sexta-feira, março 17, 2006

Um João Donato Desconhecido (por Paulo Roberto Pires para NoMinimo)


Donatistas de todo o mundo, uni-vos! Acaba de chegar às lojas – da Inglaterra, nada é perfeito – uma jóia inédita do acreano que bagunçou para sempre o piano brasileiro. “A Blue Donato” é o registro, que se desconhecia, de uma jam session realizada no Rio de Janeiro em 1973. Com a idade de Cristo, portanto, vira um disco do balacobaco, registro bruto das principais qualidades de João Donato: a inventividade incansável e, junto com ela, a alegria absoluta de tocar e improvisar.

João Donato não é gosto, é vício. É o mesmo com o outro João, o Gilberto: ame-o ou deixe-o. E isso por um motivo muito simples: ambos entortaram os padrões de seus instrumentos e, com eles, o ouvido dos caretas. Nas águas misturadas da bossa nova, Donato curtiu um som que não é samba, jazz ou bossa: é Donato e pronto.

Lançado pela whatmusic.com, uma excelente gravadora especializada em garimpar pérolas na periferia da bossa nova barquinho-e-violão, “A Blue Donato” só é “blue” no título, uma brincadeira com “A Bad Donato”, o psicodélico álbum que o não menos pirado pianista gravou nos EUA em 1970. O disco é, ao contrário, solar, iluminado e feliz como o Leblon de 1973, onde e quando o encontro foi registrado no Little Studio, sofisticado estúdio caseiro de Bill Horne, músico brasileiro com nome de gringo e chegado a uma sofisticação tecnológica.

O time é da pesada: além de Horne (melofone), estavam lá Edson Maciel (trombone), Barnabé Ferreira (baixo), Edson Lobo (baixo), Eduardo Lobo (bateria), Tita Lobo (vocal) e, brilhando intensamente, o sax de Ion Muniz e Edison Machado, o Art Blakey do Beco das Garrafas e sua avassaladora performance nas baquetas. Mais do que uma “cozinha”, parceiros que dialogam de igual para igual com um Donato inspiradíssimo.

Em 36 minutos de música, a banda faz dois standards: “Mimosa”, de Herbie Hancock (esta em duas versões completamente diferentes), e “Message from the Nile”, de McCoy Tyner. As outras três faixas são de Mr. Donato: a clássica “Não tem nada não” e os temas instrumentais “Tom Thumb” e “Mr. Keller”. Tudo isso sendo, naturalmente, um pretexto para a rapaziada se divertir. E muito.

O principal mérito do disco, no entanto, é a dificílima conciliação entre a liberdade do improviso e a concisão. Mesmo nas faixas mais longas, Donato domina, com a sabedoria dos mestres, os momentos de improviso e a exposição dos temas, revelando uma inacreditável arquitetura do que, às vezes, parece um caos sonoro.

“Mr. Keller”, que fecha o disco, é daquelas para encantar donatistas ou não. Feito para trio, o formato nobre do samba-jazz, o tema é o veículo ideal para a batida inacreditável de Edison Machado, que inventou o samba tocado no prato da bateria e aqui, bem mais discreto, mostra quantas filigranas pode ter a batucada. No baixo, Barnabé Ferreira parece em integração telepática com Donato, que especialmente nesta faixa é mais Donato do que em qualquer outra.

“A blue Donato” não é só para iniciados. Cai muitíssimo bem em qualquer ouvido que goste de jazz e de samba. Mas para os que gostam do gênero “Donato” é uma iguaria surpreendente, que abre o apetite para outra jam session, feita no Rio com Bud Shank (em 2004) e ainda não lançada. Que venha o improviso.

Um comentário:

Unknown disse...

Olha só, Chiquinho, estava pesquisando Donato e caí no seu blog. Delícia de texto. Abração! Sergio Crusco