Houve um momento "encruzilhada" na história do jazz em que as big bands começaram a ficar inviáveis comercialmente, e os integrantes dessas bandas passaram a se reunir em grupos menores -- com 3, 4 ou 5 músicos no palco -- para tocar o mesmo repertório swingado das orquestras com uma levada mais intimista em pequenos nightclubs.
Isso aconteceu em meados nos anos 40, logo depois da Segunda Guerra Mundial, entre o fim da Era do Swing e a alvorada do Bebop.
Foi quando inauguraram umas das instituições musicais mais sólidas do pré-bebop: os combos de jazz com dois saxofonistas tenor no comando.
Eram dobradinhas espetaculares: Coleman Hawkins e Ben Webster, Lester Young e Zoot Sims, e muitos outros que vieram a se tornar grandes mestres.
Mas, com o advento do bebop e o estrelato de Charlie Parker, todo jovem saxofonista ascendente passou a preferir o sax alto ao sax tenor, e essa deliciosa tradição das dobradinhas de tenores foi-se perdendo com o passar das décadas.
Mas não se perdeu por completo, claro. Dexter Gordon e Al Cohn reativaram esse modelo nos anos 60, e Warne Marsh e Chris Christlieb conseguiram devolvê-lo às paradas de jazz nos anos 70, em meio àquela enxurrada de fusion jazz que reinava na ocasião.
Felizmente, com a entrada em cena dos Irmãos Marsalis e de toda a sua turma de neo-boppers de New Orleans, muitas tradições do jazz dos anos 40 e 50, como a das duplas de saxofonistas tenor, deixaram de ser mera curiosidade para voltar a fazer parte do cardápio variado de manifestações jazzísticas em voga.
Harry Allen e Scott Hamilton não tem absolutamente nada a ver com os Irmãos Marsalis.
Ambos são da cidade de Nova York, onde gravam discos e tocam na noite há quase 40 anos, sempre com público cativo e casa cheia -- mas raramente juntos, apesar de serem amigos de longa data.
"Round Midnight", segundo disco em colaboração entre os dois, não só é primoroso, como revela uma naturalidade musical rara entre jazzistas nos dias de hoje.
A música que eles tocam é atemporal, e o repertório oscila entre vertentes jazzísticas diversas, mas segue sempre um mood bem alegre e cativante, que permite que um clássico dos anos 30 como "My Melancholy Baby", ainda que numa versão bem rejuvenecida, divida a cena com um número truculento e inventivo como "Flight Of The Foo Birds", composto por Neal Hefti para a Count Basie Orchestra nos anos 60.
Outro exemplo dessa pluralidade delicada da alquimia muiscal que os dois desenvolvem está na maneira como conseguem compatibilizar uma versão hard-bop inusitada para "Lover", de Dick Rodgers e Larry Hart, com uma releitura pré-bop de "Round Midnight", de Thelonious Monk -- justamente um dos números mais emblemáticos do bebop.
Com o suporte luxuoso de Ronnie Sportiello ao piano, e da cozinha exemplar do baixista Joel Forbes e do baterista Chuck Riggs, tudo funciona às mil maravilhas nessa sessão, encaixando ecos de Eras diferentes da história do jazz numa mesma aventura musical aparentemente leve e descompromissada, mas densa e muito adorável.
"Round Midnight" é, de certa forma, a cara do jazz da cidade de Nova York: uma manifestação musical centenária que sempre encontrou por lá um público disposto a encarar tanto o que o gênero tem de mais dançante quanto o que ele tem de mais experimental.
Seria uma heresia chamar Harry Allen e Scott Hamilton de neo-tradicionalistas, apesar dos dois terem surgido na onda do jazz neo-tradicionalista dos anos 80, pois eles mesclam tantas tendências, e de forma tão inusitada, que seria injusto reduzi-los a tão pouco.
Felizmente o swing tem uma lógica própria, que desafia a própria historiografia do jazz.
E essa dupla de saxofonistas tenor brinca com essa dicotomia, com uma nonchalance impecável.
Acredite: tem sabedoria musical tem de sobra em "Round Midnight".
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