quarta-feira, abril 26, 2006

Morrissey abre a janela (por Arthur Dapieve para NoMinimo)


Não dá para confiar em mais ninguém. Morrissey feliz, era o que nos faltava. Em seu novo disco solo, “Ringleader of the tormentors” (lançado no Primeiro Mundo pelo selo Attack em CD, CD com DVD e LP, sem perspectiva de edições nacionais), os gloriosos rocks em tempo médio ainda imperam, os cabelos agrisalham-se nas têmporas e a voz continua chorosa, mas as letras, ah, quanta diferença, até contemplam a possibilidade de a vida ser algo mais do que um chiqueiro, apesar de um título de música depor em contrário.

As letras foram elaboradas a partir de uma mudança de perspectiva na vida de Stephen Patrick Morrissey, 46 anos, ex-vocalista da melhor banda de rock da década de 80, The Smiths. Depois de amargar sete anos de silêncio fonográfico, durantes os quais alguém chegou a propor-lhe que gravasse um disco à frente da melhor banda de rock da década de 90, Radiohead, ele retornou à plena ativa com “You’re the quarry” (2004), sucesso de público e de crítica, que, logo no ano seguinte, ganhou uma versão turbinada com um CD bônus de lados B e ainda foi prolongado num bom álbum ao vivo, “Live at Earls Court”. Morrissey, então, reconquistou a confiança perdida no decorrer de sete álbuns solo nunca indignos do seu passado, mas raramente tão brilhantes quanto os da Era Smiths.

O resenhista não está, de modo algum, se comprometendo e dizendo que “Ringleader of the tormentors” é um disco à altura dos feitos com Johnny Marr, Andy Rourke e Mike Joyce. Não está. E não está porque não é. Na sua opinião, aliás, mesmo “You’re the quarry”, sobretudo na versão dupla, é superior ao novo lançamento. Este “Ringleader of the tormentors”, porém, é uma real novidade para quem acompanha a trajetória do roqueiro mancuniano desde que a agulha de diamante leu o primeiro sulco de “William, it was really nothing”, muitos e muitos anos atrás. Porque a autoconfiança recém-recuperada pode ser lida nas novas canções de quem fez fama cantando (a)os tímidos e desajeitados do mundo.

Morrissey trocou seu exílio na ensolarada Califórnia por um exílio na não menos ensolarada – e, sejamos francos, muito mais interessante – Itália. Roma, para ser específico. Trocou um produtor americano de nível médio – Jerry Finn, de “You’re the quarry” – por um produtor americano de alto nível, Tony Visconti. Famoso, deve-se lembrar, por trabalhos com David Bowie e T. Rex. E cortejou com sucesso um dos maiores arranjadores vivos, o italiano Ennio Morricone, que assina a partitura da segunda faixa do novo CD, chamada “Dear God please help me”. Il maestro não aceita qualquer encomenda.

Mais que essas notas de ficha técnica, no entanto, a confiança da meia-idade permitiu ao letrista Morrissey ousar duas coisas inéditas. A primeira, já mencionada: insinuar-se, disco afora, como um homem feliz, um quarentão que, nas entrevistas de divulgação, admite ter encontrado o amor. Verdadeiro ou falso, quem há de saber?, despista o artista. “Uma vez pensei que eu/ Tinha numerosas razões para chorar/ E eu tinha – mas não tenho mais/ Porque eu nasci, nasci, nasci/ Afinal, eu nasci”, anuncia na derradeira faixa do novo CD, “At last I’m born”. Tá certo, é uma maneira tergiversante de se declarar feliz, mas, ora bolas, estamos falando de Morrissey, o ex-rapaz constantemente atormentado.

A segunda coisa inédita, que, sem trocadilhos, vem a reboque da primeira: tirar do armário os pronomes pessoais masculinos. Morrissey já não esconde sua orientação sexual sob palavras comuns aos dois gêneros. É uma jogada ousada não por ele ter-se, afinal, assumido homossexual (alguém aí acreditava naquele papo sobre ser celibatário?) e sim porque o culto a ele era, em parte, fomentado pela neutralidade (pessoas de todos os quatro ou cinco sexos podiam se relacionar sem grilos com as suas letras). Em “Dear God please help me”, Morrissey não deixa margem para interpretações pessoais: “Então, ele se move para mim/ Com as suas mãos no meu joelho/ Querido Senhor, este tipo de coisas acontece com você?/ Agora estou abrindo as pernas dele/ Com as minhas no meio/ Querido Senhor, se eu pudesse, eu Lhe socorreria”. Homoerótica e blasfema, é uma linda balada orquestral.

A banda que acompanha Morrissey é composta pelos seus velhos asseclas guitarristas Boz Boorer e Alain Whyte, mais Jesse Tobias, da banda de Alanis Morrissette, co-autor de cinco das 12 faixas de “Ringleader of the tormentors”; pelo baixista Gary Day, pelo tecladista Michael Farrell e pelo baterista Matt Chamberlain. Também fazem bonito no disco os nove italianinhos de sete anos de idade do coro de “At last I’m born” e de “The youngest was the most loved”, cujo refrão proclama “não há na vida nada normal”.

Morrissey, definitivamente, não é normal. É o melhor letrista de sua geração, bem como seu personagem mais bem bolado, aquele que sempre declara “não conseguiria deixar de ser eu mesmo”. É o cara que compõe uma “You have killed me”, com citações a Luchino Visconti e a Anna Magnani, ponto alto e grudento do novo CD. Sua foto em preto-e-branco na capa de “Ringleader of the tormentors” substitui o gângster de “You’re the quarry” pelo violinista de música erudita – a moldura azul do título remete à moldura amarela do selo Deutsche Grammophon – e gravata borboleta. Hoje, Morrissey já se sabe clássico.

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