quinta-feira, dezembro 01, 2005

O fim de Neil Young (por Arthur Dapieve)


Certa vez, perguntaram a Jimi Hendrix o que ele entendia por perfeição. O guitarrista respondeu: “Perfeição é a morte. É a morte física. O fim”. Embora seja tentador vislumbrar nessa declaração a sua partida precoce, o que enxergo nela é a metade subentendida: bem, se perfeição é a morte, imperfeição é a vida. No dia em que, como Hendrix, como todos nós, Neil Young bater as botas, ele terá alcançado a perfeição. Por enquanto, do lado de cá, sua obra é toda imperfeição. E é precisamente isso que a faz tocante, comovente, humana.

O CD “Prairie wind”, recém-lançado no Brasil pela Warner, é um exemplo perfeito dessa imperfeição. A voz de Young continua instável, se equilibrando naquele falso falsete. A sua guitarra e o seu violão (mais este que aquela) continuam com poucas notas, mas as notas são as certas. Jamais se poderá dizer que a musicalidade do canadense – revelado ao mundo no quarteto Crosby, Stills, Nash & Young, no final dos anos 60 – se expressa com facilidade. Não. A impressão que ela dá é de um sofrimento atroz. Voz e notas só saem à custa de muito esforço. Apesar de, aparentemente, sua vasta discografia atestar o contrário.

“Prairie Wind” é um álbum particularmente sofrido. Vem dedicado ao seu pai, o jornalista e escritor Scott Young, morto aos 87 anos, em junho, depois de uma longa e torturante batalha contra o Mal de Alzheimer. Segue-se, ainda, a um susto sofrido pelo próprio Neil em março, quando descobriu, num exame de rotina, que tinha um aneurisma cerebral pronto para explodir. Teve de ser operado de emergência. O cantor, que em criança já sofrera com poliomielite e epilepsia, safou-se bem de mais esta. No entanto, aos 60 anos, completados no último dia 12, ele entendeu que a morte pode estar ali na esquina.

Como todo grande artista, ele volta e meia já a havia contemplado, seja como morte individual (“The needle and the damage done”, sobre os estragos do vício em heroína), seja como morte coletiva (“Cortez the killer”, sobre o genocídio dos astecas). O hino de solidariedade ao movimento punk (“My my, hey hey/ Hey hey, my my”) também trata de um tipo de morte, a artística. Logo, “Prairie wind” não traz nenhuma novidade temática. Nem formal: é um plácido álbum de country-rock, gravado em Nashville, com cobras de estúdio. Remete ao clássico “Harvest” (1972) e ao auto-referente “Harvest moon” (1992).

O dado novo aqui é que tanto a morte quanto o country-rock são retomados de um outro ponto de vista: a extinção física é a própria extinção física, não a de outrem; o gênero plangente é uma porta de acesso a um passado que, para o bem e para o mal, não volta mais. Scott Young (mencionado nas faixas “Far from home” e “Prairie wind”) está irremediavelmente morto. Todas as três crianças já saíram de casa (elas são as ouvintes preferenciais de “Here for you”), perdidas para a vida. Sobraram Neil e sua mulher, Pegi (que ganha “Falling off the face of the Earth”), contemplando o vazio da pradaria.

É, como se vê, um disco familiar em mais de um sentido da palavra. Porque gira em torno do lar dos Young, suas glórias e misérias. Porque, musicalmente, segue as próprias pegadas, impressas na terra há um bocado de tempo. Nesse sentido, “Prairie wind” é pouco para um artista que cantou “é melhor explodir do que se apagar” e botou tal lema em prática como poucos. Não ajuda muito o fato de que os bons sentimentos tenham arrefecido a ferocidade criativa das letras. Nem que os arranjos, com alguns corinhos e sopros inexplicáveis, pouco colaboram para o todo. Todavia, já faz bem dez anos que Young botou na rua um álbum surpreendente: “Mirror ball” (1995), que tinha o Pearl Jam no apoio.

Desde então, ele tem burilado suas canções, mais ou menos bonitas, mas quase sempre relevantes. “Prairie wind” tem três das mais bonitas, candidatas à caixa de CDs que ainda não existe. “No wonder” abre lembrando um pouco “Find the cost of freedom” (de Stephen Stills) para falar da perturbação do bom e velho Young com os EUA e o mundo em que vive: “América, a maravilhosa (aquela canção do Onze de Setembro)/ Martela minha cabeça/ Eu vou sempre me lembrar de algo que Chris Rock disse:/ “Façam o que fizerem,/ Não mandem mais velas”. É a segunda faixa do CD, mas a primeira a pegar.

Passam-se músicas medianas para os padrões de Young – superiores aos de 99% da Humanidade, naturalmente, como as quatro dedicadas à família – antes que as outras duas mais bonitas resplandeçam, fechando bem o álbum. O country-roquinho “He was the king” é, dentro do clima melancólico, até animado em seu tributo a Elvis Presley. “A última vez que vi Elvis/ Ele estava cantando uma canção gospel/ Você sabia que ele tinha o sentimento/ E o mundo todo cantava junto/ Ele era o rei”, testemunha Young.

Como que respondendo a esta estrofe de “He was the king”, a derradeira faixa é, ela própria, um gospel que dá vontade de cantar junto. “When god made me” usa um coralzão para traduzir as incertezas da fé: “Ele me deu o dom da voz/ Para alguns me silenciarem?/ Ele me deu o dom da visão/ Sem saber o que eu iria ver?/ Ele me deu o dom da compaixão/ Para ajudar o meu próximo?” É a melhor música do CD, na minha opinião. Pelo arranjo, pela fusão de crítica e louvor nos mesmos versos, pela interpretação sentida e pela madura insinuação de “missão cumprida”. Imperfeito, Young já está em paz com sua consciência. Que venham muitas outras belas canções.

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