segunda-feira, janeiro 23, 2006

Nelson Motta encontra Ezequiel Neves (publicado na Revista Oi)


A evolução da música brasileira nas últimas décadas se confunde com a trajetória desses dois senhores de cabelos brancos. São personagens da história popular (e pop) do nosso som. Ezequiel Neves, Zeca para os íntimos, foi mentor do Barão Vermelho e de Cazuza. Agora, afastado da produção musical, ouve seus velhos e bons CDs. E ponto. Nelson Motta, além de compositor de sucessos, lançou no mercado, entre muitos, Lulu Santos e Marisa Monte. Agora escreve livros, tem coluna em jornal, programa de rádio e lançou um site, o Sintonia Fina (www.sintoniafina.com.br). Eles não se falavam há anos. A Revista Oi juntou os amigos de longa data para um reencontro emocionado e um papo sobre as transformações no pop-rock brasileiro. Sempre ecléticos, falam sobre bossa nova, rock, pop e hip hop. E, como bons caciques da música nacional, lançam sinais de fumaça rumo ao futuro.

Ezequiel Neves: A gente se conheceu em 72, Nelsinho.

Nelson Motta: Eu me lembro, no Teatro Opinião.

Ezequiel Neves: Eu fazia teatro. E naquela peça se encerrou toda a minha carreira de ator. Vi que não tinha nada a ver. Eu me mudei para o Rio para fazer a (edição brasileira da) revista Rolling Stone e também escrevia para o Jornal da Tarde. Você tinha uma seção no Globo.

Nelson Motta: Eu tinha uma coluna diária de música. E um escritório onde produzia meia página de jornal todo santo dia. Era um entra-e-sai naquele escritório, muita história. Você, Zeca, viu bem de perto essa transformação do rock no Brasil, que foi uma coisa heróica. Como é que se pode ter rock’n’roll com censura e ditadura?

Ezequiel Neves: Era uma loucura. Na década de 70, era realmente muito perigoso ser roqueiro. Cruzei aqui com o Made in Brazil e fui para São Paulo trabalhar com eles.

Nelson Motta: E foi uma das primeiras bandas de rock tipicamente brasileiro.

Ezequiel Neves: Foi a época em que estourou também o Secos & Molhados. E foi um rastilho de pólvora. Aquele estouro todo, e acabaram logo no segundo disco.

Nelson Motta: Foi um impacto incrível. Era o auge da ditadura, uma repressão pavorosa. De repente aparece o Ney de bunda de fora, rebolando no palco, falando obscenidades.

Ezequiel Neves: Era um desbunde.

Nelson Motta: Um desbunde total. E foi importantíssimo, uma das poucas respiradas que a juventude teve no Brasil. Uma outra coisa: o mundo inteiro teve uma revolução de rock, um movimento a partir de 69. O Brasil já estava no AI-5. O país só veio a ter nos anos 80 o que todo mundo teve no início dos anos 70. Você não podia pedir para os censores liberarem a sua música, não dava para ser meio rebelde.

Ezequiel Neves: Mas sabe o que eu fazia? O Barão surgiu em 82. E antes de mandar as músicas do Cazuza para a censura, eu já censurava. Na hora de gravar, ele gravava a versão original, sem cortes. Eles não iam esmiuçar, eles eram burocratas. Depois veio o Rock Brasil. E aquilo era um movimento. Tinha Barão, Paralamas, Kid Abelha, Lobão. Tinha o Júlio Barroso fazendo a Gang 90 e as Absurdetes.

Nelson Motta: Que é um grupo precursor. Ali foi um momento de grande transformação, que a gente viveu intensamente. No nascimento do Rock Brasil, os artistas eram heróis. Não tinha dinheiro, público, cultura de rock no Brasil. Não podia importar instrumento, era uma repressão pavorosa. Era quase impossível você fazer um grande festival de rock. Só quando isso já estava fora de moda no mundo é que teve o Rock in Rio.

Ezequiel Neves: E só os perseverantes sobraram. Os Paralamas, o Barão. Porque o Barão com o Cazuza era uma coisa, sem ele era outra. As pessoas queriam o Cazuza. E o Barão venceu isso. Eu admiro grupos como o Kid Abelha, os Paralamas, os Titãs. Gosto muito do Skank. E agora eu gosto de um grupo chamado Detonautas. Tem os Los Hermanos... Mas eu acho um pouco mauricinho demais.

Nelson Motta: Eu acho interessantíssimo. Na música deles tem tanto da Jovem Guarda, de bossa nova, de samba tradicional, de rock brasileiro, tanto de coisa mais regional... É realmente um amálgama de todas essas formas. Da Bossa Nova para cá, tem tudo nos Los Hermanos.

Ezequiel Neves: Sabe, Nelson, eu não quero mais produzir ninguém. Eu sou procurado ainda, mas não quero. A meninada é muito ansiosa. Não vou fazer milagre. E eles já querem acontecer, imediatamente.

Nelson Motta: Eu também não tenho a menor vontade. Produzir disco de um artista novo não é só produzir um disco, é produzir a vida da pessoa, é viver intensamente. Você tem que estar no lançamento, fazer o marketing daquilo, acompanhar, ajudar nos shows. Não é só fazer um disco no estúdio e pronto.

Ezequiel Neves: Eu passo o artista para a frente. Não vou fazer absolutamente nada, principalmente com essa coisa de gravadora. E agora o buraco é mais embaixo. O jabá está pegando e não tem mais a efervescência, não pode ter.

Nelson Motta: E esse mundo das grandes gravadoras acabou. Nós participamos muito desse mundo, como produtores de discos, como críticos de música. Houve uma época em que isso era tudo. Mas hoje em dia elas estão nos estertores. Esse formato de indústria não tem mais para onde ir. Com a pirataria, com a troca de arquivos, com a internet. Paralelamente a isso, a música popular está passando por uma imensa transformação.

Ezequiel Neves: Por causa da tecnologia.

Nelson Motta: Sim. E há dois formatos dominantes: o hip hop e a eletrônica. São os novos formatos musicais do século 21. Não é que o formato canção popular – com música, letra e refrão – vá acabar. Mas esse é o novo formato.

Ezequiel Neves: Você gosta de hip hop?

Nelson Motta: De algumas coisas. Mas acho chato esse hip hop raivoso. Eu não quero levar esporro, não tenho mais idade para isso. Ao mesmo tempo, o disco À procura da batida perfeita, do Marcelo D2, é fabuloso. Ele conseguiu a perfeita fusão do samba e do hip hop. O D2 é irônico, é sacana, é libertário. Não é cagação de regra. E eu acho interessante esse formato musical novo, não tem primeira parte, segunda parte, refrão. De música, não tem quase nada. O hip hop privilegia a palavra. A eletrônica é o contrário. São vinte mil instrumentos, com sampler, arranjo. De vez em quando tem uma palavra. É só som, praticamente instrumental. Esses são os novos formatos. E as gravadoras não têm controle, elas não sabem lidar com esse universo. O cara faz um disco de hip hop no banheiro de casa. Com uma bateria eletrônica, um gravador digital...

Ezequiel Neves: A pirataria, por exemplo. Eu saio do supermercado e vejo uma banca de disco pirata. Dou uma espiada e compro mesmo. Você pode copiar estes discos também.

Nelson Motta: Isso é uma coisa insolúvel. A tecnologia está crescendo. E, no Brasil, se você fizer a relação do preço de um CD com o salário mínimo... É caro demais. Vai ver se nos Estados Unidos tem pirataria assim. No Brasil, não há polícia que resolva isso... O que você tem ouvido, Zeca?

Ezequiel Neves: Estou preguiçoso. Tenho ouvido só os meus discos bons. Frank Sinatra, Billie Holiday, Tom Jobim. Tenho ouvido Vinicius de Moraes com Odete Lara. Antes, eu tinha que escrever e recebia disco demais. Não podia ouvir mais de três vezes um disco de que eu gostava porque já tinha outra pilha para ouvir. Quando parei de escrever, parei de ganhar disco. E como eu ouço música agora! Tenho mania de me hospedar no disco que gosto. A minha preferência e a minha curiosidade são mais cautelosas. Eu me informo, fico curioso, procuro. Quando ganho um disco de que não gosto, eu quebro. Porque não vou passar para frente uma porcaria.

Nelson Motta: Mas há umas coisas ótimas que apareceram nos últimos anos. A Bebel Gilberto é uma maravilha. E a Maria Rita. Ela é tão boa quanto a mãe. Acho que elas são as melhores cantoras dessa geração e são filhas do maior cantor e da maior cantora. A Bebel e a Maria Rita são o começo e o fim da mesma história. A Bebel passou pelo rock, por essa música dos anos 60, passou por Cazuza e voltou ao João Gilberto. Esse segundo disco da Bebel é mais acústico. E a Maria Rita foi criada nos Estados Unidos, no pop americano, completamente afastada da música brasileira, e é uma cantora genial.

Ezequiel Neves: A música vem e volta e fica e vai ficando e vai. Quando me perguntam qual é o futuro da música... Pelo amor de Deus, eu tenho que ser indenizado para responder isso. Porque é muito difícil, eu não sei. Se me perguntam sobre o futuro da música, como ela está... Eu acho que está tudo bem. Você ouve o que quer.

Nelson Motta: Estou mexendo com novidade agora, nesse programa de rádio. E agora lancei um site com a mesma proposta. Há uma oferta grande de música hoje em dia, na internet, na loja, no pirata, na revista. Ninguém mais tem tempo e saco para selecionar isso. Então alguém tem que fazer esse papel de ouvir e filtrar o que vale a pena. Tenho feito também muita letra com meus parceiros. Tenho música nova com o Max de Castro, com o Ed Motta, com o Guilherme Arantes...

Ezequiel Neves: Você está fazendo um trabalho maravilhoso. Eu não estou fazendo absolutamente nada a não ser ouvir música, queimar maconha e beber escondido. De mim mesmo.

Nelson Motta: Ou seja, continua mais rock’n’roll do que nunca.

Ezequiel Neves: Você já fez 60 anos, Nelsinho?

Nelson Motta: Já. Fiz agora.

Ezequiel Neves: Eu já fiz 70.

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