quinta-feira, dezembro 08, 2005
Ruy Castro passa a limpo a biografia turbulenta da maior estrela pop do Brasil no Século Vinte (por Álvaro Costa e Silva para o JB)
Com a sensação do dever cumprido e ainda lambendo a cria, Ruy Castro aguarda, “ansioso e inseguro como qualquer autor estreante”, a repercussão de seu mais ambicioso livro, simplesmente Carmem: uma biografia, o qual lhe consumiu cinco anos de trabalho e que já circula pelas livrarias. Ao entregar, menos de um mês atrás, os originais da obra à editora Companhia das Letras, o escritor e jornalista havia contatado mais de 170 pessoas, feito cerca de mil entrevistas, lido dezenas de livros, visto e revisto todos os 20 filmes da Brazilian Bombshell, ouvido inúmeras vezes as 313 gravações oficiais da Pequena Notável, e, ao fim e ao cabo, dado mais de 1,6 milhões de toques no seu computador até a última palavra do texto – resultando numa edição de quase 600 páginas, com direito a fotos de extasiar. Por isso, não duvidem quando ele afirma que Carmen Miranda, além de nossa maior e mais famosa estrela internacional, foi a mulher brasileira do século 20.
Como todo mundo está careca de saber, Carmen (ou Maria do Carmo Miranda da Cunha) nasceu em Portugal – em Várzea da Ovelha, uma aldeia perto do Porto, no dia 9 de fevereiro de 1909 – filha de barbeiro e lavadeira. Mas chegou ao Rio no dia 17 de dezembro do mesmo ano – e esta informação precisa é apenas a primeira a nos espantar ao longo do livro: como Ruy Castro conseguiu extrair tantos e tão formidáveis dados e informações inéditas da vida da sua biografada, a ponto de praticamente não deixar mais nada escondido ou secreto? Aqui o lugar-comum é inevitável: Carmen é uma biografia definitiva, até por desmentir lendas que, com o tempo e um pouco (ou muito) de má-fé, ganharam status de verdade. Aliás, essa é uma característica de Ruy Castro, o biógrafo, que já nos prestara o mesmo serviço ao narrar as trajetórias de Nelson Rodrigues, Garrincha, e as histórias da Bossa Nova e Ipanema.
A primeira “novidade” é que podemos considerar Carmen Miranda um fruto da Lapa. Ela morou lá dos 6 aos 16 anos, período da vida em que a pessoa descobre que o mundo é maior que a sua família. Este mundo durante o dia era família, abrigando um convento, um seminário e uma igreja, mas, à noite, abria-se para cabarés e casas de prostituição, onde, entre esplendores e misérias, ninguém mais era inocente.
Foi junto aos Arcos que Carmen aprendeu um farto repertório de gírias e palavrões (estes também ouvidos da boca do pai), de pronto incorporados ao seu linguajar e que se tornariam uma marca registrada. Uma pessoa, para ela, passou a ser dali para frente “velhinho”, “filhote” ou “meu nego”; dinheiro era “arame”; um grupo de amigos, “macacada”.
Algumas descobertas são até risíveis de tão óbvias – mas por que ninguém antes havia pensado nelas? A família nunca foi contra a carreira de Carmen, nem tampouco seu começo como cantora teve de ser às escondidas: – Desde janeiro de 1929, quando se apresentou pela primeira em público, Carmen ficou conhecida e, depois do estouro de “Taí”, se transformou num sucesso. Passou a gravar um disco atrás do outro, cantava na rádio e aparecia nas capas de revista. Como fazer tudo isso sem a família saber? A menos que houvesse uma conspiração do tipo Super-Homem e Clark Kent.
Revelação para valer é a de que jamais aconteceu “a vaia da Urca”, em 1940, quando Carmen teria voltado dos Estados Unidos “pouco autêntica” e “americanizada”. Quem estava em todas as mesas do cassino não era o seu público, e sim o poder civil e oficial do Estado Novo, que, naquele momento, assumira a política de ter a Alemanha como amiga e os EUA como vilões. Uma platéia fria e careta que sequer tinha capacidade para vaiar. O que houve foi um gelo.
Outro orgulho de Ruy é ter levantado que a Política de Boa Vizinhança – implementada pelo governo Roosevelt a partir de uma idéia de Nelson Rockefeller durante a Segunda Guerra – nada teve a ver com a ida de Carmen Miranda para os EUA. Em maio de 1939, quando ela foi contratada pelo empresário Lee Shubert para fazer uma ponta no espetáculo Streets of Paris na Broadway, a guerra ainda nem começara na Europa. Até em relação aos filmes produzidos em Hollywood com uma suposta temática latino-americana, a Política de Boa Vizinhança foi de atuação modestíssima – entre os grandes estúdios apenas a Fox embarcou na esparrela, e mesmo assim porque já era chegada a um cenário exótico. Como escreve Ruy Castro, com o sim a Shubert, “Carmem decidira por sua carreira. Não pela sua continuação, mas pelo recomeço dela – sozinha, entre estranhos, numa terra que não conhecia, e numa língua que dominava pouco mais que good bye, boy”. Ela estava deixando para trás uma carreira maravilhosa, a qual, em 10 anos, lhe permitira gravar 81 músicas (recorde entre as cantoras brasileiras), fazer dupla com Chico Alves, Mario Reis, Sylvio Caldas, Almirante e a irmã Aurora, gravar grandes compositores da Época de Ouro e, entre estes, descobrir e consagrar pelos menos três legendas: Assis Valente, Synval Silva e Dorival Caymmi. “Foi sorte que Carmen tivesse gravado em tal abundância durante sua carreira brasileira. E, boy, como nós, um dia, iríamos precisar desses discos”, completa o escritor.
Ao pisar no palco do Broadhurst, na Rua 44 Oeste, entre a Sétima e a Oitava Avenida, em 19 de junho de 1939, às 10 da noite, Carmen entrou à velocidade máxima, cantando com as mãos, os olhos, os quadris e os pés “Bambu, bambu”. Após um espanto de 10 segundos, as pessoas começaram a se remexer na cadeira. Três números depois, a brasileira conseguiu o que outros tinham levado uma eternidade para conseguir – quando conseguiam: conquistar, apenas com o talento e sem falar uma palavra de inglês, a sofisticada platéia de Nova York. Em pouco tempo indo para Hollywood, a menina da Lapa já ganhava uma fortuna, algo em torno de US$ 9 mil por mês – olha que isso foi na década de 40 e você deve multiplicar a grana por pelo menos 30 para ter uma idéia do seu valor em nossos dias.
Falsa baiana exótica de chapéu e plataforma, um tipo que se firmou falando um inglês tatibitati (embora tivesse aprendido a falá-lo bem) – Ruy concorda mas pondera:
– Ninguém escapou de fazer tipo no cinema clássico americano: Marylin Monroe e Frank Sinatra são exemplos. Que os críticos me perdoem, mas se a Carmen foi esteriotipada foi que viram nela um potencial para esteriótipo fabuloso, que é o que eles procuram. Qual o maior ator do cinema americano de todos os tempos? Spencer Tracy? Passou a vida interpretando Spencer Tracy. Só mudava de roupa. Ou de fantasia, que no caso dele não era de baiana.
No departamento homem, Carmen Miranda tinha seu gosto: preferia os tipos altos, morenos, fortes, que usassem boas roupas, rosto bonito e másculo, de preferência de cabelos pretos. Nesse diapasão, pegou seu primeiro namorado, o remador do Flamengo Mario Cunha, que a deflorou aos 16 anos, no banco de trás de uma baratinha, provavelmente no Joá.
Namorou o bom partido Carlos Alberto da Rocha Faria e, já em Hollywood, teve um tórrido caso com Carlinhos Niemeyer (leia-se Canal 100, que se notabilizou por queimar os filmes em que o Botafogo surrava seu amado Flamengo). A lista no cinema também é notável: John Payne, Arturo de Córdova, Dana Andrews e, não por último, o bissexual e caubói John Wayne, que, sem as botas, media 1,93. Ou seja, 41 centímetros mais alto que ela. Alguém aí pensou no cantor Mario Reis e no latin lover Cesar Romero? Pode esquecer: eram pouco viris para o paladar de Carmen.
Seu romance mais duradouro foi com Aloysio de Oliveira, líder do Bando da Lua, conjunto que a seguiu na aventura e na conquista dos EUA. Amante meio que manteúdo, Aloysio teve o mérito de não ser a vida inteira o Mr. Miranda, saindo na vida dela em 1943. Antes tiveram um filho, abortado. E deu a outra mulher o que Carmen esperava dele: casamento e filhos.
Em 1947, com más intenções, a procurou de novo, quando ela já estava casada com o caça-dotes Dave Sebastian, que se apresentava como, veja você, assistente de produtor associado. Esse picareta explorou-a ao máximo, ficou com todos os seus bens e jóias e deixou para a família os balagandãs e bricabraques.
Com forte devoção católica e já imersa em barbitúricos, Carmem nunca quis ouvir falar em divórcio. Ela queria casar e ter filhos. Pena que não conseguiu. Mas nos deu muito
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