por Chico Marques
Uma das (poucas) vantagens de estar ficando velho é a sensação aconchegante de que nossa memória está abarrotada de impressões inesquecíveis da primeira vez que experimentamos algo que até hoje nos traz muito prazer -- como, por exemplo, a primeira vez que ouvimos nossos discos favoritos.
No caso específico desse tampinha novaiorquino do Bronx que completa 75 anos no próximo dia 13 de Outubro, e que atende pelo nome Paul Frederic Simon, eu lembro perfeitamente de quando seu primeiro trabalho solo sem Art Garfunkel chegou às lojas no segundo semestre de 1972, e eu tive o prazer de escutá-lo numa audição coletiva numa loja daqui em Santos, a saudosa Tremendão Discos, gerenciada pelo meu amigo (até hoje) Lourenço Custódio.
A maioria dos que estavam na loja torceu o nariz para o disco -- o comentário geral era de que Simon fugira demais do padrão sonoro que vinha sendo adotado nos discos da dupla.
Já eu gostei bastante do que ouvi. Não simpatizei muito com "Me & Julio Down By The Schoolyard", estranhei um pouco "Mother & Child Reunion", mas tudo mais esstava no mesmo nível de excelência de Bridge Over Troubled Water, lançado dois anos antes.
Fiquei encantado logo de cara com "Everything Put Together Falls Apart" e "Duncan", até porque na época eu estava começando a estudar inglês, e, mesmo com a pouca bagagem que tinha, já conseguia perceber o quão densas em termos poéticos eram as letras dessas canções.
A foto da capa do disco, com Simon agasalhado, e com sua cabeça protegida por um capuz de pele de urso, indicava claramente que ele estava pronto para encarar tempo ruim, caso crítica e público desaprovassem seu disco de estreia.
Mas felizmente não foi isso que aconteceu, e Paul Simon 1972 foi extremamente bem sucedido, tanto em termos artísticos quanto em termos comerciais.
Seu segundo LP, There Goes Rhymin' Simon, lançado no ano seguinte, 1973, já rendeu uma experiência bem diferente para mim.
Esse eu já ouvi sozinho, em casa, e bem alto.
Era um disco mais direto e mais conciso, com canções que grudavam nos ouvidos após a primeira audição, e um tom nostálgico bem alegrinho que era típico da época, e que também estava presente em Don't Shoot Me, I'm Only The Piano Player de Elton John e outros discos.
Mas foi no seu disco seguinte de Simon que veio o "grande tapa na cara", e a certeza inabalável de que não havia na cena musical do mundo inteiro nenhum outro compositor igualamente gabaritado e nenhum outro performer tão meticuloso na hora de montar um disco.
Still Crazy After All These Years (1975) me deixou completamente boquiaberto quando o ouvi pela primeira vez no apartamento do meu saudoso amigo Paulinho Filgueiras.
Vi logo de cara que se tratava de uma coleção de canções urbanas com uma certa atmosfera jazzística em comum.
Mas... que coleção de canções!
Uma melhor do que a outra, encadeadas numa sintonia tão fina que conseguia mascarar perfeitamente o fato do disco ser uma colcha de retalhos muito bem alinhavada.
É até hoje um de meus discos favoritos.
Acompanhei com muita atenção tudo o que Paul Simon produziu desde então.
Confesso que nunca tive saco para aturar a rigidez conceitual de discos como Graveland (1986) e Rhythm Of The Saints (1990), ou projetos fechados como a trilha sonora do filme One-Trick Pony (1980) e o score original do estranhíssimo Musical da Broadway The Capeman (1996).
Preferia mil vezes quando ele chegava com algum trabalho sem muita unidade -- como Hearts and Bones (1983), que é um disco magnífico, apesar de não ter pé nem cabeça.
Já You're The One (2000) é um álbum inspiradíssimo, gravado quando ele estava começando a namorar com Edie Brickell, e predomina nele aquele mesmo tom leve e descompromissado dos discos dela.
E tem ainda Surprise (2006), que não só esbanja um frescor musical delicioso como vem recheado de ótimas canções que acabaram injustamente esquecidas.
Confesso que nunca consegui entender porque o público cativo de Paul Simon tende a aprovar sem ressalvas seus discos mais experimentais, e torce o nariz quando ele parte para um trabalho mais descomplicado.
Stranger to Stranger é o 12º LP de estúdio de Simon, e saiu há dois meses pelo selo Concord -- que já havia lançado So Beautiful Or So What? em 2011, um belo lote de canções sobre amor, morte, paternidade tardia, espiritualidade, e o amor pela música.
Se no disco anterior Simon procurava resgatar seu background folk urbano em canções introspectivas densas e reflexivas, aqui ele chuta tudo para o alto e volta a falar das ruas, enveredando por experiências musicais exóticas e mesclando instrumentação etnica com loops eletrônicos e muita percussão.
Stranger to Stranger vem repleto de canções truculentas e inconformadas com a miséria mundial, com a estupidez fundamentalista, e com a boçalidade política reinante na Campanha Presidencial Americana -- Simon não se declara nem democrata, nem republicano, mas odeia tudo o que Donald Trump representa --, e o único defeito dessas canções reside no fato delas parecem ser demasiadamente frágeis para suportar molduras tão pesadas.
Abre com "The Werewolf", um libelo contra a estupidez e prepotência reinantes por todo lado. Vem seguida da estranha mas cativante "Wristband", sobre um cantor que sai para fumar um cigarro, ouve a porta do palco se fechar, percebe que deixou sua pulseira de identificação no camarim e tem que enfrentar um leão de chácara 2 metros de altura, que não o reconhece. Qualquer semelhança entre o que acontece a partir daí e a ironia judaica implacável de certos contos de Isaac Bashevis Singer não é -- mas não é mesmo! -- mera coincidência.
As canções que compõem Stranger to Stranger ostentam muita percussão. Quatro das primeiras seis faixas não tem guitarra alguma, e seguem bem além dos quatro minutos regulamentares, conectando-se sutilmente umas às outras. O resultado é curioso, mas francamente acho que seria muito mais interessante se o conceito fosse menos intrincado e mais casual.
Talvez não haja canção que melhor demonstre onde Stranger to Stranger erra na dose do que "The Riverbank", que descreve o funeral de um veterano que cometeu suicídio -- e que poderia ser uma canção tão contundente quanto "Powderfinger" de Neil Young, que aborda o mesmo tema, mas é estranha e truculenta demais, e irônica de menos.
Para o bem ou para o mal, Stranger to Stranger tem tudo a ver com Graceland (1986) e The Rhythm of the Saints (1990).
É tão ousado e tão experimental quanto os dois, e mescla influências musicais de vários cantos do mundo com a destreza e a meticulosidade habituais -- mas sem a organicidade que faria com que suas gravações soassem efetivamente "vivas".
Produzido como sempre pelo parceiro Roy Halee, levou nada menos que cinco anos para ser gravado no estúdio caseiro de Simon em New Canaan, Connecticut.
É um sucesso de público inquestionável: está no primeiro posto das paradas na Inglaterra e no terceiro posto da Billboard americana.
Jonathan Bernstein, da revista Entertainment Weekly, escreveu que o álbum é “uma coleção das mais ousadas, cheia de novos conceitos e sons que empurram as fronteiras musicais de Simon além do nunca”.
Randy Lewis, do Los Angeles Times, disse que “isso é música em sua forma mais ousada e relevante, sentimento de um representante septuagenário da velha guarda do rock que é, sem dúvida, tão potente como qualquer coisa de artistas aparentemente de vanguarda com um terço de sua idade.”
Ben Rosner, da revista Paste, chamou o álbum de “testemunho de um artista que se recusa a ser comum e rotulado. Com este álbum, Paul Simon criou o seu melhor trabalho em muitos anos.” e Andy Gill, do The Independent, o considerou seu melhor trabalho em muitos anos e declarou que "poucos compositores podem misturar seriedade e capricho como Paul Simon.”
Tem mais: Steve Smith do The Boston Globe afirmou que “é o mais rico manifesto de Simon desde Graceland” e Jim Beviglia de Americana Songwriter declarou que “este álbum apresenta Paul Simon no seu momento mais inquieto, tanto em letras questionando tudo quanto em sons... uma inquietação múltipla infinitamente fascinante.”
Eu, se fosse um crítico de verdade, e não um mero palpiteiro musical, teria que concordar com o que todos disseram, pois não tenho a menor dúvida de que Simon jamais foi tão ousado a ponto e nunca correu tantos riscos quanto neste disco: seu esforço artístico é realmente admirável.
Então, vou discordar, com toda a gentileza e o respeito que Paul Simon merece. Porque eu não consegui gostar do disco. E certamente jamais irei ouví-lo de novo. Francamente, não saberia como acomodá-lo na estante de discos da minha memória afetiva musical, ao lado de Still Crazy After All These Years, There Goes Rhymin' Simon, Hearts and Bones , You're The One, Surprise...
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DISCOGRAFIA COMENTADA
AMOSTRAS GRÁTIS
Uma das (poucas) vantagens de estar ficando velho é a sensação aconchegante de que nossa memória está abarrotada de impressões inesquecíveis da primeira vez que experimentamos algo que até hoje nos traz muito prazer -- como, por exemplo, a primeira vez que ouvimos nossos discos favoritos.
No caso específico desse tampinha novaiorquino do Bronx que completa 75 anos no próximo dia 13 de Outubro, e que atende pelo nome Paul Frederic Simon, eu lembro perfeitamente de quando seu primeiro trabalho solo sem Art Garfunkel chegou às lojas no segundo semestre de 1972, e eu tive o prazer de escutá-lo numa audição coletiva numa loja daqui em Santos, a saudosa Tremendão Discos, gerenciada pelo meu amigo (até hoje) Lourenço Custódio.
A maioria dos que estavam na loja torceu o nariz para o disco -- o comentário geral era de que Simon fugira demais do padrão sonoro que vinha sendo adotado nos discos da dupla.
Já eu gostei bastante do que ouvi. Não simpatizei muito com "Me & Julio Down By The Schoolyard", estranhei um pouco "Mother & Child Reunion", mas tudo mais esstava no mesmo nível de excelência de Bridge Over Troubled Water, lançado dois anos antes.
Fiquei encantado logo de cara com "Everything Put Together Falls Apart" e "Duncan", até porque na época eu estava começando a estudar inglês, e, mesmo com a pouca bagagem que tinha, já conseguia perceber o quão densas em termos poéticos eram as letras dessas canções.
A foto da capa do disco, com Simon agasalhado, e com sua cabeça protegida por um capuz de pele de urso, indicava claramente que ele estava pronto para encarar tempo ruim, caso crítica e público desaprovassem seu disco de estreia.
Mas felizmente não foi isso que aconteceu, e Paul Simon 1972 foi extremamente bem sucedido, tanto em termos artísticos quanto em termos comerciais.
Seu segundo LP, There Goes Rhymin' Simon, lançado no ano seguinte, 1973, já rendeu uma experiência bem diferente para mim.
Esse eu já ouvi sozinho, em casa, e bem alto.
Era um disco mais direto e mais conciso, com canções que grudavam nos ouvidos após a primeira audição, e um tom nostálgico bem alegrinho que era típico da época, e que também estava presente em Don't Shoot Me, I'm Only The Piano Player de Elton John e outros discos.
Mas foi no seu disco seguinte de Simon que veio o "grande tapa na cara", e a certeza inabalável de que não havia na cena musical do mundo inteiro nenhum outro compositor igualamente gabaritado e nenhum outro performer tão meticuloso na hora de montar um disco.
Still Crazy After All These Years (1975) me deixou completamente boquiaberto quando o ouvi pela primeira vez no apartamento do meu saudoso amigo Paulinho Filgueiras.
Vi logo de cara que se tratava de uma coleção de canções urbanas com uma certa atmosfera jazzística em comum.
Mas... que coleção de canções!
Uma melhor do que a outra, encadeadas numa sintonia tão fina que conseguia mascarar perfeitamente o fato do disco ser uma colcha de retalhos muito bem alinhavada.
É até hoje um de meus discos favoritos.
Acompanhei com muita atenção tudo o que Paul Simon produziu desde então.
Confesso que nunca tive saco para aturar a rigidez conceitual de discos como Graveland (1986) e Rhythm Of The Saints (1990), ou projetos fechados como a trilha sonora do filme One-Trick Pony (1980) e o score original do estranhíssimo Musical da Broadway The Capeman (1996).
Preferia mil vezes quando ele chegava com algum trabalho sem muita unidade -- como Hearts and Bones (1983), que é um disco magnífico, apesar de não ter pé nem cabeça.
Já You're The One (2000) é um álbum inspiradíssimo, gravado quando ele estava começando a namorar com Edie Brickell, e predomina nele aquele mesmo tom leve e descompromissado dos discos dela.
E tem ainda Surprise (2006), que não só esbanja um frescor musical delicioso como vem recheado de ótimas canções que acabaram injustamente esquecidas.
Confesso que nunca consegui entender porque o público cativo de Paul Simon tende a aprovar sem ressalvas seus discos mais experimentais, e torce o nariz quando ele parte para um trabalho mais descomplicado.
Stranger to Stranger é o 12º LP de estúdio de Simon, e saiu há dois meses pelo selo Concord -- que já havia lançado So Beautiful Or So What? em 2011, um belo lote de canções sobre amor, morte, paternidade tardia, espiritualidade, e o amor pela música.
Se no disco anterior Simon procurava resgatar seu background folk urbano em canções introspectivas densas e reflexivas, aqui ele chuta tudo para o alto e volta a falar das ruas, enveredando por experiências musicais exóticas e mesclando instrumentação etnica com loops eletrônicos e muita percussão.
Stranger to Stranger vem repleto de canções truculentas e inconformadas com a miséria mundial, com a estupidez fundamentalista, e com a boçalidade política reinante na Campanha Presidencial Americana -- Simon não se declara nem democrata, nem republicano, mas odeia tudo o que Donald Trump representa --, e o único defeito dessas canções reside no fato delas parecem ser demasiadamente frágeis para suportar molduras tão pesadas.
Abre com "The Werewolf", um libelo contra a estupidez e prepotência reinantes por todo lado. Vem seguida da estranha mas cativante "Wristband", sobre um cantor que sai para fumar um cigarro, ouve a porta do palco se fechar, percebe que deixou sua pulseira de identificação no camarim e tem que enfrentar um leão de chácara 2 metros de altura, que não o reconhece. Qualquer semelhança entre o que acontece a partir daí e a ironia judaica implacável de certos contos de Isaac Bashevis Singer não é -- mas não é mesmo! -- mera coincidência.
As canções que compõem Stranger to Stranger ostentam muita percussão. Quatro das primeiras seis faixas não tem guitarra alguma, e seguem bem além dos quatro minutos regulamentares, conectando-se sutilmente umas às outras. O resultado é curioso, mas francamente acho que seria muito mais interessante se o conceito fosse menos intrincado e mais casual.
Talvez não haja canção que melhor demonstre onde Stranger to Stranger erra na dose do que "The Riverbank", que descreve o funeral de um veterano que cometeu suicídio -- e que poderia ser uma canção tão contundente quanto "Powderfinger" de Neil Young, que aborda o mesmo tema, mas é estranha e truculenta demais, e irônica de menos.
Para o bem ou para o mal, Stranger to Stranger tem tudo a ver com Graceland (1986) e The Rhythm of the Saints (1990).
É tão ousado e tão experimental quanto os dois, e mescla influências musicais de vários cantos do mundo com a destreza e a meticulosidade habituais -- mas sem a organicidade que faria com que suas gravações soassem efetivamente "vivas".
Produzido como sempre pelo parceiro Roy Halee, levou nada menos que cinco anos para ser gravado no estúdio caseiro de Simon em New Canaan, Connecticut.
É um sucesso de público inquestionável: está no primeiro posto das paradas na Inglaterra e no terceiro posto da Billboard americana.
Jonathan Bernstein, da revista Entertainment Weekly, escreveu que o álbum é “uma coleção das mais ousadas, cheia de novos conceitos e sons que empurram as fronteiras musicais de Simon além do nunca”.
Randy Lewis, do Los Angeles Times, disse que “isso é música em sua forma mais ousada e relevante, sentimento de um representante septuagenário da velha guarda do rock que é, sem dúvida, tão potente como qualquer coisa de artistas aparentemente de vanguarda com um terço de sua idade.”
Ben Rosner, da revista Paste, chamou o álbum de “testemunho de um artista que se recusa a ser comum e rotulado. Com este álbum, Paul Simon criou o seu melhor trabalho em muitos anos.” e Andy Gill, do The Independent, o considerou seu melhor trabalho em muitos anos e declarou que "poucos compositores podem misturar seriedade e capricho como Paul Simon.”
Tem mais: Steve Smith do The Boston Globe afirmou que “é o mais rico manifesto de Simon desde Graceland” e Jim Beviglia de Americana Songwriter declarou que “este álbum apresenta Paul Simon no seu momento mais inquieto, tanto em letras questionando tudo quanto em sons... uma inquietação múltipla infinitamente fascinante.”
Eu, se fosse um crítico de verdade, e não um mero palpiteiro musical, teria que concordar com o que todos disseram, pois não tenho a menor dúvida de que Simon jamais foi tão ousado a ponto e nunca correu tantos riscos quanto neste disco: seu esforço artístico é realmente admirável.
Então, vou discordar, com toda a gentileza e o respeito que Paul Simon merece. Porque eu não consegui gostar do disco. E certamente jamais irei ouví-lo de novo. Francamente, não saberia como acomodá-lo na estante de discos da minha memória afetiva musical, ao lado de Still Crazy After All These Years, There Goes Rhymin' Simon, Hearts and Bones , You're The One, Surprise...
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