ROUGH AND ROWDY WAYS
BOB DYLAN
(Columbia Records)
Antigamente, nos Anos 1960 e 1970, quando uma gravadora lançava no mercado um novo LP de um determinado artista, o processo funcionava assim: primeiro saía um single (compacto), para tocar nas rádios e estender o tapete para a chegada (um ou dois meses mais tarde) do novo LP. Com o lançamento no mercado deste novo LP, saía também um segundo single, que serviria para manter o artista exposto nas programações das rádios por algumas semanas e puxar a vendagem do LP em questão. E então, dependendo da carreira comercial do LP no primeiro mês, surgiam no mercado (e também nas rádios) mais um ou dois singles, visando manter o disco em voga e as vendas constantes, na medida do possível. Tudo isso era medido pela parada semanal da Billboard Magazine, que determinava se a carreira de um determinado LP ainda tinha chão pela frente, ou se já estava encerrada. Com a chegada dos CDs na segunda metade dos Anos 1980, pouca coisa mudou nesse processo. Mas de uns anos para cá, com a chegada dos downloads digitais e das plataformas de streaming, todo esse tradicional aparato promocional ficou pulverizado, e teve que ser completamente repensado. Vejam o caso curioso do novo LP de Bob Dylan, “Rough & Rowdy Ways”, o primeiro desde “Tempest” (2012), e também seu primeiro disco de inéditas pós-Nobel. A carreira dele começou 3 meses antes dele ser lançado, em 27 de Março deste ano, com o lançamento na web do “single” de 17 minutos de duração “Murder Must Foul”, um épico caleidoscópio multifacetado que funciona como um big picture da vida americana moderna pós-assassinato de John F Kennedy. Vinte dias mais tarde, um segundo single chega à web: “I Contain Multitudes”, um número intenso e contundente que funciona como um flerte aberto com a morte – o que certamente não surpreendeu aos que tem acompanhado seus discos neste novo século, como “Time Out Of Mind” e “Love & Theft”. Vinte dias mais tarde, surge na web um terceiro single, ‘False Prophet”, um blues meio hipnótico que fala sobre ética e abdução mental. E então, nesta última sexta feira, dia 19 de Junho de 2020, finalmente “Rough & Rowdy Ways” vê a luz do dia, nos formatos CD, LP e download digital. Comecei a ouvir as canções do disco que ainda não conhecia na manhã deste sábado, poucas horas atrás, e estou confesso estar muito impressionado com a pegada forte das canções. A maioria delas fala sobre a morte. Às vezes de forma jocosa, como em “My Own Version Of You”. Outras vezes de forma asustadora, como em “Black Rider”. Às vezes com alguma ternura, como em “I’ve Made Up My Mind To Give Myself To You”. Ou ainda com altivez e gratidão, como no blues “Goodbye Jimmy Reed”. Talvez eu não devesse estar escrevendo sobre “Rough and Rowdy Ways” depois de apenas duas audições. Talvez seja muito cedo para isso. Talvez seja leviano da minha parte avaliar assim um trabalho que levou 8 anos para ser realizado. Mas, francamente, apesar de serem discos bem diferentes, eu diria que vale para esse soturno “Rough & Rowdy Ways” a mesma coisa que eu escrevi oito anos atrás sobre o catártico “Tempest” aqui mesmo em ALTO&CLARO: “Algumas dessas canções são extremamente emocionantes. Outras, de uma truculência ímpar. Impossível ficar indiferente a qualquer uma delas. Enquanto está na estrada, Dylan sabe exatamente qual o seu lugar no mundo como cidadão. Já quando se recolhe, ele solta a imaginação e se transforma numa versão vintage rocker de Próspero, da peça derradeira de William Shakespeare. É inevitável: todo grande artista vira Próspero depois dos 70 anos. Não perdendo a generosidade, está tudo certo...”. É isso por enquanto. Mergulhem de cabeça nesse belo disco de maturidade desse grande artista. Vale a pena.
PICK ME UP OFF THE FLOOR
NORAH JONES
(Blue Note Records)
Parece que foi ontem, mas já faz 18 anos que Norah Jones surgiu na cena musical como a artista pop-jazz crossover definitiva no já lendário LP “Come Away With me”, uma combinação musical exuberante que deixou crítica e público absolutamente rendidos diante da beleza musical da filha americana do mestre musical indiano Ravi Shankar. Desde então, Ms. Jones vem testando os limites de seu talento, gravando LPs sob várias orientações musicais muito distintas, fazendo shows pelo mundo inteiro e até atuando em filmes de tempos em tempos. Em 2016, no entanto, ao lançar seu 6º LP, “Day Breaks”, ela decidiu voltar ao ponto de partida e repetir (mais ou menos) a fórmula de seu vitorioso LP de estreia, para tomar fôlego antes de alçar novos vôos musicais. E agora, quatro anos mais tarde, ela retorna com um LP menos coeso que o anterior, mas com uma atitude multifocal em termos musicais. “Pick Me Up Off The Floor” é uma colcha de retalhos deliciosa que mostra todas as experiências musicais que Norah vem testando desde 2016, devidamente intercaladas com números musicais que soam familiares a seu admiradores (entre os quais eu me incluo). É um disco inquieto, meio bipolar, mas sempre brilhante. Quem mais, além de Norah, seria capaz de mesclar violinos celtas com percussão hip-hop, como ela faz em “Were You Watching”? Suas duas colaborações com Jeff “Wilco” Tweedy neste disco são duas aulas de delicadeza musical. “I’m Alive” é quase um gospel, e funciona como uma saudação a todas as mulheres vítimas de maus tratos pelo mundo afora. E ”Heaven Above” fecha o disco como se fosse um lullaby cósmico, saudando o Universo a partir de uma ótica profundamente feminina. Portanto, nunca esperem “mais do mesmo” quando estiverem diante de um novo trabalho de Norah Jones. Melhor esperar sempre pelo inesperado. É o que ela sabe fazer de melhor.
IN A ROOMFUL OF BLUES
ROOMFUL OF BLUES
(Alligator Records)
Quando o Roomful Of Blues lançou seu primeiro LP na Island Records, com produção do lendário Doc Pomus, em 1977, ninguém entendeu nada. O que fazia aquela banda poderosa de Jump Blues, Kansas City Jazz e Chicago Blues numa gravadora especializada em artistas de reggae e de rock¿ Pior: como é que uma banda desse quilate foi aparecer justamente em Rhode Island, um dos Estados mais inexpressivos da União em termos musicais¿ Era bastante intrigante. Mas bastava alguém botar o disco deles para tocar e desistir imediatamente de tentar dar relevância a esses detalhes geográficos. Roomful Of Blues era uma banda vigorosíssima, comandada (então) pelo grande guitarrista Duke Robillard, com um naipe de metais arrebatador, e que servia de “banda cavalo” para grandes artistas de jazz e de blues que viessem a trabalho (sem banda) pela região da Nova Inglaterra. Quando gravaram esse primeiro disco mencionado há pouco, já tinham 10 anos de carreira, eram muito conhecidos entre os artistas e sempre recomendados como banda de apoio – caso semelhante ao de duas outras “bandas cavalo” muito conhecidas: os texanos The Fabulous Thunderbirds e os californianos The Blasters. Roomful of Blues gravou discos sensacionais, ganhou prêmios aos montes, correu o mundo inteiro com seu blend musical único, e só não foi mais longe porque nunca teve menos de 8 integrantes, o que tornava o show deles um tanto quanto caro. “In A Roomful Of Blues” é seu 19º álbum, o sexto na Alligator Records, e é tão suingado e tão relevante quanto aquele longínquo disco de estreia de 43 anos atrás, só que alternando os sotaques musicais clássicos que notabilizaram a banda com incursões por sonoridades mais modernosas -- atitude que Mr. Vachon vem tomando desde que assumiu o comando da banda 22 anos atrás, para que o Roomful Of Blues jamais corresse o risco de virar um Nostalgia Act e pudesse seguir conquistando novos admiradores a cada show que faz, e a cada disco que grava. Esse aqui é, certamente, o disco com menos covers de toda a longa discografia da banda -- temos apenas 3 covers, contra 10 originais da banda. Na medida em que não gravavam há quase 10 anos, com certeza deviam ter canções de sobra para este e sabe-se lá para mais quantos novos discos. Se eu tivesse que destacar alguns números em especial, escolheria a divertidíssima “Phone Zombies”, a tétrica (e também divertidíssima) “Carcinoma Blues” e a contundente faixa título, todas de autoria de Chris Vachon, compositor de mão cheia. Graças a ele, o Roomful Of Blues permanece com sua essência intacta, renovado o suficiente para poder encarar novas aventuras musicais sempre muito divertidas, como esta aqui. Eu, que sou admirador da banda de longa data, confesso que estava morrendo de saudades. Bem vindos de volta, rapazes.
Chico Marques é um iconoclasta
desde a mais tenra idade.
Nascido em Santos em 1960,
estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília,
atuou como publicitário
e foi produtor musical
em emissoras de rádio e TV.
Vive na Polinésia Francesa,
onde trabalha como editor
de THE BORA BORA REVIEW
e de ALTO&CLARO.