sexta-feira, junho 02, 2006
Encaixotando os Beatles, e Deixando a Exumação Para Mais Tarde (por Chico Marques)
Não sou fã dos Beatles. Nunca fui, exatamente. Admiro Paul McCartney, e é só. Mesmo assim, ouvi muito, ao longo dos meus 49 anos, todos os discos dos 4 de Liverpool. Lembro bem que os LPs originais da Capitol americana e da EMI Parlophone inglesa e alemã tinham um som espetacular, de uma clareza extraordinária. Mas então, em 1987, resolveram digitalizar esses LPs originais, e o áudio ficou extremamente comprimido e sem presença. Um desastre. Todo mundo reclamou na ocasião. Só agora, 22 anos depois, isso foi consertado, com as recém-lançadas caixas de CDs "Stereo" e "Mono", onde finalmente a clareza original dos fonogramas analógicos consegue ser "compreendida" pelos sistemas digitais. E o resultado final é muito satisfatório, semelhante ao dos LPs originais. Daí, eu pergunto: Faz sentido ter dado uma volta tão grande e tão demorada para, no final das contas, cair de volta (mais ou menos) no ponto de partida dessa história toda?
O mesmo argumento vale para a indústria editorial em relação aos Beatles. Nunca uma banda foi alvo de tantos livros e tantos estudos, biográficos ou não -- que, diga-se de passagem, sempre tiveram editor garantido e público certo. Mas, de dois anos para cá, a quantidade de livros sobre os Beatles disponíveis nas prateleiras das livrarias aumentou drasticamente, e não pára de crescer. E as edições ficaram cada vez mais caras e luxuosas. E as revelações sobre a vida privada dos 4 de Liverpool ganharam tons fortes, e, quando não são picantes, são invariavelmente embaraçosas, a ponto daquela famosa (e infame) biografia de Albert Goldman sobre John Lennon, publicada logo após sua morte, parecer inofensiva no contexto atual. Eu pergunto: faz sentido continuar investigando de forma tão implacável oito anos na vida de quatro garotos suburbanos que, de uma hora para outra, viraram ícones mundiais, mas, no fundo (com a provável excessão de John Lennon), só queriam ter direito a um pouco de privacidade e uma vida familiar reservada?
A resposta para as duas perguntas é a mesma: não. É muito pão para pouco recheio. Só os desvios causados por anos e anos de Beatlemania justificam todos esses excessos.
É compreensível que Paul McCartney e Ringo Starr, e também os herdeiros de John Lennon e George Harrison, queiram fazer com que a Indústria dos Beatles rentabilize bem ano após ano, e com isso garanta um futuro muito tranquilo para todos os envolvidos. Se essa indústria não cansa de reinventar os mesmos produtos de tempos em tempos, é porque certamente existe demanda para isso. No entanto, me parece uma ilusão achar que uma nova legião de beatlemaníacos surge a cada novo relançamento de discos originais. Pesquisas indicam que quem realmente abastece essa indústria são os beatlemaníacos habituais. Claro que sempre surgem alguns novos admiradores, que ficam encantados com o frescor musical dos inventores do "power pop", mas estes não chegam a formar legiões. A última vez que surgiram em grande quantidade foi em 2000, com o lançamento do antologia "Beatles #1", que foi um enorme sucesso popular.
O caso é que a mitologia Beatle, calcada em questões comportamentais típicas dos anos 60 e 70, não possui poder de fogo para seduzir um garoto de 15 anos nos dias de hoje. O mundo mudou muito. Fazer parte de uma banda de rock hoje em dia é algo totalmente prosaico, sem grandes idealizações, deixou de ser um ideal romântico. Hoje, um fã do Wilco, do REM, ou do Radiohead, troca idéias com os membros da banda através de seus websites. Só o palco o separa de seu artista favorito. Com isso, o próprio conceito da idolatria pop foi colocado em xeque, graças ao fenômeno das redes sociais virtuais, que diminuíram a distância entre "ídolos' e "devotos". Por conta disso, as chances de surgirem novos Mark Chapmans pelas ruas passou a ser quase nula. Lugar de doidinho agora é na web, e olhe lá.
Hoje, com os artistas cada vez mais próximos de seu público, é tudo olho no olho. Paul McCartney por exemplo, tocou recentemente com sua banda em cima da marquise do Ed Sullivan Theater, em Nova York, a convite de Dave Letterman, e promoveu uma grande festa na Avenida Broadway -- justamente o oposto daquele atrapalhado e enigmático (e também elusivo) concerto no telhado de Apple Records, em 1969, voltado para os umbigos dos quatro Beatles, que mal se entreolhavam enquanto tocavam. Quer melhor sinal de que os tempos mudaram (para muito melhor) do que este?
O que eu acho mais curioso nos Beatles é a dificuldade dos executivos que trabalham para eles em criar um marketing específico para o grupo. Seus quatro integrantes possuem apelos de público muito antagônicos, que se anulam com alguma frequência, dificultando estratégias de marketing que englobem os quatro integrantes da banda. John Lennon, o grande ícone rebelde, brutalmente assassinado em 1980, perde facilmente seu apelo como mártir do rock and roll diante da delicadeza espiritual de George Harrison ao aceitar sua morte anunciada de forma serena e introspectiva em 2002. E, como se isso não bastasse, Paul McCartney e Ringo Starr insistem em continuar vivos, ativos e criativos. Se ao menos eles se aposentassem, tudo ficaria mais fácil para os marquetólogos de plantão. Mas eles não qurem. Nem pensam nisso. Ainda bem.
Quanto ao carnaval em torno das reedições (numeradas, caríssimas) dos Beatles nas caixas "Mono" & "Stereo", tudo isso só se justifica por conta desses vinte anos de jejum beatlemaníaco desde aquelas medonhas edições em CD de 1987. Mas é bom lembrar que essas novas edições que acabam de chegar ao mercado não são "remixagens". São "remasters" digitais de mixes analógicos originais da época. Quem quiser "remixagens" de verdade, ainda vai ter que esperar até, pelo menos, 2012, quando os Beatles completam 50 anos do lançamento de seu primeiro disco, "Please Please Me". Aí sim, deve ter início mais uma temporada de "reedições definitivas" de todos os discos da banda, com restaurações sonoras adequadas às novas tecnologias que ainda estão chegando por aí.
Ou seja: quando George Harrison afirmou que "all things must pass" com certeza não tinha a menor idéia do que ainda viria pela frente.
(publicado na Trupe da Terra, Santos SP, Outubro 2009)
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