quinta-feira, junho 15, 2017

ENCAIXOTANDO OS 40 ANOS DE CARREIRA SOLO DE IAN HUNTER NOS 30 CDS PRECIOSOS DO BOX "STRANDED IN REALITY"

por Chico Marques



Imaginem um menino inglês rebelde e criativo, filho de um agente do MI5, que cresceu em meio a toda a turbulência da Segunda Guerra Mundial.

Que passou a maior parte de sua infância pulando de cidade em cidade sem conseguir estabelecer raízes em lugar nenhum.

Que conseguiu manter sua sanidade intacta mergulhando fundo em sua imaginação e abraçando forte uma modalidade artística que permitisse a ele botar para fora toda a angústia provocada por essa condição.

Qual o nome dessa modalidade artística?

Uma dica: começa com Rock e termina com Roll...


A trajetória musical de Ian Hunter começa em meados dos anos 50, sempre pulando de banda em banda, e se esforçando para imitar no piano o toque infernal de seu grande herói musical, Jerry Lee Lewis.

Foi parar no Mott The Hoople em 1968 num golpe de sorte, indicado por um amigo do produtor da banda, Guy Stevens.

O Mott acabara de demitir seu vocalista, e também de ser contratado pela Island Records.


Estava numa sinuca de bico, pois precisava entrar logo em estúdio para gravar seu primeiro disco.



À primeira vista, Hunter parecia estar na banda errada.

O Mott The Hoople tocava muito pesado.

Não havia, em princípio, espaço no som da banda para encaixar um piano, e menos espaço ainda para suas baladas com letras viajantes e cheias de metáforas caleidoscópicas, à moda de Bob Dylan.

Mas a personalidade forte de Ian Hunter acabou prevalecendo sobre os outros integrantes da banda, e a banda acabou ficando com a sua cara musical.


Em pouco tempo, ele passou a assinar mais da metade do repertório do Mott, e seu piano honky-tonk passou a comandar o ataque pesado das guitarras do grupo.



Os quatro LPs que o Mott gravou para a Island são completamente caóticos.

Havia uma queda de braço constante entre Ian Hunter e o guitarrista Mick Ralphs pelo comando da banda que conspirava constantemente contra os compromissos profissionais deles.

Apesar dos executivos da gravadora não terem a menor dúvida de que os discos em que Hunter se afirmava como comandante -- caso de "Mad Shadows" e "Brain Capers" -- eram muito superiores aos outros, o climão entre eles era tamanho que era melhor nem chegar perto para não se meter.

O fato do Mott nunca ter despertado a confiança da gravadora da Island Records custou caro para eles.

A Island tinha em seu elenco bandas menos problemáticas e mais rentáveis, como o Free e o Traffic, daí os investimentos promocionais da gravadora eram dirigidos para eles, e o Mott ficava a ver navios.

Ao final do contrato de 4 discos com a Island, o desgaste entre eles era tamanho que todos concordaram que não valia a pena continuar com o Mott The Hoople.

No entanto, aos 45 minutos do Segundo Tempo, eis que entra em cena prometendo fama e fortuna para todos ninguém menos que David Bowie, que era amigão de Hunter, e convence os integrantes da banda a permanecer em seus lugares.

De quebra, se dispõe a produzir um disco para eles e colocar ordem na banda.



E... bem, o resto é história.

O Mott assinou com a Columbia, explodiu mundialmente com 'All The Young Dudes" em 1972 e virou de uma hora para outra uma das maiores e mais rentáveis bandas de glam heavy-rock, ao lado do T. Rex e dos Spiders From Mars de David Bowie.

Paralelo a isso, Ian Hunter virou uma estrela pop, e os outros integrantes da banda tornaram-se coadjuvantes dele -- o que gerou uma ciumeira implacável que, pouco a pouco, foi deixando baixas pelo caminho.

O tecladista Verdon Allen foi o primeiro a cair fora. Mick Ralphs saiu um ano mais tarde, e seguiu para o "projeto Bad Company" a convite de Paul Rodgers.

Mas ambos foram substituídos prontamente sem traumas, e a banda ainda recebeu o reforço luxuosíssimo do superguitarrista Mick Ronson, recém-saído dos Spiders From Mars de David Bowie, nas tournées.

Resultado prático da operação: "Mott" (1973) e "The Hoople" (1974), dois discos espetaculares, indispensáveis em qualquer discoteca, e uma longa tournée mundial que expandiu largamente o público da banda.

Mas ao final desse longo e turbulento período, Ian Hunter já estava com o saco tão cheio do nhem-nhem-nhem de seus colegas que decidiu sair do Mott juntamente com o Mick Ronson, e os dois montaram uma dupla implacável.

Juntos, gravaram discos espetaculares entre 1975 até 1993, quando Ronson morreu, de cirrose hepática.


Infelizmente, a carreira solo de Hunter ao longo desses quase 40 e poucos anos nunca foi um grande sucesso de público, como nos tempos do Mott The Hoople.

Isso, com certeza, o incomodou muito durante os anos 80 e 90, pois não deve ter sido nada agradável ver sua estrela apagar impiedosamente disco após disco, e sentir ser empurrado pouco a pouco do mainstream do rock para a cena alternativa.

Mas ele nunca se deixou abater por isso -- ao menos, não publicamente.

Aceitou na boa a nova condição que o mercado musical lhe ofereceu e seguiu em frente com um trabalho sempre superlativo, produzindo discos e mais discos de altíssimo gabarito, ainda que conhecidos apenas por alguns poucos afortunados.

Da virada do século para cá, no entanto, a carreira de Ian Hunter renasceu com um vigor surpreendente, em uma série de discos excepcionais muito bem recebidos por crítica e público.

Esse processo começou timidamente com 'Rant" (2001), onde resgatou idéias musicais que lembram os discos do Mott bem do início dos anos 70, pouco antes da intervenção de David Bowie como produtor da banda.

Foi seguido pelo debochado e primoroso "Shrunken Heads" (2007), onde Mr. Hunter combinou rocks fulminantes com baladas ternas, sempre desdenhando a maturidade que não cansa de bater à sua porta, e nada dele abrir...

Então, em 2009, eis que ele retorna sereno e reflexivo em "Man Overboard" (2009), assumindo seus 70 anos de idade com alguma perplexidade -- e, claro, com uma certa indolência em alguns (poucos) numeros de rock and roll impecáveis.

E cinco anos atrás, quando todos esperavam dele um disco ainda mais reflexivo e assentado que "Man Overboard", ele entrou em estúdio com sua banda de estrada e disparou doses cavalares de rock and roll num disco surpreendente intitulado "When I'm President", resgatando a mesma urgência de seus melhores trabalhos solo ao lado de Mick Ronson.



Ian Hunter completou 78 anos de vida no início de Junho, e tudo indica que ele não tem mais condições físicas para excursionar com sua Rant band como há 5 ou 6 anos atrás, quando lançou "When I'm President".

Mas ele ainda estava inteiro o suficiente ano passado para fazer algumas apresentações comemorando o lançamento de "Fingers Crossed", seu mais recente LP repleto de homenagens a amigos que se foram como David Bowie, Freddie Mercury e Mick Ronson, e também da magnífica caixa com 30 discos "Stranded In Reality", que cobre pouco mais de 40 anos de carreira solo com todos os exageros que um artista da grandeza de Ian Hunter tem por direito.

Além de todos os álbuns solo que lançou, há vários cds e dvds repletos de preciosidades perdidas nos arquivos de Hunter, formando um panorama extenso de uma carreira magnífica, que precisa urgentemente ser reavaliada e divulgada para as novas gerações de roqueiros do mundo inteiro, que talvez desconheçam a importância de sua obra.


Para a imensa maioria dos habitantes do Planeta Terra, manter uma atitude rock and roll depois dos 70 é absolutamente inviável.

Mas para alguém como Ian Hunter, é molezinha: basta correr atrás da criança que sempre existiu dentro dele. Afinal, ele era ainda uma criança quando o rock and roll entrou em sua vida.

Conforme foi crescendo, sua vida foi-se confundindo com a própria história do rock inglês, numa trajetória só encontra paralelo na do grande e saudoso Alex Harvey.

Sendo assim, fazemos aqui um brinde aos 78 anos de Ian Hunter.

Com votos de uma vida bastante longa e divertida.




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CHICO MARQUES
é comentarista,
produtor musical
e radialista
há mais de 30 anos,
e edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO
e o blog musical
ALTO & CLARO 



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