Imaginem um grupo de British Folk como o Fairport Convention ou o Steeleye Span fazendo vocalizações semelhantes às criadas por Brian Wilson para os Beach Boys...
Ou o trio californiano Crosby Stills & Nash cantando madrigais do Século XVI... Ou os Everly Brothers cantando as canções do “The Yes Album”...
Não imaginem mais nada. Conheçam The Fleet Foxes.
The Fleet Foxes são, em princípio, um grupo folk desalinhado.
Estranhamente surgido em Seattle, faz uma música leve, ensolarada e com toques esotéricos que alguns apressadinhos classificam como folk-pop barroco -- que, diga-se de passagem, tem pouco ou nada a ver com o DNA musical ruidoso e barulhento daquela bela cidade chuvosa da Costa Oeste.
Mas não se engane: apesar da descrição preliminar acima, a música dos Fleet Foxes está longe de ser apenas uma colcha de retalhos musical atemporal.
Suas canções incorporam em suas temáticas influências literárias no mínimo curiosas, que vão desde livros sagrados antigos a poetas simbolistas e modernos (como W B Yeats, aparentemente o favorito deles)
Já a musicalidade dos Fleet Foxes é, na verdade, resultado de uma estranha combinação de talentos musicais bem distintos, e estranhamente compatíveis.
Formado por músicos na faixa dos 30 anos de idade, The Fleet Foxes são comandados pelos vocalistas e guitarristas Robin Pecknold e Skyler Skjelset, e produzem música acústica com frescor, leveza e criatividade raras na cena folk.
Até porque adoram inserir nos arranjos instrumentos exóticos do Século 19 pouco conhecidos pelos músicos atuais -- como o marxophone (que lembra uma cítara) e o violin-uke (estranha combinação de violino com ukelele).
O liquidificador musical da banda incorpora influências as mais diversas -- como Elliott Smith, Bob Dylan e Judee Sill --, a ponto de um crítico dizer que eles parecem ter iniciado seu trabalho em Laurel Canyon (na Grande Los Angeles) em 1970 e permanecido incógnitos até agora.
O primeiro LP dos Fleet Foxes surgiu em 2008, pelo selo Sub Pop, e é surpreendentemente maduro para um grupo estreante.
Recebeu elogios rasgados da crítica, entrou em várias listas de melhores discos do Século 21 até agora, virou objeto de culto de várias tribos musicais pela America e veio seguido de uma tournée que fez muitos amigos pela Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia.
Mas, infelizmente, não proporcionou a eles uma projeção que fosse além da cena indie.
Já o segundo, lançado três anos mais tarde, conseguiu ir bem mais longe.
“Helplessness Blues” é uma coleção de canções extremamente delicadas que conseguem ser ainda mais intensas e envolventes que as do LP de estreia.
Foi recebido com muita festa por vários setores da crítica, o que alavancou se forma substancial as vendagens do disco, apesar das limitações na distribuição do selo SubPop, do qual eram contratados.
Mas, no boca a boca, a popularidade dos Fleet Foxes seguiu crescendo, com novos admiradores surgindo a cada ano.
Estranhamente, no momento em que eles pareciam estar prestes a emplacar, Robin Pecknold e Skyler Skjelset anunciaram que os Fleet Foxes sairíam de cena por alguns anos para que eles dois pudessem ingressar na Universidade.
Agora, seis anos mais tarde, os Fleet Foxes estão de volta, e com um LP belíssimo, que começa exatamente onde “Helplessness Blues” terminava.
"Crack-Up" chega às lojas em Junho nos Estados Unidos e Europa, e é a estreia deles na Nonesuch, um selo forte atrelado ao grupo WEA com capacidade promocional infinitamente superior à da Sub Pop.
"Crack-Up" é quase um disco conceitual, pois algumas de suas canções foram inspiradas livremente nos textos e contos de F. Scott Fitzgerald sobre o fim da vida mansa dos americanos endinheirados na virada dos Anos 20 para os Anos 30, reunidos no livro "The Crack-Up".
E se, ao menos em princípio, F. Scott Fitzgerald não parece adequado ao universo temático dos Fleet Foxes, basta uma audição nas 11 faixas de "Crack-Up" para constatar que, sabe-se lá como, está tudo em casa mais uma vez.
Tudo soa bastante familiar em "Crack-Up", apesar da banda evitar a todo custo zonas de conforto musicais e insistir em atirar para todos os lados. A abertura, com "I Am All That I Need", trafega pelos mesmos temas exotéricos de "Montezuma", faixa de abertura do disco anterior, e consegue ser tão linda e impactante quanto ela. "Third of May/Ōdaigahara" é uma ambiciosa composição com orquestra que possuí vários movimentos e traz vocais em uníssono duplicados infinitamente no mix final, criando ao longo de quase 9 minutos uma atmosfera sonora absolutamente singular e original -- eu, pelo menos, nunca escutei nada remotamente semelhante em toda a minha vida. Não faltam "canções assoviáveis" em "Crack-Up": "If You Need To, Keep Time On Me", "On Another Ocean" e "Fool's Errand" são exemplos claros disso. Mas é nas duas faixas que encerram o disco -- "I Should See Memphis" e "Crack-Up" -- que o bicho pega pra valer, e o panorama anunciado na faixa de abertura começa a se cristalizar. E quando "Crack-Up" termina, a sensação que permanece é de que fizemos uma viagem por algum lugar mágico, em algum tempo incerto, e agora estamos de volta, melhores e diferentes do que éramos antes. Há quanto tempo você não tem essa sensação depois de ouvir um disco?
Robin Pecknold e Skyler Skjelset assinam a produção das 11 faixas de "Crack-Up", que foi quase inteiramente gravado no Electric Lady Studios e no Sear Sound, ambos em Nova York, na segunda metade de 2016, sem pressa alguma. Para este ano, eles prometem uma tournée pela América, Europa, Japão e Austrália -- e, com um pouco de sorte, quem sabe acabam dando uma escapada até aqui num desses Lollapaloozas da vida. Se você ainda não conhece as dissonâncias psicodélicas e o folk barroco recheado de ousadias dos Fleet Foxes, não perca essa chance que "Crack-Up" está oferecendo. Acredite: seus ouvidos ficarão imunes por um bom tempo a essas "besteirinhas de ocasião travestidas de artistas de verdade" que vivem sendo inventadas pela Indústria Fonográfica. Mumford & Sons, por exemplo.
CHICO MARQUES é comentarista, produtor musical e radialista há mais de 30 anos, e edita a revista cultural LEVA UM CASAQUINHO e o blog musical ALTO & CLARO
Lembro bem da primeira vez que ouvi (e vi) a Allman Brothers Band.
Foi em 1974, numa performance ao vivo para o programa da TV americana “Don Kirshner’s Rock Concert” -- que aqui no Brasil era apresentado no ‘Sábado Som”, de Nelson Motta, na TV Globo.
Era uma banda enorme, com dois bateristas -- algo que eu nunca tinha visto antes --, e tocavam “One Way Out”, um bluesaço de Sonny Boy Williamson, de quem, diga-se de passafem, eu nunca tinha ouvido falar.
Gregg Allman era o líder. Cantava e tocava piano e harmonica, e sua voz lembrava um pouco a de Ray Charles. Já aquele lance de Gregg emparelhar os fraseados de sua harmonica com os fraseados da guitarra slide de seu parceiro Richard Betts... bom, aquilo era totalmente novo para mim -- que até então só ouvia bandas de hard rock truculentas e pouco sutis como Led Zeppelin, Deep Purple e Grand Funk Railroad.
Foi ali, com a Allman Brothers Band, diante da primeira TV a cores que apareceu na casa dos meus pais, que rolou o meu batismo com o blues. Não sabia ao certo o que era aquilo, mas era intenso, arrebatador e irresistível.
No final de semana seguinte, descobri na casa da minha prima Silvana dois álbuns duplos da banda: “The Allman Brothers Band Live At The Fillmore East” e "Eat A Peach", e os gravei em dois cassetes BASF C-90. Adorei. Ouvia o dia inteiro.
Pouco tempo depois, chantageei na cara dura minha querida mãe, que odiava meus cabelos enormes e queria porque queria que eu o cortasse no cabeleireiro dela -- uma bicha argentina muito antipática chamada Nestor. Topei fazer a tosa em troca do álbum “Brothers & Sisters“, que acabara de aportar no balcão da Tremendão Discos, loja que ficava logo abaixo do prédio de apartamentos onde morávamos.
Desde então, os Allmans nunca mais saíram da minha vida.
Conforme fui conhecendo melhor o trabalho da Allman Brothers Band, pude entender o que fazia deles uma banda única dentro da cena musical americana da época.
Primeiro, eles eram da Geórgia, um Estado meio fora das rotas principais do blues negro e da country music branca, mas que tinha uma tradiçãoem combinar de forma muito peculiar todas essas tradições musicais quase seculares.
Segundo, eles estavam na ativa desde meados dos anos 60, chegaram a fazer algum sucesso na cena da Califórnia com o nome Hourglass -- em dois LPs muito bons, que resistiram bem ao teste do tempo --, e estavam habituados a fazer jams prolongadas em shows de abertura para medalhões do rock psicodélico como The Doors e Quicksilver Messenger Service.
Por último, a sintonia fina entre Gregg Allman – ótimo compositor e arranjador – e seu irmão Duane – o guitarrista branco mais requisitado nos estúdios do Sul dos Estados Unidos naqueles tempos – abriam horizontes musicais ilimitados para a banda, que sempre contou com excelentes músicos.
Os Allmans eram atrevidos a ponto de flertar abertamente com temas de jazz ao mesmo tempo em que mesclavam todos os elementos country, folk e blues que pegavam pela frente.
Apesar de serem musicalmente inigualáveis, tiveram seu formato musical copiado por inúmeras outras bandas que gravavam para a mesma Capricorn Records, da qual eram contratados -- mas nunca com o mesmo sucesso e com a mesma grandeza musical. O caso é que por melhor que fosse o trabalho desenvolvido nos Anos 70 por bandas como Lynyrd Skynyrd, Marshall Tucker Band, Grinderswitch, Ozark Mountain Daredevils, Outlaws e Wet Willie, nenhuma delas tinha estofo musical para conseguir emparelhar com os Allmans, mesmo nos momentos menos expressivos de sua carreira.
Tragédias pessoais, como as mortes de Duane Allman e do baixista Berry Oakley em acidentes de motocicleta em 1971 e 1972, – situaram a Allman Brothers Band naquele mesmo cenário sulista mítico e trágico dos romances de Williams Faulkner. Se por um lado essas “baixas” dificultaram bastante as coisas para eles em termos musicais, por outro resultaram na melhor promoção que poderiam conquistar perante a opinião pública. É sempre bom lembrar que, naquele momento histórico, a morte estava por toda parte: o saldo de jovens americanos mortos no Vietnam beirava o intolerável e a continuidade da Guerra era praticamente insustentável. Isso tudo fez com, apesar de todas as adversidades, a resistência exercida pela Allman Brothers Band na cena musical refletisse o espírito da América combalida com a derrota no Vietnam tentando se reerguer.
Pois eles souberam aproveitar essa oportunidade. A capa do LP ‘Brothers and Sisters” (1973), com fotos de crianças brincando num gramado e arborizado num belo dia de sol, além de uma bela foto central com todos os integrantes sobreviventes da banda reunidos com suas mulheres, seus filhos e seus amigos, reflete bem esse sentimento que era comum a inúmeras famílias americanas. As dificuldades em manter o astral alto durante a gravação foram muitas. Mas eles conseguiram chegar ao final. E hoje ninguém questiona o fato de que "Brothers & Sisters" é o melhor disco de estúdio gravado pela banda. Incrivelmente popular ao longo dos anos 70, a Allman Brothers Band entrou nos anos 80 com o pé esquerdo.
A falência inesperada da Capricorn Records – da qual eram mais do que meros contratados, eram quase sócios – coincidiu com a saturação do chamado “rock sulista”. A Allman Brothers Band até tentou se adequar às novas regras do mercado promovendo alterações drásticas em sua identidade musical, mas quebraram a cara em dois discos muito fracos, que venderam muito pouco, e levaram a banda a sair de cena, hibernar por uns tempos, e dar lugar a carreiras solo de seus integrantes. Mas como nem os trabalhos solo de Gregg Allman, e nem os de Richard Betts, conseguiram decolar, a Allman Brothers não teve outra alternativa senão voltar ao batente no final dos anos 80. Em princípio, para pagar as dívidas contraídas ao longo de quase uma década.
E então, a Allman Brothers Band voltou. E voltou renovada, com um vigor surpreendente, promovendo um LP extremamente bom intitulado “Seven Turns”, com o reforço do então jovem e talentoso guitarrista Warren Haynes, que vinha da banda do cantor country David Allan Coe. Daí em diante, os Allmans nunca mais perderam o rumo artístico. Nunca mais gravaram discos irrelevantes como aqueles dos Anos 80. Resgataram pouco a pouco todo o prestígio que tinham nos anos 70. E não se deixaram abalar quando tiveram que demitir o guitarrista Richard Betts, membro fundador da banda, por atitudes pouco ou nada profissionais, e o substituíram pelo jovem (18 anos) guitarrista Derek Trucks, sobrinho do baterista Butch Trucks. Era como se a banda tivesse o corpo fechado depois de tantas adversidades, e nada mais conseguisse abalar seus alicerces.
Da virada dos Anos 2000 para cá, os Allmans viraram a jam-band definitiva. O gosto da banda pelos palcos e a habilidade em reinventar os mesmos números do repertório de uma apresentação para outra, mais o inegável fato de que se tornaram grandes anfitriões para amigos músicos que eram convidados para jam-sessions, fez deles a banda mais querida da América, arrebatando diversas gerações diferentes para ver seus shows -- algo que, até então, só o Grateful Dead conseguia viabilizar. Daí, quando a Allman Brothers Band encerrarou atividades em 2014 devido à saúde frágil de Gregg Allman, que impedia a banda de excursionar, os guitarristas Warren Haynes e Derek Trucks agradeceram a todos os fãs por todo o apoio ao longo de todos esses anos, e deixaram claro que o espírito da Allman Brothers Band permaneceria vivo em suas bandas paralelas: Gov't Mule (power-trio de Haynes) e Tedeschi-Trucks Band (superbanda de Trucks com seu mulherão, a guitarrista de blues Susan Tedeschi).
Desde então, como não poderia deixar de ser, todo ano surge no mercado algum novo álbum duplo ou triplo ao vivo resgatando algum momento glorioso do passado dos Allmans. Mas dessa vez, a Peach Records, selo do qual os ex-integrantes da banda são sócios, resolveu chutar o balde. Acaba de lançar "The Fox Box”, uma caixa com 8 cds apresentando a íntegra dos 3 shows que a banda fez no Fox Theatre em Atlanta, em 2004, para celebrar o lançamento do ótimo "Hittin' The Note", o disco de estúdio derradeiro deles.
Desnecessário dizer que o astral das performances em "The Fox Box" é altíssimo, que todos estão cantando e tocando extremamente bem, que o vasto repertório da banda se espalha de forma deliciosa por quase 10 anos de música, e que mesmo aqueles números que se repetem nos setlists de uma noite para outra, reaparecem sempre com roupagens bem diferentes. "Dreams", por exemplo, apresenta cada noite solos de um membro diferente da banda. Mas é assim mesmo: quando uma banda tem tesão pelo palco, esse tipo de coisa acontece naturalmente. "The Fox Box" é uma excelente pedida para quem quiser guardar uma recordação bem legal da Allman Brothers Band ao vivo em seus últimos anos de vida, compondo com os excelentes álbuns clássicos "Live At The Fillmore East" (1971), "Wipe The Windows, Check The Oil, Dollar Gas" (1977), "Live At Great Woods" e os dois volumes de "An Evening With The Allman Brothers Band" (1994-1995). Sem contar que é bem superior em termos de qualidade de performance aos festejados shows realizados no Beacon Theatre em Nova York. Por mais que eles gostassem da Big Apple, aqui a velha banda está tocando em Atlanta, Georgia -- ponto de partida de toda a longa aventura que viveram juntos por quase 50 anos. E, convenhamos: mesmo para uma banda dura na queda como os Allmans, não há lugar como o lar.
CHICO MARQUES é comentarista, produtor musical e radialista há mais de 30 anos, e edita a revista cultural LEVA UM CASAQUINHO e o blog musical ALTO & CLARO