segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Mick e eu (por Joaquim Ferreira dos Santos para O GLOBO)


Aí eu, que sou o da direita da foto, cheguei para o Mick Jagger, que é o da esquerda, e tentei, como me é do estilo, ser gente boa. “Please to meet you, hope you guess my name”. Como todos sabem estes são os primeiros versos de “Sympathy for the devil”, um dos maiores sucessos dos Rolling Stones. Já deviam ter feito a piadinha tantas vezes que o cara nem se mexeu. Ô saco. Silêncio sepulcral, e com toda razão. Mick evidentemente não sabia o meu nome. Muito menos podia retribuir qualquer prazer especial em me encontrar como dizia a letra. Por quem sois? — eu julguei tê-lo ouvido, dublado com sotaque de Trás-os-Montes. Eu era um Zé Ninguém, um Zé Carioca com oclinhos John Lennon. Coloquei no rosto um esgar cético, sublinhei com o dedo sobre os lábios um jeitão de quem já tinha visto o diabo nessa vida e tentei soar frio diante do ídolo. Tudo disfarce. Tudo mentira, falcatrua de quinta. Eu era mais um jornalista, com inglês pavoroso, querendo uma entrevista. Would you, please ? Resolver a pauta do dia e, em seguida, comer um diabólico no Gordon. Um mercenário da curiosidade alheia querendo driblar o ferrolho inglês. O motorista que estava com ele também se chamava Joaquim, mas até aí morreu o abominável homem das neves. Resolvi num raro instinto de dignidade e zelo pela liturgia do cargo não tentar mais uma piadinha como forma de aproximação. Mostrei os documentos. ABI. Kim. Joa. Joa Kim. Quero falar contigo. Be nice . Sentaí, mermão. Era uma técnica de reportagem que eu tinha aprendido com Neném Prancha, o filósofo do futebol. Herbert Moses não recomendaria. Zuenir Ventura, que era meu chefe na “Veja” e tinha me escalado enviado especial para a missão, talvez. Desconheci os sábios da imprensa. Ouvi a voz do divino, obedeci ao destino, como está no samba “Madureira chorou”. E fui. Nenén Prancha dizia que o jogador devia ir na bola como se fosse num prato de comida. Eu não tinha muita alternativa. Matei quase todas as aulas do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF. Tentava ali, tête-à-tête com Mick Jagger, adaptar para a reportagem as únicas lições que tinha ouvido até aquele momento com alguma atenção: as boutades dos campos de várzea e os riffs das guitarras que Jair de Taumaturgo, durante a década de 60, colocou no “Hoje é dia de rock” da Rádio Mayrink Veiga. Cruzei Neném Prancha com o meio é a mensagem de McLuhan. Fui faminto enfrentar a fonte. Disse. Mick, seguinte, ouve só. A história da Humanidade não moveu um centímetro em qualquer direção quando se deu esse encontro, em dezembro de 1975. Os anais da ABI não tomaram conhecimento. É mister e monsieur informar que o pesquisador Nélio Rodrigues faria na década de 90 um curtidíssimo livro, “Os Rolling Stones no Brasil”, uma história das passagens dos componentes do grupo em férias por aqui. Tudo gente normal, atrás dos valores básicos da civilização quando ela se põe em chinelos. Mulhas numas, mar noutras, a mente morta das marmotas. Eu, aceso, Neném Prancha aos gritos no cangote, corria atrás da notícia viva no paraíso tropical. Nélio registrou para a posteridade meu encontro com Mick, e eu lhe sou grato. Coloque a cena acima com mais duas ou três linhas de méritos, do tipo: em 2002 Cafu me deu para segurar, no avião da volta do Japão, a Taça do Mundo; em 2005 comecei uma crônica com a palavra “aliás”; em 2006 outra com “aí eu” — e eis o melhor de um currículo magro. Eu havia escutado todos os LPs, Mick resolveu ouvir as perguntas. Ele passava as noites na boate Sótão, templo doidinho da galeria Alaska, discotecou para o programa do Big Boy na Rádio Mundial e chegou a ver um show da Barca do Sol no Teatro Casa Grande. Todos estão mortos, eu quase e Mick, como veremos sábado, a mil. Trinta anos atrás, quando sentamos para a foto ao lado, no jardim da casa da atriz Florinda Bolkan — por sinal ainda não morta mas totalmente desaparecida — Jagger estava lorde inglês. O fino do rock. Pagou US$ 5 mil para passar, com a mulher, Bianca Jagger, e a filha, Jade, duas semanas de papo pro ar naquela mansão da Joatinga. No entanto, gentil, topava que o repórter blasé , cabelo anunciando o corte Chitãozinho-Xororó de 20 anos depois, perguntasse o que desse na telha. Bissexualismo, Nixon, rock depois dos 40, se havia paz possível no desencontro dos amantes e se tinha sido mesmo ele — confessa, vai — quem esfaqueou Brian Jones antes de jogar o corpo na piscina. Definitivamente, eu tinha aprendido as lições de jornalismo dadas por Neném Prancha. Conversamos por 20 minutos no jardim. Ainda bem que na semana seguinte foram impressas duas páginas da “Veja” com todas as palavras ditas. Não me lembro de qualquer frase. O tempo apaga o que é dor, o que é prazer também. Acho que Bianca fazia topless no jardim da Joatinga. A coitada não tem qualquer culpa. Também não foi por causa dela. O tempo passa a borracha e o que sobrevive o vento da Joatinga joga no mar. Lembro que meu gravador enguiçou. Mick, bad boy em férias, foi lá dentro pegar o dele. Disse one, two, three e bateu palma para testar. A fita gravada faria o orgulho de qualquer museu do repórter. Também foi parar embaixo de alguma pedra da Barra. Escafedeu-se como os pensamentos por trás dos oclinhos do repórter. Acho, e espero que algum novo discípulo jornalístico de Neném Prancha confirme quando ele chegar, que Mick admitiu na fita perdida. Sim, eu matei Brian Jones. Não tenho certeza. Pode ser. Apure-se. Ventava muito. Pela expressão distante, o repórter pensava no paradeiro de alguma Angie ou Lady Jane. Todas até hoje desaparecidas.

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