quinta-feira, dezembro 01, 2005
Visões de Bob Dylan (por Arthur Dapieve)
No artigo sobre Bob Dylan publicado no “New York Times” de 29 de setembro de 1961, depois de louvar-lhe a originalidade e a juventude, a cara simultaneamente de garoto do coro de igreja e de beatnik, Robert Shelton punha o ponto final depois de uma frase a meu ver premonitória: “O sr. Dylan é vago sobre seus antecedentes e local de nascimento, mas importa menos onde ele esteve do que para onde ele está indo, e isso parece ser puro.”
Desde então, a vida de Dylan está sempre às voltas com estradas e rumos. Àquela altura, ele tinha 20 anos e era só uma promessa folk no circuito de cabarés do Greenwich Village. Shelton ainda ignorava que ele nascera Robert Allen Zimmerman, em Duluth, Minnesota, à beira do Lago Superior, fronteira dos EUA com o Canadá. Algo como o fim do mundo. Segundo sua lenda pessoal, tinha fugido de casa aos 10, 12, 13, 15, 15½, 17 e 18 anos.
Faz sentido, portanto, que o documentário de Martin Scorsese sobre a trajetória de Dylan até 1966 se chame “No direction home” (sem o rumo de casa), verso de uma de suas canções mais conhecidas, “Like a rolling stone”. O filme ainda não aportou aqui, mas a trilha sonora já, pela Sony & BMG. O álbum duplo, porém, não é o espelho da música mostrada na tela e sim uma vasta versão alternativa dela, formada por 26 registros inéditos.
“No direction home: the soundtrack – The bootleg series vol. 7” traz também duas versões já conhecidas. A da acústica “Song to Woody” é a mesma que está no seu primeiro disco, “Bob Dylan”, de 1962. Foi incluída por expor claramente sua filiação à americana do trovador Woody Guthrie. É, para usar os termos de Shelton, onde Dylan esteve. A da elétrica “Like a rolling stone” é a mesma que está no volume quatro da “série pirata”, dedicada à sua polêmica turnê roqueira pela Grã-Bretanha, em 1966. É para onde ele ia.
Embora “The bootleg series vol. 4” traga o subtítulo “The Royal Albert Hall concert”, a gravação constante em ambos os álbuns foi feita no Free Trade Hall, em Manchester. Como consta do libreto de 60 páginas, informativo e fartamente ilustrado, que recheia o pacotinho “No direction home”. Enquanto a banda – talvez fosse melhor dizer logo enquanto The Band, então The Hawks – se prepara para tocar “Like a rolling stone”, alguém da platéia xinga Dylan de “Judas” e é aplaudido pelos demais talibãs do violão. Dylan retruca: “Eu não acredito em você. Mentiroso”. Depois, orienta os músicos: “Toquem alto”.
Ali, Dylan era Judas porque, pela primeira vez em sua carreira, havia radicalmente mudado de rumo: de profeta do movimento folk passara a apóstolo da eletrificação roqueira. Claro, era uma falsa questão, como tantas que assolam a música, mas na época ninguém diria isso. Ninguém, exceto o próprio Dylan. No primeiro CD de “No direction home”, o acústico, ele soa amargo com a dimensão política tomada por “Blowin’ the wind” e avisa ao público que vai cantá-la de modo diferente – mais lenta e introspectivamente do que um hino.
Esta, aliás, é a característica das 26 faixas inéditas de “No direction home’. De forma mais ou menos sutil, elas driblam as expectativas dos ouvintes de longa data – como, anos atrás, fizeram os três álbuns duplo “Anthology”, dos Beatles que Dylan desprezava. E se, pela juventude ou pela mera ignorância, os ouvintes de hoje não as conhecerem de todo, elas se sustentam perfeitamente por si sós, não se tornando piadas particulares entre astro e fãs.
Pegue-se, por exemplo, “Don’t think twice, it’s all right”, uma das melhores canções do bardo fanho. Na versão já conhecida, a do álbum “The freewheelin’ Bob Dylan” (1963), sobressaem-se a gaita e o sarcasmo, não necessariamente nesta ordem. Na de “No direction home”, uma demo gravada na salinha do escritório da sua editora na ocasião, não há gaita e o sarcasmo é trocado por um senso de fracasso relacional que apenas a embeleza ainda mais. “Estou caminhando naquela estrada longa e solitária, garota/ Para onde, não posso dizer”, canta à insensível que ficou para trás. Estradas e rumos, o tempo todo.
“No direction home” tenta acompanhar este passo rápido de Dylan já a partir de 1959, quando a primeira faixa, a original “When I got troubles”, foi registrada por um colega da Hibbing High School. No processo, além de versões espetaculares para “I was young when I left home” e “Stuck inside of mobile with the Memphis Blues again”, entram textos de Andrew Loog Oldham, empresário dos Rolling Stones na década de 60, e de Al Kooper, tecladista de Dylan em boa parte de suas primeiras experimentações elétricas. Muitas outras mudanças de rumo estariam à frente, pelos próximos trinta e nove anos.
Tantas que, se só se pudesse qualificar um nome no rock de genial, este nome seria o de Bob Dylan.
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