domingo, março 12, 2006

Marisa aos Montes (por Antônio Carlos Miguel para O GLOBO)


O trocadilho no título acima é gasto, mas nunca foi tão verdadeiro. Sete anos depois de seu último álbum solo, e quatro depois daquele dividido com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, “Tribalistas”, Marisa Monte volta com 27 músicas, divididas em dois discos, “Universo ao meu redor” e “Infinito particular”. E também se prepara para, a partir de abril, retomar a rotina de shows, hotéis e aeroportos, com uma turnê que não tem data para terminar. Longe dos palcos desde 2001, quando terminou a longa excursão mundial de ‘Memórias, crônicas e declarações de amor” (o tal último disco solo, editado em 1999) — período em que além da música se dedicou ao seu primeiro filho, Mano Vladimir, hoje com 3 anos — na última semana ela também voltou a conversar com a imprensa.

— Não tenho problemas com a imprensa, gosto de falar, é como uma auto-análise, isso me faz refletir sobre meu trabalho — garante Marisa, instalada numa das salas que sua produção alugou no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) para a maratona de entrevistas. Esta foi gravada tanto pela diretora de vídeos Dora Jobim, que vem documentando passo a passo o processo de produção e lançamento dos discos, quanto pelo Globo Online, que botará amanhã no ar alguns trechos.

Artista que sempre teve pleno controle de sua carreira, Marisa arcou com os custos de produção dos CDs através de seu selo, Phonomotor — com distribuição mundial da EMI — sem se intimidar com a crise da indústria do disco.

— É interessante lançar dois discos juntos, que se completam. Gravei pouco na minha carreira, e por ter ficado os últimos anos recolhida, tinha muito material acumulado. O disco de samba era uma antiga vontade minha, desde que me envolvi na produção dos discos da Velha Guarda da Portela, de Argemiro Patrocínio e de Seu Jair do Cavaquinho, mas também tinha muita música nova guardada e não quis esperar. Se é arriscado lançar dois discos ao mesmo tempo, se eles vão vender ou não, isso só vou saber depois — responde, lembrando que também fora questionada ao lançar os “Tribalistas” sem shows nem trabalho de imprensa.

A experiência dos Tribalistas, de se relacionar de uma maneira diferente com a indústria, de achar “que a música podia se comunicar por si só”, deu muito certo. Agora, novamente ousando, ela joga e vai esperar para ver. Marisa prefere falar sobre o processo de criação; do prazer que foi tirar do baú sambas de Jayme Silva (“É um dos autores de ‘O pato’”, conta), Dona Ivone Lara (“Ela fez ‘Pétalas esquecidas’ aos 25 anos, no plantão do hospital Juliano Moreira, em parceria com outra enfermeira, Teresa Batista”), Argemiro Patrocínio; e de fazer esse disco sem seguir os padrões do gênero. O produtor escolhido foi Mario Caldato (Beastie Boys e Marcelo D2, entre outros, e que nunca pisara nesse terreno) e o instrumental é inusitado para o estilo.

— Penso que a delicadeza é o traço mais marcante, é um disco mais feminino, é um samba de mulher, de mulher de hoje em dia — frisa Marisa, que gravou “Universo ao meu redor” entre maio e setembro do ano passado, dedicando-se em seguida, entre outubro e janeiro, ao CD autoral. Este, “Infinito particular”, é filho direto da experiência tribalista. — Eu sempre fizera trabalhos muito similares. A partir dos Tribalistas, quis projetos mais focados. Mas os discos são complementares, duas frentes que sempre estiveram presentes na minha carreira. E ainda poderia ter gravado um terceiro, apenas como intérprete.

Para Marisa, no palco vai ficar mais claro a coesão dos dois discos. Algo que as platéias do sul vão checar a partir de abril. Em maio, o show chega a São Paulo e em julho, depois da Copa do Mundo, ao Rio — em local ainda não confirmado. Além do Brasil, os CDs estão saindo simultaneamente em Portugal, Espanha, México, Chile, Colômbia e Argentina. Em abril, chegarão a mais 38 países europeus, e em agosto, nos EUA, onde Marisa excursionará a partir de novembro. Como se vê, mais do que nunca, é tempo de Marisa.


Ousadia ou delírio?

Afinal, lançar dois CDs quando a indústria do disco enfrenta a sua pior crise é aposta de risco. Sim, Marisa Monte tem cacife de sobra: muitos acertos artísticos e uma carreira de sucesso comercial, que vinha em caminho ascendente: 1,2 milhão de cópias vendidas de seu disco solo anterior, “Memórias, crônicas e declarações de amor” (lançado no distante ano de 1999) e um milhão do projeto Tribalistas, que dividiu em 2002 com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown.

Questões mercadológicas à parte, a divisão em dois discos é coerente. Além do excesso de canções, 27 no total, são trabalhos distintos. “Universo ao meu redor” é um disco de samba, ou como ela prefere, “focado na atmosfera do samba”; enquanto “Infinito particular” é pop, com um quê de tribalismo: Brown e Antunes são os parceiros mais freqüentes de Marisa, que conta ainda com gente como Seu Jorge, Leonardo Reis, Rodrigo Campello, Marcelo Yuka, Dadi e Adriana Calcanhotto. E numa hipotética disputa interna, a sambista larga bem na frente.

Mesmo que inspirado no mundo do samba, “Universo ao meu redor” também é um disco tribalista de Marisa. Sete das 14 faixas são (belos, por sinal) sambas da cantora e seus habituais parceiros (principalmente Antunes e Brown). Das sete outras, duas também vêm de gente de fora do samba carioca: Adriana Calcanhotto assina “Vai saber?” e Moraes Moreira e Galvão, “Três letrinhas” (de 1969 e que remete ao disco “Acabou chorare”, dos Novos Baianos, em 1972). Portanto, de sambistas “autênticos”, apenas cinco, pérolas escondidas como “Pétalas esquecidas” (Dona Ivone Lara e Teresa Batista, de 1945), “Meu canário” (Jayme Silva, de 1950), “Perdoa, meu amor” (Casemiro Vieira, de 1944) e “Lágrimas e tormentos” (Argemiro Patrocínio, de 1980), e uma nova de Paulinho da Viola, “Para mais ninguém”.

Os sambas novos, e tribalistas, não fazem feio ao lado das tais pétalas de especialistas. “O bonde do dom” (Marisa, Antunes e Brown), por exemplo, é um dos destaques, assim como “Quatro paredes” (Marisa, Antunes e Cezar Mendes, este também o ótimo violonista presente em quase todo o disco). Estranho nesse ninho apenas “Statue of Liberty”, de David Byrne, Marisa e Fernandinho Beat Box, com participação do ex-líder dos Talking Heads, que é cheio de boas intenções em seus safáris musicais (foi Byrne quem tirou do ostracismo Tom Zé) mas raramente acerta quando sai de seu universo rock.

Outra curiosidade, e acerto, em “Universo ao meu redor” é a instrumentação dada a esses sambas. Alternam-se violoncelo, fagote, ukelele, tuba, harpa, Fender Rhodes, theremim, clarone, clarinete sem que soem estranhos. E na verdade, Paulinho da Viola (que participa de alguns momentos no violão ou no cavaquinho) já andara por aí, também com bons resultados, em discos dos anos 70 com arranjos do maestro Lindolfo Gaya.

Comparado ao original passeio pelo samba, “Infinito particular” não se sustenta. É pop — no sentido abrangente do rótulo, já que até valsa (a delicada e encantadora “O rio”, assinada a oito mãos, por Seu Jorge, Brown, Antunes e Marisa) entra — e remete aos Tribalistas e à fase de “Mais” (segundo de Marisa, e primeiro como compositora, em 1991). Musicalmente, é contemplativo demais (influência das cantigas de ninar para o filho?), na fronteira da sonífera new age. Mas músicos (entre os melhores do Brasil) e arranjadores (João Donato, Eumir Deodato, Philip Glass) escalados dão colorido e interesse até às canções mais fracas. Em relação a seus trabalhos anteriores, esse CD perde para “Cor de rosa e carvão” (1994) e mesmo para “Memórias, crônicas...”. Mas o problema maior de “Infinito particular” é ter ao seu lado o infinito “Universo ao meu redor”.

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