sexta-feira, junho 23, 2006
Grandes Flaming Lips (por Arthur Dapieve para NoMínimo)
Sem querer comparar, mas já comparando, cada disco dos Flaming Lips é uma espécie de “Se um viajante numa noite de inverno”. No livro de 1979, o escritor italiano Italo Calvino demonstrou toda a sua mestria iniciando uma dezena de histórias fascinantes e largando-as no meio, em prol de uma trama maior, tão logo o leitor se encontrasse incondicionalmente rendido. Pois a banda de Wayne Coyne faz o mesmo. Cada faixa de cada um de seus 11 trabalhos – como as 12 do recém-lançado “At war with the mystics”, que sai no Brasil pela Warner – traz idéias o bastante para grupos menos talentosos fazerem um álbum inteiro.
De maneira geral, contudo, os Flaming Lips hoje soam como se Neil Young estivesse cantando com uma banda de rock progressivo italiano, tipo Le Orme. Escute “My cosmic autumn rebellion”. Como? Se isso é possível? Só sendo os maluquetes que garantem ter começado, em 1983, tocando instrumentos roubados de uma igreja num clube de travestis em Oklahoma City. Daquele tempo, permanecem na banda o vocalista e guitarrista Coyne e o baixista Michael Ivins. Entre álbuns e mudanças de formação, eles sempre se mantiveram como uma banda alternativa – apesar de desde 1992 gravarem por uma grande gravadora.
Os Flaming Lips permaneceram nesta condição não porque seu som, a um tempo pop e experimental, seja difícil de ouvir e sim porque a sua criatividade é inapreensível: não há rótulo capaz de dar conta da cabeça hoje grisalha de Coyne. Num determinado ponto da vida, ele praticamente teve de reinventar a banda. Foi em 1996, quando o então guitarrista Ronald Jones saiu ou numa viagem mística ou por não agüentar mais o vício em heroína do baterista e faz-tudo Steven Drozd (os autores divergem). Três anos antes, o quarteto havia chegado o mais próximo do mainstream em toda a sua história, com o CD “Transmissions from the satellite heart”, puxado na MTV pelo clip de “She don’t use jelly”.
Não bastasse a partida de Jones, no mesmo ano Ivins se envolveu num acidente de carro (o seu foi abalroado por uma roda que se soltara de outro) e Drozd quase perdeu a mão (depois de ser picado por uma aranha). Nada tão bizarro quanto o projeto de Coyne de gravar 40 automóveis com seus toca-fitas sincronizados tocando uma mesma música. O chamado “Parking lot experiment” nunca foi adiante, mas o primeiro álbum dos Flaming Lips após a inhaca geral refletiu, digamos, um décimo desta idéia mirabolante: os quatro CDs que compunham “Zaireeka” (1997) eram para serem tocados todos ao mesmo tempo.
Como um trio, Coyne, Ivins e Drozd lançaram, depois de “Zaireeka” e antes deste “At war with the mystics”, dois discos delicados e solenes, “The soft bulletin” (1999, o melhor de todos, na minha opinião) e “Yoshimi battles the pink robots” (2002), ambos só lançados no Brasil no ano passado, pela Warner. Os três formam uma espécie de trilogia. Sob capas que remetem a gibis de ficção-científica da década de 50, eles imaginam histórias surreais – nas quais, porém, a concretude da morte é principal tema de meditação, como na faixa “Mr. ambulance driver”, do novo CD – e as contam de maneira suave e serena.
No caso de “At war with the mystics”, o mote é (ou seria) um mágico que parte para o espaço sideral em busca de um agrupamento de estrelas supernovas que assumiu a forma perfeita de uma mulher... Com as pernas abertas. Adiciona estranheza ao já estranho saber que Coyne, este Frank Zappa hodierno, dá um jeito de associar tal trama à Era Bush.
Nem o mago nem o bruxo tem lá tanta importância. “At war with the mystics” é, como seus dois predecessores imediatos, encantador já a partir da faixa de abertura, “The yeah yeah yeah song”, um chiclete-de-ouvido que propõe algumas perguntas incômodas ao ouvinte (“Se você pudesse tomar todo amor sem retribuir/ Você o faria?/ E assim nós não podemos conhecer a nós mesmos ou ao que realmente faríamos...”). Melodioso e inteligente, este rock seria um estrondoso sucesso radiofônico caso vivêssemos noutra dimensão.
Segue-se “Free radicals”, um funk esperto e espacial que parece, sim, dirigido tanto ao presidente americano George W. Bush quanto ao homem-bomba muçulmano que surge no seu enorme subtítulo (“A hallucination of the Christmas skeleton pleading with a suicide bomber”): “Você pensa que é um radical/ Mas você não é tão radical/ Na verdade, você é apenas fanático! Fanático!” Satisfeito? Não. Na faixa seguinte, “The sound of failure”, sobra para Britney Spears e para Gwen Stefani... E, mais adiante, na bela “Pompeii am Götterdämmerung”, as referências sonoras são, exato, Pink Floyd e Richard Wagner.
“At war with the mystics” não acaba sem que surja uma segunda candidata a sucesso radiofônico, claro, no planeta de onde vêm os Flaming Lips, planeta que evidentemente não é o nosso: “The W.A.N.D.”. Título que se explica por “The Will Always Negate Defeat” e se traduz por algo como “O que sempre negará a derrota”. Sobre um riff poderoso de guitarra, Coyne desafia: “Vez após vez aquelas mentes fanáticas/ Tentam dominar o mundo/ Dizendo-nos a todos que mandam em tudo/ Eu tenho um truque, uma varinha mágica que vai fazer todos caírem”. Na cabeça dele, a arte pode derrubar preconceitos e virar o jogo. Ao menos durante a audição de “At war with the mystics”, na nossa também.
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