"Tempest", trigésimo-quinto disco de Bob Dylan, com lançamento previsto para o dia 13 de Setembro, está rolando sem parar desde ontem aqui nos meus headphones.
Sem parar mesmo.
Tudo o que fiz de ontem para hoje está impregnado por essas novas 10 canções que acabam de sair da escrivaninha deste que é o maior compositor pop do século XX, e que insiste em permanecer ativo e relevante neste novo século.
Algumas dessas canções são extremamente emocionantes. Outras, de uma truculência ímpar. Impossível ficar indiferente a qualquer uma delas.
"Tempest" é um disco de ruptura em relação ao trabalho recente de Dylan. Aqui, a conversa engrossou mesmo. Os números musicais com jeitão de anos 30 e 40 se foram, dando lugar a rocks, blues e baladas contundentes.
Os temas permanecem mais ou menos os mesmos: maturidade, mortalidade, os desvios da paixão, Deus, os tempos estranhos em que vivemos...
Mas a abordagem mudou drasticamente, ganhando um tom multifacetado estranhamente jovial para um artista de mais de 70 anos de idade.
O nome "Tempest" não foi escolhido à toa.
Parece haver uma tempestade em andamento em quase todas as canções do disco.
É como se todos aqueles Dylans catalogados e personificados de forma notável por vários atores no filme "I''m Not There", de Todd Haynes, de repente decidissem brigar para aparecer numa mesma canção, com opiniões divergentes, e sempre turbulentas.
Isso nunca tinha acontecido antes nos discos de Dylan.
As únicas canções de "Tempest" que escapam desse diagnóstico são o belo rag de abertura "Duquesne Whistle" -- eloquente parceria com o letrista Robert Hunter, ex-parceiro musical de seu amigo Jerry Garcia -- e as duas canções que encerram o disco.
E apesar de Dylan insistir que "Tempest" não tem nada a ver com "The Tempest", a peça derradeira de William Shakespeare, há uma relação bastante próxima entre as palavras que saem das bocas de alguns de seus personagens nas canções desse novo disco e as falas de Próspero, o personagem moralista máximo de todo o Teatro Elizabethano.
"Tempest" não é um álbum "normal" de Bob Dylan.
É mais sombrio, mais pesado, e mais climático que seus últimos discos, até porque Dylan optou por testar essas dez canções em sua última tournée e entrou em estúdio com arranjos já definidos e com os mesmos músicos que estão com ele na estrada há anos, gravando tudo muito rapidamente. Isso, por si só, explica o tom urgente do disco.
Mas, apesar de toda a turbulência que sentimos nas primeiras 8 faixas de "Tempest", tudo ruma para uma enorme reflexão na alegórica faixa título, que reconta o naufrágio do Titanic -- à moda de Próspero, claro! -- anunciando o fim dos tempos com tintas carregadas, e que, ao final, revela ter sido tudo apenas um longo e estranho sonho de um sentinela do navio.
Depois dessa catarse de proporções quase bíblicas, para surpresa geral -- mas não dos fãs de William Shakespeare, eu garanto --, "Tempest" encerra de forma delicada e serena com "Roll On, John", uma saudação à vida e ao companheiro de geração John Lennon -- de quem Dylan nunca foi exatamente amigo, até porque os dois se encontraram pouquíssimas vezes, e sim um grande admirador.
O dado curioso dessa homenagem é que ela faz o resgate de uma velha canção folk tradicional com este mesmo nome, que Dylan tocava muito em seu início de carreira, em 1960, e que regravou recentemente.
Pode até ser que Dylan esteja pensando em encerrar sua carreira nesse disco.
Se for, será um desfecho magnífico, até porque "Tempest" é da mesma grandeza de "Highway 61 Revisited", "Blood On The Tracks", "Infidels" e "Time Out Of Mind" -- se não for maior.
Dylan pode até parar de gravar, mas eu acho pouco provável que ele pare de excursionar. Vira e mexe ele fala que quer poder se dedicar mais à pintura e a seus projetos literários, mas o caso é que ele não consegue mais viver longe dos palcos. Desde que voltou em 1974, naquela clássica tournée com The Band, só parou quando teve problemas de saúde. E, ao que consta, sua saúde está ótima.
Enquanto está na estrada, Dylan sabe exatamente qual o seu lugar no mundo como cidadão.
Já quando se recolhe, ele solta a imaginação e vira Próspero. É inevitável: todo grande artista vira Próspero depois dos 70 anos. Não perdendo a generosidade, está tudo certo...
Não sei quanto a vocês, mas eu sinto muito orgulho de ser contemporâneo desse grande cara aí embaixo.
Que os tempos lhe sejam leves daqui por diante.
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