sábado, dezembro 17, 2005
A Musica Morreu, Viva A Musica (por Nelson Motta para a Trip)
Parece impossível para alguém de mais de quarenta anos e de formação pré-internet entender que a indústria do disco, como até hoje a conhecemos, acabou. Kaput. Finita. Mas não é uma opinião, é um fato. É só uma questão de tempo. E dinheiro. O indício mais recente, que comprova o desespero pré-agônico: a truculenta RIAA, associação americana da indústria do disco, que já fechou judicialmente o Napster, mas não consegue impedir que nasçam e cresçam os novos sites de trocas de arquivo, agora atira pesado até contra seus ex-aliados históricos e maiores consumidores: os estudantes. Acaba de entrar com processos contra quatro universitários americanos que mantinham sites de trocas de arquivos musicais usando a banda ultra-rápida que as universidades disponibilizam para os estudantes em suas redes internas. Acusa-os de ladrões de copyright e exige bilhões, sim, bilhões de dólares de indenização, US$ 150 mil por música nas listas.
Claro, eles não esperam receber essa grana dos universitários e de suas famílias, querem só dar um susto. Por enquanto. Muitos falcões da indústria, em nome de seus lucros, adorariam levar à falência Harvard ou Princeton, como co-responsáveis pelas contravenções de seus alunos, conforme repetidas ameaças às direções das universidades. Por isso escolheram para inimigos quatro, entre dezenas de estudantes que mantêm sites de troca de arquivos nos campi, para serem exemplados, obrigados a fazer acordos judiciais públicos e humilhantes, que não serão bilionários, mas pelo menos, esperam os advogados, quebrarão as famílias dos réus, dos piratas, dos criminosos.
Esses mercenários da lei e da justiça enfrentam uma nova e estranha forma de contravenção: os contraventores não estavam ganhando um centavo com os sites, os serviços que ofereciam eram gratuitos, não eram empreendimentos comerciais, ninguém pagava e ninguém recebia. Era só um troca-troca. Sim, é desonesto — e ilegal — oferecer, mesmo de graça, propriedade alheia, sem autorização. Mas isso não é jeito de tratar jovens que amam a música e foram, desde sempre, o maior sustentáculo, a grande força promocional e massa consumidora da indústria do disco. Agora é guerra, que — como a de Bush contra o terrorismo — não terá fim.
Antigamente os estudantes faziam cópias das músicas de que gostavam em minicassete para os colegas, entregavam em mãos, e a indústria adorava a promoção gratuita, que gerava novas tendências e criava sucessos milionários. E tanto que, durante anos, investiu pesadamente nas rádios universitárias e manteve escritórios promocionais em todos os campi. Agora, quando as músicas são copiadas digitalmente on-line, os antigos maiores aliados viraram piratas, ladrões e criminosos. Vamos ver se entendemos: quando a música era copiada fisicamente, analogicamente, e registrada nos átomos da fita cassete, era legal; agora, transferir os dígitos da mesma música, só que on-line e em segundos, para o hard drive de outro, é crime. O que o pessoal dos átomos teria contra os dígitos?
Talvez o fato de terem mais de quarenta anos e serem pré-internet os incapacite a entender esses paradoxos do progresso tecnológico e as novas liberdades que eles geram. Já os universitários não são otários. São de uma geração criada com todas as facilidades e gratuidades da internet, acostumados a ter informações e serviços preciosos de graça e a experimentar à vontade antes de comprar qualquer produto. Alguns reitores, professores e estudantes de boa vontade trabalharam juntos em propostas para impor uma taxa mensal aos estudantes — como as cobradas pela assinatura de jornais e revistas ou pelo uso de piscinas e ginásios — para baixar músicas pela internet. A RIAA não quis nem conversar. E certamente não ouviu quando David Bowie profetizou o óbvio: que num futuro próximo a música será algo como a água corrente, o gás, a energia elétrica ou a TV a cabo — o consumidor pagará uma taxa mensal pelo seu uso. Tantos litros, tantos watts ou tantos dígitos musicais, tanto faz. Mas a indústria do disco acha que pode continuar nadando nessa sopa, que fez dela, dos anos 60 aos 90, uma das mais lucrativas do mundo, com executivos ganhando salários e bônus que rivalizavam com os das indústrias de energia, farmacêutica, automobilística.
Sob suas asas generosas, imbecis e ignorantes com algum suingue e muita audácia se tornaram milionários da noite para o dia, pop stars oligofrênicos usaram e foram usados por máquinas bilionárias de marketing, mitos e fraudes foram criados ao sabor do jabá radiofônico, televisivo e impresso e de generosos presentes e contribuições de todo tipo para todo o mundo que ajudasse a construir um sucesso. Esse mundo está ruindo, caindo de podre. O que restará para a história é a extraordinária contribuição cultural dada pela indústria do disco, registrando e distribuindo para o mundo a grande música do século 20. Restará a história gloriosa dos grandes homens do disco, gente como os irmãos Nesuhi e Ahmet Ertegun, Berry Gordy, Clive Davis, Chris Blackwell e outros que amavam a música e que descobriram e desenvolveram grandes artistas; ninguém se lembrará de advogados, financistas e marqueteiros que hoje dominam a indústria.
Nelson Motta, 60, é jornalista, escritor e produtor musical
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