quarta-feira, abril 26, 2006

Nando Reis: Entre Plantas e Caramujos (por Bernardo Araujo para O GLOBO)


Nando Reis gosta de começar: quando, em 1994, ainda integrando os Titãs, ele lançou seu primeiro disco solo, batizou-o com o dia de seu aniversário, “12 de janeiro”; ao deixar o grupo e partir para a vida à frente de uma banda, também considerou que sua carreira estava em um início, daí “A letra A”, em 2003. Agora, depois de ter a carreira alavancada por um “MTV ao vivo”, com sucessos como “Mantra” e “Por onde andei”, ele se sente confortável para... recomeçar, com “Sim e não” (Universal).

— Não é só um retorno, há um começo aí também — insiste ele, sempre explicadinho. — Quando lancei “A letra A”, eu era herdeiro de uma situação, estava acostumado a trabalhar na banda, de outra maneira. Agora, depois do “MTV ao vivo” — um disco em que regravei várias músicas da minha época nos Titãs — tudo é novo: é uma sonoridade minha com os meus músicos. A maioria das canções foi composta nos últimos meses.

Nomes esquisitos como “Espatódea”

Sem qualquer medo de misturar a vida pessoal e a profissional, ele logo aborda um assunto que faz parte do processo.

— Parei de beber há um ano — diz. — Também por isso tudo é novo para mim. Sempre cantei e compus sob o efeito de drogas e álcool. Agora estou aproveitando tudo muito mais. Eu me diverti muito antes, não nego, mas acho que já preenchi a minha cota. Aquilo estava acabando comigo, fiz shows muito ruins e outros de que não me lembro. Hoje estou muito mais ligado em tudo, acho que posso dizer até que tive um surto criativo.

No mínimo, está claro que ele não aparou arestas: “Sim e não” tem músicas com nomes esquisitos (“Monóico” e “Espatódea”, por exemplo), uma faixa escondida, uma canção cuja letra é apenas uma frase em italiano (“Ti amo”), várias menções a sexo e bons pedaços de sua vida pessoal.

— É claro que um disco de sucesso faz você ficar mais à vontade para dizer o que quer — admite ele. — Mas o “MTV ao vivo” e sua turnê me ajudaram a juntar os meus caquinhos, o que também me deu mais segurança. Tive sucessos meus cantados por mim pela primeira vez! Mas, também, por outro lado, vendi cem mil discos, não um milhão. Acho que, além da necessidade profissional, senti uma urgência existencial de falar.

E o fez de maneira absolutamente pessoal, a começar pela temática botânica-malacológica (referente a moluscos) da arte e de algumas das letras do disco — como as esquisitas “Monóico” e “Espatódea”.

— Já fui colecionador de caramujos e membro da Sociedade Brasileira de Malacologia — confessa ele. — Gosto de botânica, dessas coisas, tenho alguma familiaridade com esses assuntos. Quis mostrar, na arte do disco, a semelhança entre as plantas, os caramujos e os órgãos sexuais humanos. Algo como misturar animal, vegetal e mineral.

Apesar de tantas referências a sexo — “Acho que estava na hora, acabou o recreio!”, define ele — a tal “Espatódea” é uma bela homenagem à sua filha Zoé, de 6 anos, aquela mesma que reclamava de “O mundo é bão, Sebastião!”, feita para seu irmão mais velho, hoje com quase 11 anos.

— Eu dizia que “Púrpura”, de “A letra A”, tinha sido feita para ela, mas ela não acreditava, e não era verdade mesmo — admite o pai. — Espatódea é uma árvore que dá uma flor laranja, como a Zoé, que é ruiva. Na casa dela tem uma árvore assim, que eu plantei.

Em “Caneco 70”, o espírito bicho-grilo

Um outro bom momento do disco está em “Ti amo”, uma cantiga italiana composta pelo menos carcamano dos compositores paulistas. A letra diz apenas “ti amo” e um grande “lárará” em coro se segue.

— Realmente, não é nada de herança genética — diz ele. — Mas eu adoro esse tipo de música, de se cantar em estádios, na noite de Natal ou na cantina. Deixei bem claro para a banda que não se tratava de uma paródia, eles entenderam e tocaram muito bem.

A música que possivelmente melhor resume o espírito setentista bicho-grilo de Nando e seus Infernais é “Caneco 70”, em que ele conta seu romance (hoje terminado) com a produtora Ana Butler, diretora da MTV: um rockão solto que se estende por quase sete minutos (ou seja, dificilmente tocará no rádio) em que ele fala do casal em cidades como Goiânia, Uberlândia, Lauro de Freitas, São Paulo e Rio, sem medo de dar detalhes demais: “Sei que não devia nunca ter feito aquilo/ (...) Não sei exatamente por que fiz aquilo/ Só sei que foi uma puta duma cagada”.

— Deixo algumas pistas, mas sem informações precisas — diz ele. — Tenho várias versões para cada uma delas. Não sei se a Ana já ouviu a música, mas acho que vai vai gostar, ela é bem-humorada.

O show “Sim e não”, com novos cenário, luz e repertório — inclusive no bis, o famoso “Bailão do Ruivão”, em que Nando cantava pérolas de artistas como Wando e Roupa Nova, e onde ele promete novidades — só estréia em agosto, mas Nando segue, como sempre, na estrada. No feriado do dia 1 de maio ele participa de um show do Kid Abelha na Praia de Copacabana.

Belas imagens e sonoridade pessoal
João Pimentel

Nando Reis não faz feio, é claro, mas não chega a ser um cantor primoroso. Mas o compositor vale pelos dois. Acompanhado por uma banda que justifica o nome, Os Infernais, o ex-Titã faz um disco absolutamente autoral com belas imagens e uma sonoridade bastante pessoal que mistura o rock setentista com a country music . Ele tem uma qualidade que o difere de quase todos os músicos do cenário pop nacional: a música que ele faz tem identidade.

E “Sim e não” (Universal) é a confirmação da maturidade de Nando tanto como letrista — o mais gravado da atualidade — como melodista. Passeando por temas como separações, encontros, sexo, ele vai soltando sua verve roqueira, desfiando pérolas, criando situações poéticas inovadoras.

“Sim” abre o disco como uma declaração de amor: “Sim/ desde que eu te vi/ Eu te quis/ Eu quis te raptar/ Eu fiz um altar/ Pra te receber/ Como um anjo que caiu lá do céu”. Em “Sou dela”, algo de auto-biográfico, como, por sinal, boa parte de sua obra: “Sempre olhei a mim nos outros/ Estava em toda a multidão/ Sendo muito e tendo pouco/ Dando muita explicação”. “Espatódea”, feita para a filha Zoé, é delicada, realçada pela harpa de Cristina Braga. “Como se o mar”, em contraposição, é densa, metafórica. A viola de dez cordas de Walter Villaça dá um colorido especial na bela “Pra ela voltar”. Se “Sim e não” tem um destaque, este é “Caneco 70”. Uma música de quase sete minutos, com cara de diário, feita especialmente para não tocar nas rádios. Afinal, Nando é um artista raro, desses que não esqueceram que antes, de rádio e de gravadora, existia ele, o artista.

Nenhum comentário: