Quatro anos atrás, o cantor e guitarrista Lurrie Bell -- atualmente em tournée solo pelo Brasil -- SE apresentou com sua banda no Teatro do SESC-Santos e deixou a platéia com a alma lavada.
Verdade seja dita: há muitos anos não passava por aqui um artista de blues tão cativante e com uma pegada tão perigosa na guitarra. Todos os que foram abduzidos pelo suingue da "Windy City" naquela noite de Agosto -- acredite, não foram poucos --, não acordaram a mesma pessoa no dia seguinte. O Blues tem dessas coisas...
Lembro bem que Lurrie Bell evitou apresentar material próprio, limitando-se ao número instrumental "Lurrie's Blue Groove" logo na abertura. Daí em diante, desfilou um set de clássicos do blues em releituras muito inspiradas, e mesmo quem já ouviu um milhão de vezes "I'm Ready", "Reconsider Baby", "Five Long Years", "Everything's Gonna Be Alright" e "Got My Mojo Working", com inúmeros artistas diferentes, acabou completamente rendido ao talento e à nonchalance de Lurrie Bell e sua Chicago Blues Band.
Acredite: o groove do Blues de Chicago é um negócio muito poderoso.
E o formato musical adotado pelo quarteto de Lurrie Bell é - ao menos em minha opinião - o mais cativante de todos: baixo, bateria, órgão e guitarra. Uma combinação inaugurada nos bares do Lado Oeste de Chicago no final dos anos 50, que acabou dando o tom nos trabalhos dos jovens expoentes do gênero na década de 60, como Otis Rush, Magic Sam, Buddy Guy e Michael Bloomfield.
Se hoje esse formato musical virou clássico, é graças ao talento inigualável desses grandes artistas.
Lurrie Bell é um herdeiro valoroso do Chicago Blues.
Filho do grande gaitista Carey Bell (falecido seis anos atrás), toca guitarra desde os 5 anos. Aos 16, já fazia parte da banda do pai. Com o passar do tempo, virou o comandante da banda.
Aos poucos, tomou coragem e gravou alguns discos solo para a gravadora JSP no final dos anos 80, sempre sob a supervisão do saudoso amigo Phil Guy (irmão de Buddy Guy) - que, apesar de ótimos, tiveram pouca repercussão na ocasião.
Sua segunda investida solo, numa série brilhante de 4 discos repletos de composições próprias para a Delmark Records, gravados ao longo dos anos 90, já teve melhor sorte.
O primeiro, "Mercurial Son", de 1992, é um ousado trabalho experimental criado à beira da loucura -- Lurrie vivia problemas psicológicos muito complicados na ocasião -- e é tido por setores da crítica como o disco de blues mais estranho de todos os tempos. Foi um desequilíbrio tão intenso que, para se recompor, Lurrie Bell deixou sua carreira solo de lado e se refugiou por cinco anos na banda de seu pai.
Recuperado e seguro de si novamente, ele retomou sua carreira solo em 1997, com "700 Blues", um belo disco no formato clássico do Blues de Chicago dos anos 60. Um ano mais tarde, convocou nada menos que Dave Specter and The Bluebirds como banda de apoio e gravou mais um disco sensacional: "Kiss Of Sweet Blues". E então, em 1999, veio "Blues Had A Baby", uma pequena obra prima, onde todas as suas experiências musicais anteriores se misturam, revelando o grande estilista do blues moderno em que Lurrie Bell se transformou.
De 2000 para cá, Lurrie gravou pouco, mas circulou pelo mundo afora, tanto com seu trabalho solo quanto como escudeiro de seu pai -- muito debilitado fisicamente a essa altura da vida, tanto que subia aos palcos sentado em uma cadeira de rodas. Juntos eles gravaram o DVD documentário "Gettin' Up Live At Buddy Guy's Legends", uma espécie de testamento musical de Carey Bell, que morreu antes de seu lançamento.
Poucos meses mais tarde, Lurrie perderia sua mulher, a fotógrafa Susan Greenberg.
Para não flertar com o desespero, nem cair em depressão, ele mergulhou fundo no trabalho. E o resultado disso foi "Let's Talk About Love", um tributo sereno e delicado a Carey e Susan, e seu primeiro trabalho por seu selo próprio, Aria BG Records -- que leva o nome de sua filha, Aria Bell Greenberg.
Pois bem: Lurrie Bell está de volta, e acaba de lançar seu segundo disco para a Aria BG, "The Devil Ain't Got No Music".
Para surpresa geral, é um disco acústico, o primeiro da cerreira de Lurrie Bell. Mas é tão vigoroso quanto qualquer um de seus LPs elétricos. E tão inusitado quanto eles também, na medida em que alterna folk-blues com gospels, spirituals e até um blues balada meio esquecido de James Taylor de seu início de carreira, "Lo And Behold".
"The Devil Ain't Got No Music" é uma colaboração com o amigo guitarrista Joe Louis Walker e o baterista Kenny "Beedy Eyes" Smith, numa produção bem despojada que captura ao vivo no estúdio performances fulminantes dos três.
Sempre que um músico habituado a tocar elétrico parte para uma empreitada acústica como essa, a tendência é tentar fazer com que o resultado seja tão intenso quanto numa sessão eletrificada. Daí, não estranhem se parecer em alguns momentos parecer estar ouvindo algumas daquelas sessões acústicas clássicas de Buddy Guy com Junior Wells, ou mesmo de Sonny Terry com Brownie McGhee. A idéia é essa mesma.
De qualquer maneira, "The Devil Ain't Got No Music" é um grande disco, eloquente como nenhum outro disco acústico que você vá ouvir este ano.
E um sério candidato a melhor álbum de blues tradicional da Festa dos Grammies deste ano.
Bravo, Mr. Bell.
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