domingo, abril 22, 2012
Relendo Revistas Velhas num Domingo de Chuva: EZEQUIEL NEVES, 70 PRIMAVERAS (TRIP #125 Novembro de 2005)
Setenta anos agora em novembro, jornalista, produtor musical, ex-ator, freak, crítico de música, diretor de shows, ex-traficante, compositor e lançador oficial de Cazuza. Zeca, o codinome desse beija-flor alucinado, talvez seja a pessoa no Brasil que mais acreditou que o rock fosse sinônimo de mudança, destempero e arrojo. Como jornalista de música, os textos de Ezequiel Neves marcaram época pela abordagem nada acadêmica e fortemente corrosiva. Hoje, dentro da atual padronização da escrita e com a caretice que assola as redações, ninguém ousaria sequer contratá-lo. Costumava assinar matérias como Zeca Neves, dias depois virava Zeca Jagger e, no mês seguinte, surgia Zeca Zimmerman (em homenagem a Robert Zimmerman, aka Bob Dylan) ou Ângela Dust, adotando o sobrenome do artista que venerasse naquele momento. Do fim dos anos 60 à metade da década seguinte, no auge da contracultura, Ezequiel Neves foi um dos nomes mais atuantes no underground brasileiro e na imprensa alternativa.
Em música, lançou e criou modismos, sempre apontando novos rumos. Foi parceiro da Made in Brazil, de Rita Lee, Roberto de Carvalho, Leoni (ex-Kid Abelha), Cássia Eller e de dezenas de bandas que estrearam nos anos 80. Rita e Roberto, ídolos e amigos, acabaram virando desafetos. Os mais próximos evitam comentar o rompimento, mas sabe-se que a chegada do Barão Vermelho na vida de Ezequiel provocou uma avalanche de ciúmes em muita gente.
Aliás, esse foi seu maior trunfo: ter descoberto o Barão Vermelho, cujo vocalista, Cazuza, era filho do diretor da gravadora em que Zeca trabalhava, a Som Livre. Cazuza, considerado por Zeca “o amor da minha vida”, o elegeu como parceiro, amigo, protegido e protetor, até que a morte os separou, em 1990. Reza a lenda que Ezequiel Neves pulou várias vezes de madrugada os muros do cemitério São João Batista, no Rio, para visitar o túmulo do amigo, fumar unzinho ou dar uns tecos na lápide. Foi isso mesmo, Ezequiel? “Fiz isso, sim. Eu só ficava com medo de o Cazuza levantar dali e querer roubar a minha fileira...”
Foi no apartamento de Zeca, na ladeira do Saint-Roman, em Ipanema, no sopé da favela do Pavãozinho, chamada por ele de Little Peacock, que conversamos entre cervejas e doses de steinhaeger. Perguntei-lhe, logo ao entrar, se não temia as balas perdidas, tão comuns naquele trecho da zona sul carioca. Irrequieto, rebateu. “Não, porque as balas perdidas nunca vão me encontrar.” Grande Zeca.
TRIP Ezequiel, você começou como ator, não?
Ezequiel Neves Fui ator durante muito tempo. Nasci em Belo Horizonte e traba-lhava na biblioteca da UFMG. Freqüentava grupos intelectuais. Isso por volta de 1950.
Você é filho único?
Sou o filho do meio, entre duas irmãs. Meu pai, doutor Aroeira, era um cientista maluco! Louco! A pior língua da cidade e a pessoa mais inteligente. Tinha lugar cativo no Automóvel Clube. Falava mal de todo o mundo. Mas era temido.
Você sempre gostou de beber?
Sou da geração do álcool, a pior de todas! [Risos] Estudei num colégio ótimo em Belo Horizonte, o Marcondes. De manhã, as pessoas com glamour ficavam na piscina do colégio. Aí, eu enchia a cara de conhaque e Coca-Cola às sete da manhã e já chegava lá calibrado. Eu lia pra caralho, era bem informado. Mas o tempo foi passando, a cidade era provinciana, todos se conheciam. Foder era dificílimo.
Como surgiu sua relação com a música e a imprensa?
Em 1968, precisavam de um crítico no Jornal da Tarde. Eu ainda estava em cartaz com A Megera Domada e era muito alienado. Imagina que Paulo Villaça e eu acompanhávamos passeatas de táxi, enquanto todos gritavam “Mais pão, menos canhão!” [risos]. José Dirceu era líder estudantil, de longos cabelos louros. Eu o achava um Brad Pitt! Até Cacilda Becker ficou fascinada por ele.
De que forma você estreou no jornal?
Escrevendo sobre o disco Lady in Satin, da Billie Holliday. Logo passei a falar de jazz. Mas então descobri o rock. Expliquei aos editores, Fernando Morais e Maurício Kubrusly, que não havia mais jazz, entende? Era um momento rock! Aí me pinta um disco da Janis Joplin. Eu nem tinha informação sobre aquela mulher, mas inventei uma história e publicamos uma página inteira sobre ela. Todo o mundo depois só queria ouvir Janis...
Antes você nem escutava rock?
Já! O meu primeiro disco de rock era um 78 rotações de Bill Halley. Depois ouvi muito Elvis Presley, pa pa pá... [Pausa] O sistema é foda, né? Elvis era um menino de cabelos claros, mexia com a pélvis. Isso era coisa de negro. Apaixonante, mas o sistema o domou, mandou ele para o Exército.
Por quanto tempo você ficou no JT?
Uns dois anos. O rock tomou conta de mim. Escrevia sobre Doors, Rolling Stones, que são a minha paixão, Beatles... Depois veio Woodstock. Surgia ali a nação Woodstock. Ninguém esperava por aquilo. O Festival de Woodstock aconteceu em agosto, e viajei a Nova York, pela primeira vez, em setembro de 1969. Cheguei quando os grupos do festival estavam em temporada no Fillmore East, templo máximo da contestação. Mas note como o sistema é mesmo foda. Depois do sucesso de Woodstock, veio a barra-pesada do Festival de Altamont. Um inferno! Os caretas queriam dizer: “Sosseguem, sosseguem, porque o rock é perigoso”.
Outra tentativa de domar o rock...
O sistema faz essas coisas. Depois dessa viagem a Nova York, São Paulo se tornou chata. Então comecei a queimar maconha, o que foi ótimo. Em seguida, viajei a Londres, em 1970. No avião, pude ler as matérias sobre a morte de Jimi Hendrix. Pouco antes de embarcar, havia encontrado Baby Consuelo na rua, e ela me contou: “Hendrix morreu!”. Cheguei à Inglaterra e, dias depois, morria Janis Joplin [pausa]. Londres me possibilitou tudo. Fui com US$ 700 e um saco de maconha escondida em bombons Sonho de Valsa! [risos].
Imagino que você tenha assistido a muitos shows no Marquee... Nessa época você também escrevia na revista Pop?
A Pop veio depois. Na Rolling Stone, eu achava a seção de cartas dos leitores o melhor da revista. Jamari França estreou ali, num texto que metia o pau em mim. Ele dizia que eu não entendia nada de rock, que era um panaca, o maior palhaço! O Maciel leu a carta e me perguntou: “O que é isso?”. Respondi: “Vou publicar!” [risos]. Lá, havia liberdade para se falar o que fosse.
Por que a Rolling Stone não deu certo no Brasil?
A Rolling Stone já estreou falida! Só quem pensava que ia dar dinheiro eram dois americanos malucos. A Rolling Stone acabou por falta de dinheiro. Eles pagavam meu salário e o meu aluguel, num apartamentinho na rua Farme de Amoedo. Sempre pensei assim: “Deixo a vida me levar”. Éramos lindos, jovens, felizes! Meu cabelo vinha até a cintura! Tudo maravilhoso!
Mesmo na Rolling Stone, você continuava escrevendo pro JT...
Continuei no JT, morando no Rio. Mandando matérias e traficando fumo. Recebia o salário do jornal e comprava tudo em fumo! Depois vinha a São Paulo vender. Os meus fregueses eram as pessoas da redação. Eu fazia mutucas ótimas. Todo mundo gostava.
Além de maconha o que mais rolava?
Depois que me mudei para o Rio, comecei a escrever também na Playboy e na Pop, indicando discos. Indiquei várias vezes Pare de Tomar a Pílula, do Odair José, porque foi na mesma fase que pintou o Mandrix, uma droga ma-ra-vi-lho-sa! Ahhhh, todo o mundo ficava numa de “gimme Mandrix” [risos]. Uma loucura viver. Ninguém sentia dores, todos magrinhos...
Você e Lucinha Araújo mantêm uma relação de amor e ódio, não?
Um provoca o outro. Ela me agride, eu mando de volta. Um pingue-pongue de ignomínias amorosas. Ela e João sabem que revelei Cazuza, não tenho modéstia alguma em reconhecer isso. Eles queriam um filho maravilhoso, um filho brilhante e proporcionaram todas as possibilidades. De repente, o convenci de que Cazuza era ótimo letrista, cantor maravilhoso, com a banda perfeita. Ele chegou a me dizer: “Ih, por que você foi inventar isso?” [risos].
Você lembra a primeira vez em que você se encontrou com Cazuza?
Eu já o via muito em Ipanema, no Posto Nove. Ele tietava a nossa turma. Norma Bengell, Gal Costa, uma porção de gente famosa. Cazuza era muito curioso. Às vezes nos dava um baseado, e a gente recusava. Tempos depois, ele ficou comigo na Som Livre para redigir releases. Cazuza sabia da minha vida toda, lia meus textos e achava um sonho. Quando soube que eu gostei da fita do Barão Vermelho, enlouqueceu. Olha... [longa pausa] Cazuza foi a pessoa que mais amei na vida! A falta que sinto dele! A falta de comentar um livro com ele, um filme, qualquer coisa engraçada.
Como você analisa a presença da morte na geração que descobriu a Aids, no início dos anos 80?
Nessa década houve a morte anunciada! Acompanhei isso com Cazuza. Era uma espada, não havia medicamentos. Antes disso, todos transavam sem culpa. Uma vez, em Nova York, numa só noite, transei 28 vezes. Sou um homossexual estranho. Não gosto de gente igual a mim e nem da cultura gay. A Aids foi uma porrada.
O que você achou do filme Cazuza?
[Longa pausa] Acho forte e exibido. Gosto, é muito emocionante. Já vi algumas vezes. Antes das filmagens, cheguei a ensaiar com o ator Emílio de Mello, que faz o meu personagem, Zeca.
Ezequiel, aos 70 anos, como você se resume?
Em um paradoxo: sou profundamente superficial, não tenho nada a ensinar. A única perfeição da vida é a alegria [gargalhada].
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