diaem que isso acontecer – se isso acontecer – eu serei um artista realizado” (Tommy Castro)


“O dia mais feliz da minha vida foi quando, depois de um show, B B King, que eu não conhecia pessoalmente, apareceu no meu camarim e me deu um abraço.” (Duane Eddy)


AMOSTRAS GRÁTIS














sexta-feira, junho 17, 2011

CINCO DISTINTOS CAVALHEIROS E A DIFÍCIL ARTE DE SOBREVIVER NA SELVA MUSICAL AMERICANA (por Chico Marques)


É engraçado como o mundo dá voltas.

Quarenta anos atrás, esses três jovens "cosmic cowboys" da foto acima -- Jimmie Dale Gilmore, Joe Ely e Butch Hancock -- tentaram emplacar na conservadora Nashville um trio chamado The Flatlanders que tinha como proposta musical derrubar as cercas que separam as terras maltratadas do rock and roll dos pastos mais verdes da country music e do folk. Quebraram a cara, obviamente. Gravaram um LP que acabou lançado apenas no formato 8-track (fita em cartucho com 8 pistas) e que despontou a largos passos para o anonimato. E a banda se desintegrou naquele mesmo ano.

Basicamente ao mesmo tempo em que isso (não) acontecia, um excelente músico de estúdio da Philadelphia chamado David Bromberg, habituado a trabalhar com gente do gabarito de Bob Dylan e George Harrison, lançava seu primeiro LP solo repleto de belas canções e com um invejável elenco de amigos estrelares convidados. Mas, por uma série de questões logísticas muito mal administradas, infelizmente nenhuma dessas canções conseguiu acesso às emissoras de rádio na ocasião. Para piorar a situação, mais da metade do amigos estelares de Bromberg que participaram das sessões de gravação não tiveram autorização de suas gravadoras para que seus nomes constassem na ficha técnica do LP -- Dylan e Harrison, por exemplo, estão lá sob pseudônimos. Resultado: um grande sucesso de crítica, do qual o público jamais tomou o menor conhecimento.

Era um "tempo mágico" aqueles primeiros anos da década de 1970. Tony Joe White, um dos compositores mais bem sucedidos da época -- mestre absoluto do rhythm & blues pantaneiro do Estado da Louisiana, autor de clássicos como "Polk Salad Annie" e "Rainy Night In Georgia" -- viu sua carreira solo altamente promissora naufragar impiedosamente de uma hora para outra, e até hoje não entende como foi que isso aconteceu. Seus 3 LPs na Warner Bros Records estavam em perfeita sintonia com a época, eram ótimas coleções de canções e foram bem promovidos pela gravadora. Como explicar então que tenham tido uma vendagem tão inexpressiva? Bobagem querer entender. Até porque não faz o menor sentido.

Felizmente, aqueles tempos sombrios passaram.

Mas logo a seguir vieram os anos 1980, também conhecidos como a Idade Média da Música Pop.

Convenhamos: qualquer artista que tenha conseguido sobreviver a essas duas décadas, sobrevive a qualquer coisa.

Pois eis que, quarenta anos mais tarde, contrariando toda a lógica do mercado musical, quatro desses bravos azarões -- Jimmie Dale Gilmore, Joe Ely, David Bromberg e Tony Joe White -- continuam na área, firmes e fortes, todos na cena musical independente, com trabalhos altamente pessoais que não vendem muito mas garantem uma agenda lotada de shows para o ano todo nos quatro cantos do mundo.

Para juntar-se a eles, ALTOeCLARO convocou o ex-guitarrista dos Blasters Dave Alvin, um cowboy fora da lei da California que é da mesma linhagem deles, só que um pouco menos veterano -- tem apenas 35 anos de carreira.

Conheçam agora os novos discos que eles acabam de lançar no mercado:




















JIMMIE DALE GILMORE
HEIRLOOM MUSIC
http://www.jimmiegilmore.com/
Quando Jimmie Dale Gilmore e seus amigos texanos Joe Ely e Butch Hancock foram tentar a sorte em Nashville com The Flatlanders, eles logo perceberam que eram a banda certa no lugar e no momento errados, e trataram de forjar carreiras solo o quanto antes. Ely & Hancock saíram na frente. Gilmore, justamente o melhor compositor deles três, desistiu: mudou para Denver e deixou de tocar profissionalmente. Só em meados dos anos 1980, com a cena de Austin pegando fogo, aceitando música dos mais diversos gêneros e se apresentando como um antídoto à caretice de Nashville, Jimmie Dale tomou coragem, soltou sua voz suave e gravou finalmente seu primeiro LP repleto de serenatas honky-tonk que, apesar de novas, tinham um jeito bem familiar, como se tivessem sido compostas 20 ou 30 anos anos. De lá para cá, tem gravado esporadicamente, solo ou com The Flatlanders, que voltaram a trabalhar juntos em meados dos anos 1990. Curiosamente, seus dois últimos LPs, “Come On Back” e “Heirloom Music”, não possuem canções de sua autoria: são investigações sobre canções que seu pai e seu avô gostavam. Nos dois, o amigo Joe Ely é sempre o produtor. E tanto um disco quanto outro funcionam como verdadeiros mapas arqueológicos musicais e afetivos da música do Estado da Estrela Solitária. Country Music da gema.




















JOE ELY
SATISFIED AT LAST
http://www.ely.com/
A associação do cantor e guitarrista Joe Ely com seus parceiros Jimmie Dale Gilmore e Butch Hancock não vingou em sua primeira investida, em 1972, com The Flatlanders, mas está fadada a durar para o resto da vida. Quase todos os mais de 20 LPs de estúdio gravados por ele -- desde o primeiro, “Joe Ely”, de 1975, até esse novíssimo “Satisfied At Last” -- trazem canções suas mescladas com canções compostas por seus dois velhos parceiros. Ely sempre foi o mais ligeiro e o mais roqueiro dos três. Vive levando tombos, mas sempre cai de pé. Essa sua nova coleção de canções não traz grandes novidades. Nem pretende. Gravado em poucos dias com a nata dos músicos de Austin, “Satisfied At Last” é rock and roll pedestre no chão batido da terra vermelha do Texas, na mesma tradição de seus LPs mais conhecidos, como "Honky Tonk Masquerade" e "Musta Notta Gotta Lotta". Música texana de primeira grandeza, sem dúvida, que chega ao estúdio já devidamente batizada e testada na estrada. Joe Ely é um cara engraçado. Sempre que produz discos para amigos é muito meticuloso. Quando se autoproduz, ele é tão desencanado que até parece estar sendo displicente consigo mesmo. Mas não se engane: Joe Ely gosta do perigo. E isso tem de sobra nas dez faixas de "Satisfied At Last".




















DAVE ALVIN
ELEVEN ELEVEN
http://www.davealvin.net/home.html
Dave Alvin tem sido o grande embaixador do roots rock na Califórnia há 25 anos, desde que deixou o grupo The Blasters para explorar todas as variantes musicais da country music praticadas entre o Texas e as Carolinas -- passando pelo blues de Chicago e pelo legado de seu grande herói musical Bo Diddley. Dono de uma voz poderosa e de um ataque perigoso na guitarra, Dave tem na bagagem 10 LPs solo impecáveis – alguns acústicos, outros elétricos -- onde mostra, sempre de forma nada acadêmica, que a música popular do sul dos Estados Unidos é, no fundo, uma coisa só, mudam apenas os temperos e o jeito de tocar. Em “Eleven Eleven”, seu décimo primeiro trabalho, ele retoma a urgência de seus LPs clássicos com os Blasters em 11 números certeiros. Para isso, convoca o piano barrelhouse de seu velho parceiro dos Blasters, Gene Taylor, e ainda chama seu irmão Phil Alvin para um dueto muito divertido em “What's Up With Your Brother”. É música fora da lei de responsa, à moda de Johnny Cash e Waylon Jennings, só que muito mais selvagem. As canções foram compostas durante a tournée de seu disco anterior. Tudo foi gravado nas pausas de uma tournée, em várias sessões com vários músicos diferentes, e ainda assim é surpreendentemente uniforme. Canções magníficas como “Murieta´s Dead” e “Dirty Nightgown” mostram o quanto o talento de Dave Alvin como compositor permanece inabalado. “Eleven Eleven” abre com “Harlam County Line”, tema vibrante do seriado “Justified”, e encerra com um dueto bem camarada com seu amigo Chris Caffney, recém-falecido, em “Two Lucky Bums”. Só nos resta torcer para que este seja o disco que irá apresentar Dave Alvin a um público mais amplo.


















TONY JOE WHITE
THE SHINE
http://www.tonyjoewhite.com/
Quem lembra dos primeiros (ótimos) LPs de Tony Joe White no início dos anos 1970, não consegue entender como sua carreira desandou a ponto dele achar melhor mudar para a França para aproveitar a popularidade que ainda lhe restava no Velho Continente. Com várias de suas canções sendo regravadas constantemente por artistas de diversos gêneros, é difícil entender como nenhuma gravadora americana demonstrou interesse em contratá-lo durante os anos 1980. Tony Joe White só foi resgatado no final da década, pela amiga Tina Turner, que encomendou quatro canções para seu LP “Foreign Affairs”, e ainda o chamou para participar das sessões de gravação. Foi a salvação da lavoura. De lá para cá, sua carreira aos poucos renasceu. Manteve seu selo Swamp Records, preservou sua independência artística e passou a desfilar seu vozeirão num blend de folk e blues da Louisiana muito peculiar numa seqüência de LPs surpreendentemente bons, ainda que low profile. “The Shine” é o mais recente. E também o melhor e mais atmosférico deles todos. Trabalho de mestre, tanto como compositor quanto como performer e band leader. Não vale a pena medir elogios para o trabalho de Tony Joe White.




















DAVID BROMBERG
USE ME
http://www.davidbromberg.net/
Se tem um artista que é vítima de seu próprio ecletismo, esse cara é David Bromberg. Cantor e multi instrumentista onipresente nos discos de quase todo mundo que importava no final dos anos 1960 e início dos 1970, Bromberg nunca pretendeu definir um foco muito claro para seus muitos LPs solo, que mesclavam blues, rock and roll, country e folk music, sempre em partes iguais. Por conta disso, esses discos permaneciam inclassificáveis pela indústria, não tocavam em rádio alguma e terminavam perdidos na lojas. Viu sua carreira solo minguar na cena musical da Costa Oeste até praticamente desistir dela 20 anos atrás, quando passou a tocar violino e mandolin em Nashville para sobreviver. E então, cinco anos atrás, eis que ele reaparece de mansinho num selo independente com um disco todo acústico, quase caseiro, chamado “Try me One More Time”, e acaba chamando a atenção das pessoas certas. Para voltar agora em grande estilo com “Use Me”, produzido pelo amigo Levon Helm, onde recebe canções de presente e participações especiais de amigos ilustres como Keb Mo, Dr. John, John Hiatt, Tim O´Brien, Linda Ronstadt e dos grupos Los Lobos e Widespread Panic. “Use Me” é uma verdadeira festa. Bem produzido, bem cadenciado, e com uma dinâmica de produção que a maioria dos LPs solo de Bromberg jamais sonharam ter. Talvez por isso mesmo, seja a melhor maneira de apresentar às novas gerações os inúmeros talentos desse gênio musical um tanto quanto atrapalhado.


DISCOGRAFIAS

LPs JIMMIE DALE GILMORE
Jimmie Dale & The Flatlanders (1972)
Fair & Square (1988)
Jimmie Dale Gilmore (1989)
After Awhile (1991)
Spinning Around The Sun (1993)
Braver Newer World (1996)
One Endless Night (2000)
The Flatlanders Now Again (2002)
The Flatlanders Wheels Of Fortune (2004)
The Flatlanders Live '72 (2004)
Come On Back (2005)
The Flatlanders Hills & Valleys (2007)
Heirloom Music (2011)

LPs JOE ELY
Jimmie Dale & The Flatlanders (1972)
Joe Ely (1977)
Honky Tonk Masquerade (1978)
Down On The Drag (1979)
Live Shots (1980)
Musta Notta Gotta Lotta (1981)
Hi-Res (1984)
Lord Of The Highway (1987)
Dig All Night (1988)
Live At Liberty Ranch (1989)
Love & Danger (1992)
Letter To Laredo (1995)
Twistin' In The Wind (1998)
Live @ Antone's (2000)
The Flatlanders Now Again (2002)
Streets Of Sin (2003)
The Flatlanders Wheels Of Fortune (2004)
The Flatlanders Live '72 (2004)
Happy Songs From Rattlesnak Gutch (2007)
Silver City (2007)
The Flatlanders Hills & Valleys (2007)
Live Cactus! (2008)
Satisfied At Last (2011)

LPs DAVE ALVIN
Every Night About This Time (1987)
Blue Blvd (1991)
Tennessee Border (with Sonny Burgess 1992)
The Pleasure Barons Live In Vegas (1993)
Museum Of Heart (1993)
King Of California (1994)
Interstate City (1996)
Blackjack David (1998)
Public Domain: Songs From The Wild Land (2000)
Out In California (2002)
Ashgrove (2004)
West Of The West (2006)
Live From Austin TX (2007)
Dave Alvin & The Guilty Women (2009)
Eleven Eleven (2011)

LPs TONY JOE WHITE
Black & White (1969)
...Continued (1969)
Tony Joe White (1971)
The Train I'm On (1972)
Homemade Ice Cream (1973)
That On The Road Look Live (1973)
Eyes (1976)
Real Thang (1980)
Dangerous (1983)
Closer To The Truth (1991)
The Path Of A Decent Groove (1993)
Lake Placid Blues (1995)
One Hot July (1998)
The Beginning (2001)
Snakey (2002)
The Heroines (2004)
Live From Austin TX (2006)
Uncovered (2006)
Take Home The Swamp (2007)
Live In Amsterdam (2010)
The Shine (2011)

LPs DAVID BROMBERG
David Bromberg (1971)
Demon In Disguise (1972)
Wanted Dead Or Alive (1994)
Midnight On The Water (1975)
How Late Will You Play Till (1976)
Hillbilly Jazz (1977)
Reckless Abandon (1977)
Bandit In A Bathing Suit (1978)
My Own House (1978)
You Should See The Rest Of The Band (1980)
Long Way From Here (1987)
Sideman Serenade (1990)
The David Bromberg Quartet (2006)
David Bromberg & Angel Band (2007)
Try Me One More Time (2007)
Use Me (2011)

PORTA RETRATO

“Foi muito natural a maneira como os Flatlanders se juntaram. Butch Hancock trabalhava como arquiteto e fotógrafo em San Francisco, mas queria de alguma maneira voltar para Austin. Joe Ely tinha passado alguns anos na Europa com um grupo de teatro, mas também estava saudoso do Texas. E lá estava eu, desocupado, sem banda e procurando por uma..." (Jimmie Dale Gilmore)

“Esse novo LP tem uma pegada bem mais roqueira que os anteriores. Consegui reunir vários guitarristas bem ferozes com quem trabalhei nos últimos anos, e eles acabaram dando o tom da brincadeira. No fundo, é apenas mais um lote de canções sobre idéias que tenho pensado ultimamente, lugares onde estive, coisas que vivi." (Joe Ely)

“A cena musical de Los Angeles não é mais o que era antes. Hoje em dia eu prefiro Austin. É muito mais agitada, plural, autêntica, vibrante. E o melhor de tudo: é muito menor, e muito mais concentrada." (Dave Alvin)

“Lightnin' Hopkins e John Lee Hooker são definitivamente meus grandes heróis musicais. Os dois são o ponto de partida para tudo o que desenvolvi até hoje como músico. Já como compositor, me sinto mais próximo de J J Cale e Waylon Jennings." (Tony Joe White)

“Esses puristas do blues e do bluegrass são, em sua maioria, nazistas disfarçados de amantes da música. Nunca tive a menor paciência com essa gente que tem a cara de pau de chegar e questionar o porquê de você usar um determinado acorde que não existia na versão original da música. Ô gente chata!" (David Bromberg)

“Nashville no início dos anos 70 era um lugar difícil de se trabalhar, tanto que eu fui embora para Denver por quase 10 anos, não aguentava aquilo. Mas nunca larguei a música. Só larguei o negócio da música por alguns anos." (Jimmie Dale Gilmore)

“Eu sempre fui fascinado pela fronteira com o México, com essa coisa de um país de Terceiro Mundo fazer esquina com um dos países mais ricos do mundo, e principalmente com a música que surge dessa justaposição, tanto de um lado da fronteira quanto do outro" (Joe Ely)

“Eu acho que sou basicamente um artista de blues. Tenho influências fortes de country e folk, e, apesar dos puristas do blues acharem que isso que estou dizendo é uma grande bobagem, o caso é que quando começo a tocar minha guitarra eu sinto que estou tocando basicamente blues." (Dave Alvin)

“É um grande prazer para mim saber que Rainy Night In Georgia já foi gravada por 140 artistas diferentes, e Polk Salad Annie por quase 80. Poder viver confortavelmente com o faturamento dessas canções é um prazer maior ainda." (Tony Joe White)

“Eu sempre achei que o ato de corrigir é o que muitas vezes mata a originalidade da música. A necessidade de enquadrar todas as manifestações musicais em contextos rígidos é muito cruel. Eu sou a favor da liberdade de expressão."(David Bromberg)


AMOSTRAS GRÁTIS















quinta-feira, junho 09, 2011

CINCO FILHAS DE LILITH POEM FOGO NO DIA DOS NAMORADOS (por Chico Marques)


Todo mundo sabe -- está na Bíblia -- que, quando Deus criou Adão, Ele percebeu que Sua criação ali, sozinha, fora de qualquer contexto, não servia para grande coisa. Então, criou a mulher.

O nome da primeira mulher era Lilith. De personalidade forte, não se conformava em ter que ser subserviente a Adão e odiava ficar passeando pelada pelo Éden o dia inteiro sem ter absolutamente nada para fazer.

Lilith queria poder discutir sua relação com Adão, mas era imviável -- ele não queria de jeito nenhum. Na época, ainda não existia Terapia de Casais, e Deus era Intransigente e Tempestuoso demais para funcionar como Conselheiro. Adão era um horror. Cutruco como ele só, não dava a mínima para as reclamações de Lilith. Não se dava ao trabalho de discutir com ela, nem mesmo de discordar dela.

E então, um belo dia, cansada de ficar sempre por baixo sempre que pintava um rala e rola entre os dois -- outra de suas reclamações --, Lilith surtou e picou a mula dos Jardins do Éden. Deus, furioso, enviou 3 anjos meio bocós para seguí-la e trazê-la de volta. Pois não é que a danada da Lilith seduziu os três, fez deles anjos caídos, e os obrigou a viver na Terra a seu inteiro dispor, infernizando diariamente a vida de Adão e de sua nova mulher: uma criatura nada fogosa e totalmente desprovida de opiniões próprias chamada Eva...

Quase todas as referências a Lilith que existiam no texto original do Velho Testamento foram removidas durante o Concílio de Trento, por volta de 1560. Uma única referência escapou na revisão. Mas mesmo assim, Lilith sobreviveu no folclore de muitos povos, quase sempre associada às forças da natureza.

Na Babilônia, Lilith era uma Deusa da Noite, simbolizada pela Lua, muito querida pelo povo.

Para o povo hebreu, Lilith era uma parideira desenfreada que dava a luz diariamente a 300 crianças, além de ser também uma insaciável devoradora de homens, tão sedutora quanto castradora.

Para o Catolicismo da Idade Média, Lilith ganhou forma de serpente e de dragão, e simbolizava o mal.

Já na Mitologia Grega, ela é Hécate, uma demônia sedutora que guarda os Portões do Inferno e chega sempre montada num enorme cão de 3 cabeças.

E por aí vai...

O motivo de estar falando tanto disso aqui nesse texto sobre música é que, em meados dos anos 90, Lilith virou a inspiração para uma virada de mesa sensacional no showbiz pop americano -- que até então julgava “inadequado” uma atração feminina abrisse um show para outra atração feminina.

Quem iniciou o levante foi a cantora e compositora canadense Sarah McLachlan, que, no auge de sua popularidade, passou a exigir a contratação de artistas do sexo feminino para os promotores de suas tournées.

Como muitos se negaram a atendê-la, ela criou o Lilith Fair, um festival musical itinerante só com cantoras e compositoras que abrigava várias tendências musicais, e que foi um grande sucesso durante 3 ou 4 anos -- tempo suficiente para o showbiz rever alguns conceitos duvidosos e abrir mercado para muitas artistas do sexo feminino que estavam aguardando ansiosamente na fila por um lugar ao Sol.

As artistas de que vamos falar hoje ou são herdeiras diretas do legado do Lilith Fair -- Joan Wasser, Shannon McNally e Brandi Carlile --, ou tiveram suas carreiras revitalizadas graças ao poder de fogo do festival -- o caso de Sam Philips e Eliza Gilkyson.

Todas as cinco vieram dos quatro cantos da América, e são mulheres lindas, brigonas, admiráveis, extremamente talentosas e totalmente diferentes umas das outras.

O único traço que elas tem em comum é serem mulheres do tipo que Deus e Adão jamais aprovariam.






















ELIZA GiLKYSON
ROSES AT THE END OF TIME
Em seu filme “One Trick Pony”, de 1981, o cantor e compositor Paul Simon mostra a vida nada fácil de um artista veterano que está há muito tempo fora do foco da imprensa, mas, mesmo assim, nunca desiste de seguir estrada afora levando sua música para quem quiser ouvi-la. A longa carrera de Eliza Gilkyson tem um perfil semelhante. Aos 61 anos de idade, essa californiana razoavelmente bem conhecida na cena folk – mais como compositora do que como cantora --, se ressentia por nunca ter conseguido dar um passo muito além desse meio. De 2001 para cá, no entanto – desde que firmou base em Austin, TX, e passou a usar os serviços de seu filho Cisco como produtor --, o trabalho de Eliza Gilkyson começou a chamar a atenção de um público mais amplo e mais jovem. Em conseqüência disso, o tom de suas canções rejuveneceu também. Nesse seu novo LP, ela deixa os temas políticos meio de lado e apresenta um set de canções bem mais confessionais que o habitual, que vão do blues e do folk ao jazz e ao rock and roll, sempre com uma delicadeza ímpar e uma sensualidade arrebatadora. Se você não conhece Eliza Gilkyson, prepare-se para se apaixonar. “Roses At The End Of Time” tem esse poder.



















JOAN AS POLICE WOMAN
THE DEEP FIELD
Muitos compositores tem mania de fazer psicoterapia em suas canções, e isso costuma ser um tanto quanto aborrecido. Joan Wasser, no netanto, faz psicoterapia na cara dura em suas canções, e seu trabalho é tudo menos aborrecido. Uma das figuras mais inquietas da cena americana atual, essa violinista clássica, guitarrista, cantora, compositora e líder do grupo Joan As Police Woman brilhou forte em dois LPs excepcionais nos últimos anos: “Real Life”, sobre seu romance interrompido com Jeff Buckley, e “To Survive”, onde o tema recorrente é a relação com sua mãe, então recém falecida. Agora, aos 41 anos de idade, Joan está de volta com “The Deep Field”, mais uma incursão musical por esse blend curioso de soul music com indie rock que celebrizou a moça. É um trabalho bem mais arejado que os dois anteriores. Aqui, canções mais ou menos sombrias como “Flash” e “Down To Earth” contracenam com o altíssimo astral de números como “Nervous”, “Kiss The Espécifics”, “It´s Possible” e “Forever and a Year”. Sinal de que sua vida vai muito bem e a autoterapia está funcionando. Vamos torcer para que Joan não resolva dar alta para si própria de uma hora para outra. A julgar por “The Deep Field”, está tudo muito bem do jeito que está.



















SHANNON McNALLY
WESTERN BALLAD
Se Shannon McNally não existisse, seria preciso inventá-la. Essa bela novaiorquina de 38 anos formada em Antropologia pela NYU começou cantando e tocando seus blues e baladas informalmente nos nightclubs da cidade, até chamar a atenção de executivos ligados à Capitol Records em 2000. Lá, iniciou uma série de 7 LPs e 2 EPs onde passeia com galhardia por toda a musicalidade branca e negra do Sul e do Oeste dos Estados Unidos, desprezando fronteiras mercadológicas. Seus LP mais recente, “Western Ballad”, é certamente o melhor e mais ambicioso de todos. Com um repertório composto em parceria com o produtor Mark Bingham que aposta na diversidade musical, Shannon brilha com sua voz adorável mais uma vez em canções aparentemente desgarradas que, juntas, formam um “big picture” espetacular, resgatando a atmosfera dos discos clássicos de Gram Parsons gravados no início dos anos 1970. Impossível resistir ao charme cajun de “Tristesse Oubliée”, à melancolia country de “Rock and Roll Angel”, ao deleite soul de “Toast” e ao folk-pop etéreo de “High Western”. Como se isso não bastasse, a letra da faixa título é um belo poema de Allen Ginsberg que Bingham havia musicado anos atrás, mas ainda não tinha achado a voz certa para cantá-lo. Agora achou.



















SAM PHILIPS
CAMERAS IN THE SKY
Talvez vocês se lembrem de Sam Philips como a terrorista loura gelada do filme “Duro de Matar 3”, que faz “par romântico” com Jeremy Irons. Aquele foi talvez o maior mico da carreira de Sam Philips. Nascida há 49 anos em Glendale, California, ela começou gravando música cristã no início dos anos 1980 com seu nome verdadeiro, Leslie Philips. Em 1986, no entanto, cansou de todo aquele louvor e caiu na vida. Adotou seu apelido de infância, Sam, e recomeçou sua carreira na cena indie com um trabalho mais voltado para o acid-pop, contando com o aval precioso de amigos como Elvis Costello e Aimee Mann. Foi quando conheceu e se casou com o produtor musical T-Bone Burnett, seu parceiro em 5 LPs magníficos gravados para a Virgin e para a Nonesuch Aos poucos, conseguiu formar um público fiel na Inglaterra e no continente europeu, apesar de permanecer uma ilustre desconhecida na cena americana. Felizmente, ela já está mais do que conformada com isso, tanto que seu mais recente trabalho, “Câmeras In the Sky”, assumidamente low-budget, foi feito para ser comercializado somente pela web e em vinil. A voz aconchegante de Sam soa melhor ainda nessa moldura sonora menos carregada, ainda que extremamente melodiosa. “Câmera In The Sky” é mais uma coleção de canções envolventes e provocantes dessa loura nada aguada chamada Sam Philips, um dos tesouros (ainda) escondidos do pop angloamericano.



















BRANDI CARLYLE
LIVE AT THE BENAROYA HALL
Ninguém pode acusar Brandi Carlile de não correr riscos em sua carreira. Depois de ser considerada a grande revelação musical feminina de 2005 com seu disco de estréia -- e logo em seguida embarcar em duas aventuras musicais com produtores barra pesada como T-Bone Burnett e Rick Rubin --, ela agora volta num LP ao vivo com a Seattle Symphony Orchestra, redesenhando boa parte de seu repertório folk-pop num contexto musical mais classudo. É uma prova de fogo e tanto para a voz de Brandi, que nunca soou tão bela e contundente. Infelizmente, alguns excessos nos arranjos de orquestra provocaram baixas em canções outrora delicadas, como “Shadow On The Wall” e “Dreams”. Confesso que não consegui entender a intervenção vocal dos irmãos Tim e Phil Hanseroth -- sua banda --, numa versão de “The Sound Of Silence”, de Paul Simon, tão desnecessária quanto fora do contexto. Felizmente, Brandi salva tudo logo a seguir, fechando o set com uma releitura lindíssima de “Hallelujah”, de Leonard Cohen. Se quiserem um conselho, encerrem a audição por aí. É que o LP traz uma faixa secreta desastrosa: uma versão para piano e cello de “Forever Young”, hit abominável dos anos 1980. Cá entre nós, Brandi: cover do Alphaville, ninguém merece... Mas tudo bem, a moça é linda e talentosa e a gente perdoa.


PORTA RETRATO

“Acho engraçado a minha carreira ter começado a vingar depois dos 50 anos de idade. É uma sensação curiosa estar com 61 anos e ler artigos apaixonados pelo meu trabalho, como se eu fosse novidade. Dá um prazer enorme de estar viva. Não foi fácil chegar até aqui. Minha carreira foi interrompida diversas vezes, sempre à minha revelia. Fico feliz por nunca ter desistido.” (Eliza Gilkyson)
Align CenterAlign Center“O nome da minha banda é uma homenagem a Angie Dickinson, que fazia o seriado Police Woman na TV em meados dos anos 70. Eu não perdia um episódio. Dizia que, quando crescesse, queria ser uma mulher opulenta e intensa como Angie. Aí eu cresci.” (Joan Wasser)

“Adoro música. Para mim, é um elixir, você pode adicionar a ela o que quiser. Todos nós temos corações, e eles batem, e batem, e batem. Enquanto estamos vivos, fazemos sons o tempo todo. Isso é basicamente música. Música é apenas som.” (Shannon McNally)

“Essa idéia de oferecer assinatura do meu trabalho em vez de vender cds está indo bem. Ao longo desse primeiro ano, já produzi e entreguei aos assinantes do meu website 5 EPs e esse novo LP. Mas não sei se vou muito adiante com isso. Exige uma logística bastante complicada e onerosa. Não pretendo crescer como empresa. Quero apenas seguir adiante como artista.” (Sam Philips)

“Adorei trabalhar com T-Bone Burnett. A gente pensa que está indo para um lado e ele está conduzindo a gente para outro, completamente diferente. Ele é genial. Por onde ele passa, ele deixa um rastro de Tbone-ness(Brandi Carlile)

“Nunca imaginei que um dia iria ser popular no Canadá e na Inglaterra. Nunca imaginei que tantos artistas jovens iriam querer gravar minhas canções. Gosto de me sentir uma cidadã globalizada.” (Eliza Gilkyson)

“Sofri muito com a morte de Jeff Buckley, e mais ainda com a morte de minha mãe. Entrei em depressão, caí na bebida, me arrebentei toda, mas já purguei tudo o que me incomodava. Agora estou de volta, limpa e renovada.” (Joan Wasser)

“Eu adoro os escritores da beat generation. Tenho uma identidade muito forte com eles. Cantar uma canção feita a partir de um poema de Allen Ginsberg nesse novo LP foi a glória para mim.” (Shannon McNally)

“Eu sempre tive muita sorte em poder fazer todas as escolhas artísticas que achei necessárias ao longo da minha carreira. Mas, até por isso, e por não fazer concessões no meu trabalho, tenho certeza que não nasci para ser popstar.” (Sam Philips)

“As pessoas pensam em Seattle como uma cidade estritamente roqueira. Não é. É uma cidade que acolhe bem qualquer manifestação musical. Eu me sinto bem sendo uma artista do Noroeste americano. É uma honra.” (Brandi Carlile)



DISCOTECA

LPs ELIZA GILKYSON
Eliza Gilkyson (1969)
Pilgrims (1987)
Legends Of Rainmaker (1989)
Undressed (1994)
Redemption Road (1997)
Misfits (2000)
Hard Times In Babylon (2000)
More Than A Song (2002)
Land Of Milk & Honey (2004)
Paradise Hotel (2005)
Live From Austin TX (2007)
Your Town Tonight (2007)
Beautiful World (2008)
Roses At The End Of Time (2011)
http://www.elizagilkyson.com/

LPs JOAN AS POLICE WOMAN
Real Life (2006)
To Survive (2008)
The Deep Field (2011)
http://www.joanaspolicewoman.com/site/

LPs SHANNON McNALLY
Bolder Than Paradise (EP 2000)
Jukebox Sparrows (2002)
Run For Cover (2004)
Geronimo (2005)
North American Ghost Music (2006)
Live At The Jazz Fest (2007)
Coldwater (2009)
Western Ballad (2011)
http://shannonmcnally.com/

LPs SAM PHILIPS
Leslie Philips (1982)
Beyond Saturday Night (1983)
Dancing With Danger (1984)
Black & White In A Grey World (1985)
The Turning (1987)
The Undiscribable Wow (1988)
Cruel Inventions (1991)
Martinis & Bikinis (1994)
Omnipop (1996)
Fan Dance (2001)
A Boot & A Shoe (2004)
Don´t Do Anything (2008)
Cameras In The Sky (2001)
http://samphillips.com/

LPs BRANDI CARLILE
Brandi Carlile (2005)
The Story (2007)
Live At Neurmo’s (2007)
Give Up The Ghost (2009)
Live At The Benaroya Hall (2011)
http://www.brandicarlile.com/

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