quinta-feira, julho 28, 2011

A VOLTA DE CINCO BANDAS VETERANAS QUE ESTAVAM SUMIDAS HÁ TEMPO DEMAIS (por Chico Marques)

Houve um tempo em que a crítica torcia o nariz sempre que uma banda veterana resolvia voltar à cena musical, depois de seus integrantes quebrarem a cara em carreiras solo mal sucedidas.

Essas bandas eram eram acusadas de ser oportunistas, de estarem caçando níqueis, e de insistirem em se manter artificialmente num mercado do qual não mais faziam parte.

Claro que, com o passar do tempo, esse radicalismo talibã da crítica foi dando lugar a uma atitude mais ponderada e criteriosa em relação a bandas retornadas após longos hiatos.

Muitas delas voltavam para fazer caixa e ganhar fôlego financeiro para insistir mais alguns anos em carreiras solo que custavam a engrenar, enquanto outras simplesmente retomavam suas atividades mais ou menos do ponto em que pararam.

Tanto num caso quanto no outro, fica a pergunta: o que pode haver de tão desonesto nisso?

Do ano passado para cá, várias bandas veteranas que estavam sumidas do mapa há muito tempo voltaram à cena.

Algumas com trabalhos pouco ou nada expressivos – caso do Blondie, dos Cars e dos New York Dolls.

E outras com trabalhos brilhantes, urgentes, contundentes -- como essas cinco escolhidas para a pauta desta semana em Alto&Claro.

Há vinte anos os novaiorquinos The Feelies não gravam um disco. Há oito anos, The Jayhawks (de Minneapolis, Minnesota) estão afastados dos estúdios. E há seis anos não se ouve falar de trabalhos novos dos Pernice Brothers (de Boston, Massachussets), do Teenage Fanclub (de Glasgow, Escócia) e do Cake (de Sacramento, Califórnia).

Toda essa gente estava afastada da cena principal, mas todos ainda tem muito o que dizer.

E se a única maneira deles conseguirem viabilizar isso for através do revival de suas velhas bandas, que seja assim então.

Benvindas de volta The Jayhawks, The Feelies, Cake, Pernice Brothers e Teenage Fanclub.

















THE JAYHAWKS

MOCKINGBIRD TIME
Este é o primeiro álbum dos Jayhawks desde “Rainy Day Music”, de 2003, e marca o retorno à banda do cantor e guitarrista Mark Olson, depois de uma série de discos solo relativamente bem sucedidos. Acreditem, não é pouca coisa. Mark Olson e Gary Louris formam uma das melhores duplas de compositores que a cena do alt country já conheceu. Os dois brilharam nos anos 80 e 90, daí brigaram feio e só voltaram a se falar 6 anos atrás, meio na moita, sendo que só de dois anos para cá assumiram publicamente que a velha parceria musical estava reativada. A expectativa em torno dessas novas composições da dupla era grande nos últimos meses. Mas agora a expectativa acabou. “Mockingbird Time”, o novo disco da banda, resgata a sonoridade country-rock dos primeiros discos dos Jayhawks e os coloca a banda num contexto mais acelerado que o habitual, fugindo dos excessos pop de discos como “Smile”. Em tournée desde o ano passado, eles tiveram a chance de testar o novo material da estrada, e os fãs da banda aprovaram. Como 2011 é o ano em que a banda comemora 25 anos de carreira, e muitos de seus discos originais estão relançados em edições remasterizadas e expandidas, a chegada de “Mockingbird Time” é mais que oportuna. Traz os bons e velhos Jayhawks rejuvenecidos e totalmente pilhados, mesclando alt country com rock e pop como só eles sabem fazer, e como há muito tempo não se via por aí. Nada mal para uma banda que sempre foi considerada, ao lado do Wilco e do Son Volt, como uma das grandes forças da cena independente americana.
















THE FEELIES
HERE BEFORE

Não deixa de ser curioso os Feelies terem surgido com seu rock and roll melódico e contagiante justo na cena punk novaiorquina dos anos 70, em meio a outros peixes fora d´água como Robert Gordon e Jonathan Richman & The Modern Lovers. Não foi à toa que os primeiros passos da banda tenham sido tão incertos. Seus primeiros LPs gravados para selos independentes ingleses como Stiff e Rough Trade foram solenemente ignorados, até que finalmente foram contratados pela A&M Records e apadrinhados por Peter Buck, do REM, que conseguiu abrir algumas portas para a banda. E que banda! Os guitarristas Glenn Mercer e Bill Million revelaram-se especialistas em estabelecer pontes musicais curiosas entre o rock pedestre do Velvet Underground e soluções melódicas emprestadas do power pop, enquanto a baixista Brenda Sauter e os percussionistas Stanley Demeski e Dave Weckerman forneciam a base segura, mas sempre criativa, para as aventuras musicais da banda. Os Feelies nos brindaram com 4 LPs espetaculares entre 1980 e 1991, seguidos por uma série de tournées de retorno da banda e discos individuais sem foco. Até que, no ano passado, eles assinaram com o selo independente Bar None e gravaram este que é o primeiro disco da banda em 20 anos. O resultado é surpreendente: o frescor musical dos Feelies permanece intacto, as canções estão ainda mais envolventes, e a quantidade de números mais acelerados mostra que a banda está voltando com vigor redobrado, pronta para cair na estrada e conquistar novos admiradores. “Here Before” é um dos melhores discos lançados este ano, e, certamente, o mais ensolarado de todos já gravados por essa banda que um dia foi classificada pelo Village Voice como “a melhor banda underground de Nova York”, e que tem entre seus fãs mais ardorosos gente tão diversa quanto o diretor de cinema Jonathan Demme e o romancista Rick Moody.















CAKE

SHOWROOM OF COMPASSION

Cake surgiu há exatos 20 anos como uma resposta geek à infinidade de bandas grunge que pipocavam de Seattle e infectavam a música de todos os cantos da América. Na época, todo mundo achou muito estranho uma banda de rock ter um trumpetista em sua formação e utilizar instrumentos de percussão tão exóticos, mas, como a música deles era intrigante o suficiente para que ninguém fizesse muitas perguntas, o jeito era tentar entender o conceito musical esboçado por eles. Foi assim que todo mundo percebeu que o Cake era totalmente acessível ao grande público. Com isso, seus 3 primeiros discos fizeram carreiras internacionais bastante satisfatórias. Mas de 2000 para cá, o Cake passou a ser visto como uma “curiosidade engraçadinha dos anos 90”, e isso estigmatizou a banda, fechando algumas portas e levando inclusive a férias prolongadas de quase 3 anos para toda a banda. Felizmente, em 2010, com todos os integrantes vivendo novamente em Sacramento e trabalhando com outras coisas, o Cake decidiu voltar. Como nenhuma gravadora demonstrou interesse neles, decidiram bancar eles próprios esse “Showroom Of Compassion” -- o disco mais arrojado, mais maduro, e menos engraçadinho da banda até agora. O resultado é muito positivo. As canções de John McCrea estão mais intensas que antes e seus vocais menos entediado. Além disso, a banda está tocando de uma maneira mais envolvente e vibrante, e o trumpete de Vincent DiFiore, que antes servia para dar um tom de estranhamento nos arranjos da banda, agora dá um colorido mariachi perfeitamente integrado ao novo repertório. Existe aqui uma coesão que, com certeza, não existia antes, apesar de, aparentemente, o som da banda não ter mudado quase nada do último disco para cá. Resta torcer para que essas sutilezas saltem aos ouvidos dos fãs do Cake espalhados pelo mundo, e que eles saibam receber de volta essa banda totalmente ímpar depois desse sumiço prolongado. Tom Zé – grande amigo da banda -- já ouviu, e aprovou.















THE PERNICE BROTHERS
GOODBYE, KILLER
Joe Pernice é, desde meados dos anos 90, uma das figuras mais inusitadas e brilhantes – para não dizer geniais – da cena independente angloamericana. Comandante de bandas memoráveis como Scud Mountain Boys e Chapaquiddick Skyline -- que mesclavam alt country com power pop e letras de alto gabarito literário --, Joe só foi conseguir reconhecimento quando, ao lado de seu irmão Bob e alguns amigos, gravou para o selo SubPop um LP repleto de baladas pop com arranjos orquestrais densos e criativos chamado “Overcome By Happiness” e assinado por The Pernice Brothers. Como já era de se esperar, o disco passou meio batido nos EUA. Mas foi saudado pelos ingleses como “the next best thing”, o que facilitou e muito os próximos passos da banda. Vários discos brilhantes se seguiram, ano após ano, até que Joe deu uma parada em 2007 e 2008 para escrever um romance e trabalhar em outros projetos, voltando com a banda em 2010, numa tournée que culminou com o lançamento deste “Goodbye, Killer”, um disco que começa com canções fulminantes e atípicas como “Bechamel” e “Jacqueline Susann”. Mas que, já na terceira faixa, nos devolve ao território musical onde os Pernice Brothers viajam melhor. E aí eles brilham intensamente, e mostram que, além de serem a melhor banda de pop barroco da cenas americana atual, são também uma grande banda power pop quando optam por trabalhar com uma instrumentação mais básica, como nesse “Goodbye, Killer”. Imaginem a sagacidade de Elvis Costello com a carga dramática de Morrisey e a non-chalance de Graham Parker. É meio por aí.
















TEENAGE FANCLUB
SHADOWS
Deveriam existir mais bandas como o Teenage Fanclub para mostrar tanto aos que sonham com o estrelato quanto aos que ainda desfrutam de certas regalias das gravadoras que, em nome da longevidade de suas bandas, é sempre bom ter um Plano B para suas carreiras na cena independente, para não ser pego de surpresa pelas idiossincrasias do Indústria Fonográfica. Em 1993, quando emplacaram seu segundo LP, “Bandwagonesque”, nas paradas americanas, esses roqueiros pop escoceses vislumbraram a possibilidade de seus trabalhos seguintes não venderem tão bem. Daí, trataram de não perder o chão de vista, para evitar tombos. Tudo bem que maturidade e rock and roll não costumam combinar bem, mas, no caso do Teenage Fanclub, a coisa foi providencial. Há mais de 10 anos gravando independente e lançando um LP a cada 5 anos -- mas nunca deixando de excursionar --, eles seguem firmes e fortes como ícones da cena power pop e herdeiros diretos de bandas clássicas como Big Star e Badfinger. Nesse mais recente trabalho da banda, “Shadows”, lançado há alguns meses, todas as virtudes principais deles estão muito bem expostas. As composições de Norman Blake, Gerard Love e Raymond McGinley seguem mais reflexivas que o habitual, mas seus refrões continuam grudentos como sempre. Os arranjos e o instrumental da banda são impecáveis, não tem uma única canção no LP que não possa ser tocada ao vivo no mesmo formato em que foi gravada – o que é típico de artistas habituados a amadurecer o repertório testando-o primeiro na estrada. Enfim... aos 25 anos de carreira, nossos bravos highlanders pop seguem firmes e fortes fazendo uma música tão jovial e tão descomplicada quanto a que marcou seus primeiros discos.

DISCOGRAFIAS

LPs THE JAYHAWKS
The Jayhawks (1986)
Blue Earth (1989)
Hollywood Town Hall (1992)
Tomorrow The Green Grass (1995)
Sound Of Lies (1997)
Smile (2000)
Live From Women´s Club (2002)
Rainy Day Music (2003)
Mockingbird Time (2011)

LPs THE FEELIES
Crazy Rhythms (1980)
The Good Earth (1986)
Only Life (1988)
Time For Witness (1991)
Here Before (2011)

LPs CAKE
Motorcade Of Generosity (1994)
Fashion Nugget (1996)
Prolonging The Magic (1998)
Comfort Eagle (2001)
Pressure Chief (2004)
Showroom Of Compassion (2011)

LPs THE PERNICE BROTHERS
Dance The Night Away (com Scud Mountain Boys 1995)
Pine Box (com Scud Mountain Boys 1996)
Massachussets (com Scud Mountain Boys 1996)
Overcome By Happiness (1998)
Chapaquiddick Skyline (com Chapaquiddick Skyline 2000)
Big Tobacco (solo 2001)
The World Won´t End (2001)
Yours, Mine & Ours (2003)
Nobody´s Watching, Nobody´s Listening (2004)
Discover A Lovelier You (2005)
Live A Little (2006)
It Feels So Good When I Stop (2009)
Goodbye, Killer (2011)

LPs TEENAGE FANCLUB
A Catholic Education (1990)
Bandwagonesque (1991)
Thirteen (1993)
Grand Prix (1995)
Songs From Northers Britain (1997)
Howdy! (2000)
Words Of Wisdom And Hope (2002)
Man-Made (1995)
Shadows (2011)


PORTA-RETRATOS

“Mark e eu compomos canções de maneiras muito diferentes. Quando nos juntamos para compor, nossos modos de trabalho entram em conflito, e o resultado disso são canções sempre estranhamente desconjuntadas. Talvez seja isso o que faz do repertório dos Jayhawks tão diferente das outras bandas da cena alt country.” (Gary Louris, Jayhawks)

“Desde os primeiros ensaios até a volta efetiva dos Feelies, todos os passos da banda foram pensados e digeridos lentamente por todos os envolvidos. Felizmente, estamos muito mais maduros emocionalmente hoje. Quando a banda encerrou atividades em 1991, estávamos numa encruzilhada: podíamos seguír para o mainstream, como queriam 50% das pessoas que trabalhavam conosco, ou então voltar para a cena aindependente. Não consequimos chegar a um consenso e a banda acabou.” (Glenn Mercer, Feelies)

“Eu vejo a música como um belo hobby para a maioria das pessoas nos próximos 10 anos. Vejo muitos conhecidos – alguns deles, artistas de muito prestígio – estudando para poder trabalhar com outras coisas num futuro próximo.” (John McCrea, Cake)

“Se os discos dos Pernice Brothers são considerados tão bons, isso com certeza tem a ver com o fato de eu adorar o que faço. Posso garantir que se algum dia eu experimentar alguma coisa que seja tão prazeirosa quanto compor e cantar, sou capaz de largar tudo o que faço hoje e me dedicar exclusivamente a ela.” (Joe Pernice, Pernice Brothers)

“Esse nosso último disco foi gravado em pouco mais de uma semana em 2008. Os dois anos seguintes nós passamos fazendo acertos no disco e aguardando a hora certa de lançá-lo. Quando se é independente, o jeito é planejar todos os passos da possível carreira do disco.” (Ray McGinley, Teenage Fanclub)

“É um prazer estar trabalhando com Gary Louris novamente. Nos discos solo que fiz nos anos em que estive afastado dos Jayhawks senti minha música ficando doméstica demais, previsível demais, ao menos para mim. Senti muita falta de um parceiro que bagunçasse meu meio de campo e puxasse as canções para um lado diametralmente oposto ao almejado por mim. Agora está tudo em casa novamente”. (Mark Olson, Jayhawks)

“Esse disco foi feito de uma maneira totalmente diferente dos outros que fizemos antes. Como estávamos todos com outras atividades e sem muito tempo para trabalhar juntos, trocávamos arquivos musicais com idéias para canções para canções por email. Isso, de certa forma, nos obrigou a ser mais eficientes e objetivos.” (Glenn Mercer, Feelies)

“Tivemos que, de certa forma, reavaliar todo o aspecto business no lançamento desse novo disco. Sabíamos de antemão que não valeria a pena estar vinculado a uma grande gravadora nesse momento específico da Indústria Fonográfica, mas, por outro lado, corríamos o risco de sermos esmagados com insetos ao lançar o disco por nosso próprio selo. Por sorte, está dando certo, mas confesso que nunca tivemos grandes espectativas quanto à vendagem do disco. É tudo muito estranho: chegamos ao primeiro posto do Top 200 da Billboard na semana de lançamento do disco, mas vendemos apenas 45 mil discos.” (John McCrea, Cake)

“Meu irmão Bob participa quase sempre das gravações dos discos dos Pernice Brothers. Só que ele não gosta de sair em tournée. Eu o respeito por isso. Ele é um cientista brilhante e gosta de ser um músico diletante. Nunca pretendeu ser músico profissional 100% do tempo.” (Joe Pernice, Pernice Brothers)

“Nós fomos uma das primeiras bandas a insistir nessa coisa de tocar álbuns inteiros ao vivo, na seqüência original das faixas. É uma maneira da gente conviver com aquelas canções que a gente não gosta mais, e sempre acaba deixando de lado dos shows. É importante aprender a conviver com essas canções. Até porque alguém certamente gosta delas, e vez ou outra vai pedir que as toquemos nos shows.” (Ray McGinley, Teenage Fanclub)


AMOSTRAS GRÁTIS
THE JAYHAWKS





AMOSTRAS GRÁTIS
THE FEELIES





AMOSTRAS GRÁTIS
CAKE





AMOSTRAS GRÁTIS
THE PERNICE BROTHERS





AMOSTRAS GRÁTIS
TEENAGE FANCLUB


COM VOCÊS... O MEU AMIGO... ERASMO CARLOS (Videocrônica para o Jornal da Orla - Julho 27, 2011)

segunda-feira, julho 18, 2011

CINCO ERRANTES ROQUEIROS NAVEGANTES (por Chico Marques)

Nos cinco anos que antecederam “Thriller”, o clássico de Michael Jackson e Quincy Jones, reinava uma pluralidade musical notável nas cenas musicais pop do mundo inteiro. Podia qualquer coisa nas cenas pós-punk e no wave. Bastava ter talento e a bênção de algum produtor musical, e pronto: todos os caminhos estavam abertos.

Mas então veio 'Thriller", o LP que instituiu uma espécie de Idade Média na Indústria Fonográfica americana. E então, a partir dele, a própria Indústria começou a escantear qualquer manifestação artística que não fosse 100% integrada ao que então se considerava “mainstream”.

Hoje, temos uma cena musical bastante semelhante à que havia antes de "Thriller". Só que com uma variedade muito maior de manifestações, uma cena independente que não pára de crescer cada vez, facilidades antes inpensáveis para gravar e mixar um disco e novas “medias” que conseguem entregar o “produto” certo ao cliente certo.

Pouco a pouco, o ideal de mercado musical que existia naquela época – “um mar que não rejeita rio algum”, imagem forjada por Pete Townshend, do The Who, nos anos 1980 – virou realidade.

Sendo assim, nada mais justo que artistas que deram os primeiros passos em suas carreiras naquela momento já meio distante, possam desfrutar de uma situação confortável hoje.

É o caso dos nossos cinco errantes roqueiros navegantes desta semana:

Garland Jeffreys – mulato do Brooklyn apaixonado por blues e soul music, que descobriu o reggae acidentalmente numa academia de ginástica do bairro em 1969.

Willy DeVille – criatura bastante estranha dos subúrbios de Nova York, falecido recentemente, que mesclava a urgência do punk rock com serenatas soul com sotaque latino.

Alejandro Escovedo – punk rocker e poeta das ruas de San Francisco, Califórnia, que aos poucos se tornou um dos compositores mais contundentes da América.

Raul Malo – country-rocker de Miami, Florida, filho de cubanos e um dos artistas mais multifacetados que a cena musical americana já teve o prazer de conhecer.

Luka Bloom – folk singer irlandês nada ortodoxo, que ficou famoso por pegar um número do rapper L L Cool J. e transformá-lo numa bela balada folk.

Todos eles tem em comum o mesmo espírito aventureiro e a mesma atitude desalinhada

Pois estes são os mais novos trabalhos desses bravos desbravadores musicais.

Vamos a eles:



















GARLAND JEFFREYS

THE KING OF IN BETWEEN
A primeira vez que o mundo tomou conhecimento da existência de Garland Jeffreys foi no disco “Vintage Violence”, que John Cale gravou logo que saiu do Velvet Underground, em 1969. Jeffreys estava lá, cantando ao lado dele, e logo foi saudado como “the best next thing” e um dos tesouros musicais escondidos mais preciosos da Costa Leste americana. Demorou a ser contratado, pela Atlantic. E então, gravou um belo disco em 1972 com uma banda que trazia Dr. John e outros grande músicos, onde mapeava musicalmente a região do Brooklyn e do Queens, mesclando soul, rock and roll, reggae, canções hispânicas e outras sonoridades trazidas pelos novos habitantes desses bairros, que vinham de todos os cantos do mundo. Podia ter sido um triunfo. Mas, infelizmente, ninguém tomou o menor conhecimento, e o LP foi um fiasco de vendas. Jeffreys passou quatro anos no estaleiro tentando avaliar o que saiu errado, e então voltou à carga com um segundo disco certeiro, excelente, chamado “Ghost Writer”, onde retomava o mesmo projeto musical anterior, mas agora com o suporte jazzy da banda do guitarrista David Spinozza e alguns singles em potencial escondidos na cartola e nas mangas. Aí sim, funcionou. E o sucesso finalemente chegou. Mas infelizmente não durou muito -- apenas 3 ou 4 anos. Em meados dos anos 1980 – sem dúvida o períodos menos tenebroso da história da música pop -- , Jeffreys cansou de correr atrás de contratos e passou a gravar discos independentes, que vendiam muito pouco, e, por conta disso, ficaram cada vez mais espaçados. Para se ter uma idéia, “The King Of In Between” é seu primeiro trabalho em nada menos que 13 anos, e é excelente, vigoroso, repleto de composições que grudam no ouvido logo após a primeira audição e perfeito em todos os sentidos. Tem um dos boogies mais deliciosos que ouvi nos últimos anos – “Til John Lee Hooker Calls Me” --, a melhor homenagem à cidade de Nova York que ouvi neste novo Século – “Roller Coaster Town” – e também seqüências temáticas a seus números clássicos dos anos 70 ‘Wild In the Streets” -- “Streetwise”, malandra até dizer chega – e “”Ghost Writer” -- “The Contortionist”, quase uma autobiografia dos últimos 30 anos --, ambas magníficas. A não ser que Mr. Jeffreys seja um compositor muito pouco prolífico, não há justificativa para gravar assim tão pouco, e tão espaçado. Garland Jeffreys: por favor, não suma novamente. E agora chega, pois meus adjetivos acabaram.




















WILLY DEVILLE

COME A LITTLE BIT CLOSER – LIVE!
Por mais questionável que tenha sido o legado musical do punk rock nos Estados Unidos, não se pode negar que foi graças à efervescência da cena pós-punk que muitos artistas inclassificáveis ou difíceis de classificar conseguiram um merecido lugar ao sol na Indústria Fonográfica. Willy DeVille era uma deles. No comando do grupo Mink DeVille nos anos 1970 e 1980, ele mesclou um rock and roll pedestre e urgente com a soul music com sotaques latinos dos subúrbios de Nova York e Newark numa combinação que lembrava tanto Phil Spector quanto os emergentes conterrâneos Bruce Springsteen & The E Street Band e Southside Johnny & The Asbury Jukes. Mas Willy DeVille tinha um projeto de carreira bem mais complexo que isso. Depois de 10 anos à frente do Mink deVille, dissolveu a banda e seguiu para New Orleans para fazer investigações musicais no rhythm & blues do Deep South, em discos magníficos como “Loup Garou” -- que foram extremamente bem recebidos na Europa mas solenemente ignorados nos EUA. Mas isso não o desanimou. Mudou-se para Paris, passou a administrar sua carreira de lá, e tocou seu trabalho em frente, fazendo tournées memoráveis e gravando discos estranhos, difíceis, mas sempre inusitados e de altíssimo gabarito artístico. Desde sua morte ano retrasado, circulam rumores de que um grande número de gravações inéditas estaria sendo organizada para lançamento em discos futuros. Esse aqui, pelo visto, é o primeiro deles. É quase um The Best Of Willy DeVille gravado ao vivo, com releituras magníficas tanto para canções de todas as fases de sua carreira, como ‘Venus Of Avenue D”, ‘Spanish Stroll”, “Mixed Up Shook Up Girl” e “Just To Walk That Little Girl Home”. De surpreendente, uma releitura à moda de Phil Spector para “Slave To Love”, de Brian Ferry, e outra, estranhíssima -- em tom de salsa, simplesmente genial --, para a imortal “Hey Joe”. Quem não conhece Willy deVille, temem “Come A Little Bit Closer – Live!” um excelente ponto de partida para uma das figuras mais loucas e idiossincráticas da cena musical pop americana em todos os tempos. Para quem o conhece de longa data, é uma excelente oportunidade para matar a saudade. Da minha parte, não é pouca.




















ALEJANDRO ESCOVEDO

STREET SONGS OF LOVE
Há mais de 35 anos na cena musical da Costa Oeste americana à frente de bandas ótimas que nunca emplacaram direito -- Rank & File, True Belivers – ou apostando numa carreira solo que nunca decolou como merecia, tudo indica que Alejandro Escovedo finalmente achou seu Norte. “Street Songs Of Love” é seu segundo LP produzido pelo lendário Tony Visconti, ex-parceiro de David Bowie nos anos 1970, e mixado por Bob Clearmountain -- que souberam adequar aquela urgência roqueira “glam” dos discos clássicos de Bowie ao trabalho intenso e multifacetado de Escovedo, O resultado é vigoroso, sem dúvida um dos discos mais contundentes deste ano. O isso é surpreendente vindo de Escovedo, já que ele esteve à beira da morte dez anos atrás, por conta de uma hepatite C dignosticada e não tratada ao longo de 4 anos. Escovedo teve um colapso em pleno palco, em Phoenix, e teve sua carreira interrompida por um tratamento demorado, que foi totalmente bancado pelos amigos e admiradores, e que durou mais de dois anos – mas, felizmente, teve bons resultados. Desde que voltou à ativa, a temática habitual das canções de Escovedo ficou mais serena -- como “After The Meteor Showers” e “Shelling Rain” –, apesar de sua musicalidade estar mais turbulenta e agressiva do que jamais esteve – como comprovam “This Bed Is Getting Crowded” e “Anchor”. Enfim, Alejandro Escovedo é um grande talento. Está no melhor momento de sua carreira. Só nos resta torcer para que essa sua lua de mel com Tony Visconti e Bob Clearmountain emplaque outros discos tão superlativos quanto estes recentes “Real Animal” e “Street Songs Of Love”.




















RAUL MALO

SINNERS AND SAINTS
Se tem alguém hoje em dia na cena musical americana capaz de aglutinar gêneros musicais tão conflitantes quanto rockabilly, honky tonk, surf music, polka, tex-mex, salsa e country... esse alguém é Raul Malo. Ex-líder dos Mavericks, dono de um timbre vocal que lembra eventualmente Roy Orbison, e herdeiro do legado musical do “maestro” Doug Sahm – conhecido como o Count Basie do Tex-Mex --. Raul Malo nasceu em Miami, Florida, filho de pais cubanos, e tocou em tantas bandas de tantos gêneros diferentes que aprendeu a ver a música popular por uma ótica plural e totalmente pessoal. Esse seu sexto LP solo começou a ser gravado dois anos atrás em um estúdio caseiro em Nashville, Conforme as canções foram evoluindo, Malo sentiu que aquelas novas canções estavam brotando na cidade errada, e mudou de mala e cuia para Austin, Texas, onde uniu forças a craques como o lendário organista Augie Myers, o guitarrista Shawn Sahm (filho de Doug) e o grupo vocal feminino The Trishas. Foi aí que “Sinners and Saints” ganhou esse sotaque fronteiriço delicioso e esse colorido musical que ostenta. Não é exagero algum dizer que este é o melhor de todos os discos de Malo, incluindo os que fez com os Mavericks. E não há muito mais o que dizer. Escutem esse novo trabalho de Raul Malo e entendam porque não existem fronteiras musicais entre Estados Unidos, México e as sonoridades caribenhas. “Sinners and Saints” é tão bem resolvido que merecia tocar o dia inteiro como música ambiente na ONU. Quem sabe aquela gente aprende alguma coisa com esses músicos eternamente sorridentes.















LUKA BLOOM

2 METER SESSIONS
Luka Bloom nasceu na Irlanda e começou sua carreira em meados dos anos 1970 com seu nome verdadeiro, Barry Moore -- incentivado pelo irmão Christy Moore, que já era na ocasião um dos artistas folk mais respeitados da cena irlandesa. Mas, por algum motivo que nada tinha a ver com seu talento como cantor e compositor – provavelmente a sombra protetora e, ao mesmo tempo, incômoda de seu irmão mais famoso – sua carreira nunca sensibilizou muito os irlandeses. Então, a reboque do sucesso internacional do U2, ele deixou a Irlanda em 1987 e mudou seu nome artístico para Luka Bloom, para tentar a sorte na América. Gravou 3 discos para a Reprise Records que o projetaram como artista folk, mas acabou prisioneiro de um contrato leonino que o deixou 5 anos sem poder gravar. Curiosamente, do início dos anos 1990 em diante sua carreira finalmente decolou. Seus últimos discos -- “Tribe”, ‘Eleven Songs” e “Lost In America” – são triunfos artísticos inquestionáveis, bem recebidos por crítica e público no mundo inteiro. Esse novo “2 Meter Sessions” é um EP com 8 de suas canções gravadas ao vivo, sem banda, para um projeto da TV Dinamarquesa , que acaba de ser lançado somente para o mercado europeu. Para quem ainda não conhece o trabalho de Luka Bloom, serve como uma bela introdução aos múltiplos talentos desse eloqüente folk Singer irlandês. Para quem já conhece, vale como aperitivo até que ele nos brinde com seu próximo disco, quem sabe até o final deste ano.


DISCOGRAFIAS

LPs GARLAND JEFFREYS
Garland Jeffreys & Grinders Switch (1970)
Garland Jeffreys (1973)
Ghost Writer (1977)
American Boy & Girl (1978)
Escape Artist (1980)
Rock & Roll Adult (1981)
Guts For Love (1983)
Don´t Call me Buckwheat (1992)
Wildlife Dictionary (1997)
The King Of In Between (2011)

LPs WILLY DEVILLE
Cabretta (com Mink DeVille 1977)
Return To Magenta (com Mink DeVille 1978)
Le Chat Bleu (com Mink DeVille 1980)
Coup De Grace (com Mink DeVille 1981)
Where Angels Feat To Tread (com Mink DeVille 1983)
Sportin´ Life (com Mink DeVille 1985)
Miracle (com Mink DeVille 1987)
Victory Mixture (1990)
Willy DeVille Live (1993)
Backstreets Of Desire (1994)
Loup Garou (1996)
Live (1991)
Horse Of A Different Color (1991)
Acoustic Trio In Berlin (1993)
Crow Jane Alley (1994)
Pistola (2008)
Come A Little Bit Closer – Live! (2011)

LPs ALEJANDRO ESCOVEDO
Sundown (com Rank & File 1982)
Long Gone Dead (com Rank & File 1984)
Rank & File (com Rank & File 1985)
True Believers (com True Believers 1987)
Hard Road (com True Believers 1989)
Gravity (1992)
The End-Losing Your Touch (1994)
Thirteen Years (1994)
With These Hands (1996)
More Miles Than Money-Live! (1998)
Bourbonitis Blues (1999)
A Man Under The Influence (2001)
By The Hand Of the Father (2002)
Por Vida: A Tribute to Alejandro Escovedo (2004)
Room Of Songs (2005)
The Boxing Mirror (2006)
Real Animal (2008)
An Introduction To Alejandro Escovedo (2009)
Street Songs Of Love (2011)

LPs RAUL MALO
Mavericks (com Mavericks 1991)
From Hell To Paradise (com Mavericks 1992)
Cryin´ Shame (com Mavericks 1994)
Music For All Occasions (com Mavericks 1995)
Trampoline (com Mavericks 1998)
It´s Now! It´s Live! (com Mavericks 1998)
Live In Austin Texas (com Mavericks 2000)
Today (2001)
The Nashville Acoustic Sessions (2004)
You´re Only Lonely (2006)
After Hours (2007)
Marshmallow World & Holiday Favorites (2007)
Lucky One (2009)
Sinner & Saints (2011)

LPs LUKA BLOOM
The Barry Moore Years (1987)
Luka Bloom (1988)
Riverside (1990)
The Acoustic Motorbike (1992)
Turf (1994)
Salty Heaven (1999)
Keeper Of The Flame (2000)
Between The Mountain & The Moon (2002)
Amsterdam Live! (2003)
Before Sleep Comes (2004)
Innocence (2006)
Tribe (2007)
Eleven Songs (2008)
Dreams In America (2010)
2 Meter Sessions (2011)


PORTA-RETRATOS

“Não sou o tipo de compositor que escreva canções sobre garotas e carros. Meu tema é sempre como e onde eu fui criado, e como vivo hoje. Meu desafio é sempre achar uma maneira nova de traduzir isso em canções.” (Garland Jeffreys)

“O grande segredo na hora de gravar é saber a hora de parar. Tem momentos em que, se você entra na cabine novamente para refazer alguma passagem, ou para acrescentar alguma coisa, você mata a canção. Daí, é importante ter segurança e acreditar no que você fez. E tomar coragem para dar o assunto por encerrado.” (Willy DeVille)

“Bruce Springsteen sempre foi um grande amigo e um grande incentivador do meu trabalho. Há já uns bons anos, enquanto seu show não começa, ele sempre manda colocar meus cds para tocar para o público dele. Esse tipo de camaradagem é a cara dele.” (Alejandro Escovedo)

“Ouço de tudo desde pequeno. Adoro Elvis e Johnny Cash. Gosto muito de Luciano Pavarotti. Sempre ouço Etta James e James Brown. É muito raro eu calhar de não gostar de algum tipo de música.” (Raul Malo)

“É um grande privilégio poder compor canções e cantá-las para as pessoas. Tenho uma gratidão imensa por qualquer um que compre meus discos ou vá a meus shows. Nunca achei que merecesse receber mais crédito do público do que os que já tenho. O desafio agora é zelar pelos admiradores que já conquistei, e mantê-los interessados no que faço.” (Luka Bloom)

“Fico feliz quando acerto na mosca com minhas composições. Tempos atrás, conversando com meu amigo Graham Parker, ele disse: Puxa, Garland, aquela sua canção, “Matador”, é demais, simplesmente perfeita, talhada para o sucesso. Como eu queria ter escrito uma canção poderosa como essa. O diabo é que tem gente como Paul Simon que tem umas vinte dessas em seu curriculum.” (Garland Jeffreys)

“Adoro a música que faço e adoro sair em tournée. Quando sinto que consegui entrar na mesma sintonia da platéia, o prazer que sinto é indescritível. Eu me considero um cara de sorte. Faço só o que gosto. Pouca gente no mundo inteiro conta com esse privilégio.” (Willy DeVille)

“Meus pais contribuiram bastante para a cena musical americana. Meus irmãos Coke e Pete são muito conhecidos por terem participado das melhores formações da banda de Carlos Santana. Eu, que sou o mais novo, já estou na cena há 35 anos. Somos quase um clã musical. Para mim, é motivo de muito orgulho carregar o nome Escovedo.” (Alejandro Escovedo)

“Música é um negócio muito incerto. É preciso gostar muito de fazer música para poder encarar o meio musical. Ou você ama muito o que você está fazendo, e confia no seu taco -- torcendo para que dê tudo certo no final e o público responda positivamente ao que você realizou --, ou então é melhor mudar de ramo.” (Raul Malo)

“Luka eu tirei da canção de minha amiga Suzanne Vega. Bloom, eu tirei do personagem de James Joyce. Como eu estava vindo de Dublin para Nova York para recomeçar minha carreira, achei que seria boa idéia adotar um novo nome artístico que fizesse a ponte entre essas duas cidades.” (Luka Bloom)


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MONTEREY POP FAZ 44 ANOS (Videocrônica para o Jornal da Orla - 14 Julho 2011)

terça-feira, julho 12, 2011

CINCO VOZES E O SENTIMENTO DO MUNDO (por Chico Marques)

É curioso como todas as grandes transformações musicais da música negra americana aconteceram sempre que algum gaiato transportou os spirituals e gospels cantados nas Igrejas Batistas para ambientes pouco ou nada abençoados pelo Senhor.

Isso aconteceu tanto com o jazz – que surgiu do encontro da música dos negros com os instrumentos vindos da Europa na velha New Orleans --, quanto com o blues – que saiu das plantações que cercavam os Vales do Mississipi e ganhou ares cosmopolitas em cidades como Chicago, Memphis, Saint Louis e Kansas City --, e também com a soul music -- que não difere em praticamente nada dos gospels, a não ser pelas temáticas bem mundanas das canções, que jamais caberiam no ambiente “de elevação” das Igrejas.

Para os artistas de todos esses gêneros musicais, cantar e comunicar andavam sempre lado a lado. Até porque as melhores referências que tinham tanto do ato de cantar quanto do ato de comunicar não vinham do rádio, e sim da Igreja mais próxima. Certos pastores eram verdadeiras estrelas pop nos anos 1950 e 1960. James Franklin – pai de Aretha – era um desses que atraíam verdadeiras multidões por onde passava.

Mas então surgiu Ray Charles, com seus gospels incendiários que falavam de sexo e de relações amorosas turbulentas com uma franqueza assustadora para quem não estava habituado a ouvir aquilo. Foi a partir daí que muitos cantores dos coros das Igrejas constataram que existia vida artística fora dalí, e então largavam tudo e seguiam para Memphis, Tennessee -- o epicentro dessa nova tendência musical.

Foi assim com o ex-Reverendo Solomon Burke -- a primeira estrela soul a surgir depois de Ray Charles --. com o showman absoluto James Brown -- que explodiu nas paradas quase ao mesmo tempo que Burke – e com diversos outros artistas tão seminais quanto eles -- Sam Cooke, Otis Redding, Wilson Pickett, Don Covay, Joe Tex, Arthur Alexander, Bobby Womack, etc. Todos brilharam intensamente na primeira metade dos anos 1960, correndo lado a lado com a explosão do Movimento pelos Direitos Civis na América.

Sintomaticamente, não haviam pastoras nas igrejas freqüentadas por negros. Por conta disso, também não havia uma única mulher de destaque na cena da soul music.

Foi quando Jerry Wexler trouxe para a Atlantic Records uma grande cantora negra que estava perdida no elenco da Columbia há anos, gravando repertório inadequado e indo rápido a lugar algum.

Bastou Aretha Franklin chegar à cena da soul music em 1966 já soltando a voz, e o tradicionalíssimo machismo dos negros foi colocado em xeque. Manifestos musicais como “Think” e “Respect” acabaram se revelando mais contundentes e eficazes para as mulheres da Comunidade Negra do que a obra completa de feministas como Betty Friedan e Gloria Steinem.

Aretha chegou chutando a porta e gritando "Qual é o problema".

Ninguém se atreveu a peitá-la.

Mas, com a morte de Martin Luther King, tudo isso foi meio que deixado de lado de uma hora para outra. E a soul music, de luto, deixou os temas mundanos um pouco de lado para buscar uma espécie de elevação, se aproximando novamente dos gospels -- e, de certa forma, encerrando um ciclo.

Nos anos 1970, o panorama soul ficou disperso, mais voltado para o pop e mais integrado às platéias brancas. E, consequentemente, menos comprometido com mudanças sociais.

Os artistas clássicos do gênero que sobreviveram na cena mantiveram, da meneira que foi possível, a da soul music acesa. Ganharam o reforço dos artistas de blues, que, ao longo dos anos, se deixaram contaminar pela musicalidade e pelas vocalizações soul. Todos eles, de certa forma, passaram a compor uma mesma cena de quarenta anos para cá.

Conheçam agora um pouco dos novos trabalhos de veteranos como Aretha Franklin e Aaron Neville, quase veteranos como Ruthie Foster e Eric Bibb, e também de uma cantora e guitarrista branca, ruiva e surpreendente chamada E G Kight.

Todos os cinco -- cada um à sua maneira -- abraçam o mundo com suas vozes e definem bem a palavra SOUL.




















ARETHA FRANKLIN
A WOMAN FALLING OUT OF LOVE
Às vésperas de completar 70 anos, a Primeiríssima Dama da Soul Music está de volta com um disco que é excepcional pelo simples fato de existir. Explico melhor. Aretha esteve muito mal de saúde nos últimos anos – ela aparenta estar melhor agora. Esteve também numa batalha judicial bastante desgastante com sua ex-gravadora Arista Records -- assunto encerrado de uns meses para cá, desde que ganhou na justiça o direito de lançar este disco, que já está pronto há quase dois anos, por seu selo próprio, Aretha Records. Se por um lado “A Woman Falling Out Of Love” está distante do altíssimo gabarito de seus melhores LPs gravados nos anos 1960 e 1970, por outro lado funciona como uma seqüência bastante digna para seus últimos trabalhos “A Rose Is Still A Rose” (1997) e “So Damn Happy” (2002). É um disco bastante envolvente, onde Aretha solta a voz em duetos com expoentes de várias fronts musicais, mesclando números de r&b bem modernosos com gospels, blues e standards do cancioneiro americano. Aretha tem uma peculiaridade que sempre deixou as outras cantoras profundamente irritadas: quanto mais solta a voz, mais facilmente acerta o ponto. Economia de recursos vocais, definitivamente, nunca foi seu forte. A maneira como descontrói e reinventa números batidos como “A Summer Place” e “The Way We Were” – essa última em dueto com o fabuloso Ron Isley, dos Isley Brothers -- é prova clara disso, e é o que faz de Aretha única e absoluta. Confesso que só não gostei da gravação que ela fez para “My Country Tis Of Thee” -- apoteótica demais para um gospel, mas justificável como hino da Era Obama, de quem Aretha é fiel apoiadora. Agora, é torcer para que Aretha Franklin, com seu selo próprio, consiga administrar melhor sua carreira e manter uma regularidade de lançamentos para os próximos anos. Nós, seus súditos, merecemos.




















AARON NEVILLE

I KNOW I´VE BEEN CHANGED
Aaron Neville é outro que está batendo às portas dos 70 anos de idade com uma vitalidade artística assombrosa. Voz principal dos Neville Brothers e um dos patrimônios mais valiosos da música de New Orleans, Aaron resgatou em 1990 uma carreira solo que estava adormecida desde a segunda metade dos anos 1960, quando, ao lado de Allen Toussaint, emplacou compactos clássicos como “Tell Me Like It Is”. Só que ele exagerou um pouco no direcionamento crossover desses discos de retorno, e, em vez de ampliar seu público, acabou virando prisioneiro de um padrão de produção muito meloso e pouco arrojado – bem na contramão de seu trabalho que desenvolve com seus irmãos. Mas aqui, em “I Know I´ve Been Changed” -- só de gospels tradicionais, com arranjos eloquentes de Allen Toussaint e a sonoridade moderníssima do produtor Joe Henry -- ele finalmente vira o jogo a seu favor . Além de ser um triunfo artístico retumbante, funciona também como um apelo para que alguma coisa seja feita em prol do povo pobre de New Orleans, que teve a vida devastada pelo Furacão Katrina, e até hoje ainda briga para conseguir retomar seu padrão de vida anterior. A delicadeza com que os gospels de “I Know I´ve Been Changed” se encadeiam, receitando fé como remédio para suportar as adversidades, deixam claro que – nas palavras de um crítico americano – “está mais do que na hora de Deus voltar a morar em New Orleans”. Com uma trilha sonora magnífica como essa proporcionada pelo triunvirato Aaron Neville, Allen Toussaint e Joe Henry, duvido muito que Ele não se sinta em casa logo de cara.




















RUTHIE FOSTER

LIVE AT ANTONE´S
Mesmo quem não acompanha a cena musical texana, já deve ter ouvido falar de Ruthie Foster a essa altura do campeonato. Excelente compositora, ela é dona de um tremendo vozeirão que lhe permite passear com muita desenvoltura por gêneros tão diversos quanto blues, jazz, rock and roll e country music, Sempre criticada por não conseguir imprimir em seus (até agora) 7 LPs de estúdio o mesmo vigor e a mesma pegada fulminante de suas performances ao vivo, Ruthie decidiu que estava mais do que na hora de dar um cala-boca nesse pessoal. E acaba de lançar esse cd e dvd “Live At Antone's, gravado no inferninho número um de Austin, Texas. É uma dose cavalar de rhythm & blues e americana, onde abre espaço para apenas 3 canções suas, desfilando covers magníficos de canções de compositores amigos, como Patti Griffin ("When It Don't Come Easy"), Lucinda Williams ("Fruits of My Labor") e Sista Rosetta Tharpe ("Up Above My Head [I Hear Music in the Air]). É uma jovem artista excepcional, aqui num momento precioso de sua carreira. Quem ainda não conhece Ruthie Foster, pode começar a se iniciar por aqui. Não há contra indicações.


















ERIC BIBB WITH STAFFAN ASTNER

TROUBADOUR LIVE!
Quando surgiu com seus primeiros discos no início dos anos 1980, Eric Bibb foi rapidamente aclamado como o príncipe herdeiro do folk-blues e a grande esperança branca para a renovação do gênero numa cena onde havia cada vez menos espaço para ele. As razões disso não eram poucas. Eric vem de uma família musical até demais. Seu pai é o grande cantor e guitarrista Leon Bibb. Seu tio, o notável pianista John Lewis, do Modern Jazz Quartet. E seu padrinho musical, nada menos que o lendário cantor negro da Broadway, Paul Robeson, Depois de se escolar musicalmente na casa de seu pai, por onde circulavam os músicos mais influentes da cena novaiorquina, Eric seguiu para Paris, onde estudou música e permaneceu mais de 15 anos trabalhando como músico profissional. Voltou para a América só quando sentiu que havia finalmente mercado para seu trabalho. De lá para cá, já gravou mais de 20 discos – alguns na tradição do folk-blues, outros musicalmente mais variados e com instrumentação eletrificada. Nesse mais recente, gravado ao vivo num nightclub na Suécia, ele trabalha com um combo básico, toca guitarra acústica e divide a cena com o ótimo guitarrista elétrico Staffan Astner e com o trio vocal gospel Psalm4, num repertório que trafega por diversos gêneros, e que culmina com uma releitura muito original para “People Get Ready”, de Curtis Mayfield. Quem prefere Eric Bibb tocando apenas blues talvez torça o nariz para o ecletismo musical desse LP. Mas todos os que não acreditam em fronteiras nos terrenos musicais com certeza vão ficar extasiados com mais essa aventura musical desse artista notável.


















E G KIGHT

LIP SERVICE
Eugenia Gail Kight nasceu há 45 anos em Dublin, Georgia. É uma ótima guitarrista, uma compositora extremamente simpática e uma cantora com um frescor vocal que lembra tanto Bonnie Bramlett quanto Rita Coolidge em seus inícios de carreira. Trabalhou como sidewoman para muitos artistas de blues e country music até conhecer Koko Taylor em 1995, quando decidiu que seu lugar era na cena do blues e do rhythm & blues. De lá para cá já gravou 6 discos solo e ganhou uma penca de prêmios, mas infelizmente continua uma ilustre desconhecida para o grande público. Quem sabe esse novo “Lip Service” consiga reverter esse status. Com o suporte luxuoso de grandes músicos da cena de Atlanta, como Randall Bramlett, Paul Hornsby e Tommy Talton, ela voa alto numa seqüência impecável de faixas, onde as mais lentas – como “That´s How A Woman Loves”, “Somewhere Down Deep” e “It´s Gonna Rain All Night” – se sobressaem aos números rápidos. Assim como Bonnie Raitt e Susan Tedeschi, E G Kight é mais uma guitarrista ruiva com alma negra e um futuro brilhante pela frente que -- a julgar pela excelência deste “Lip Service” -- não deve tardar a chegar.

DISCOGRAFIA

LPs ARETHA FRANKLIN
Take A Look: Complete Aretha on Columbia (1962-1966)
I Never Loved A Man (1967)
Aretha Arrives (1967)
Aretha In Paris (1967)
Lady Soul (1968)
Aretha Now (1968)
I Say A Little Prayer (1969)
Soul 69 (1969)
Don´t Play That Song (1970)
Spirit In The Dark (1970)
This Girl´s In Love With You (1970)
Live At Fillmore West (1971)
Young, Gifted & Black (1971)
Amazing Grace (1972)
Hey Now Hey (1973)
Let Me In Your Life (1974)
With Everything I Feel In Me (1974)
You (1975)
Sparkle (1976)
Sweet Passion (1977)
Almighty Fire (1978)
La Diva (1979)
Aretha (1980)
Love All The Hurt Away (1981)
Jump To It (1982)
Get It Right (1983)
Who´s Zoomin´ Who (1985)
Aretha (1986)
One Lord, One Faith, One Baptism (1987)
Through The Storm (1989)
What You See Is What You Sweat (1991)
A Rose Is Still A Rose (1998)
Duets (2001)
So Damn Happy (2003)
This Christmas (2008)
A Woman falling Out Of Love (2011)
http://www.aretha-franklin.com/

LPs AARON NEVILLE
Tell It Like Is It (1967)
Mickey Mouse March (1986)
Warm Your Heart (1991)
The Grand Tour (1993)
Soulful Christmas (1993)
The Tattoed Heart (1995)
To Make Me Who I Am (1997)
Devotion (2000)
Believe (2003)
Nature Boy: The Standards Album (2003)
Christmas Prayer (2005)
Bring It On Home (2006)
I Know I´ve Been Changed (2010)
http://aaronneville.com/


LPs RUTHIE FOSTER
Crossover (1999)
Full Circle (2001)
Runaway Soul (2002)
Stages (2004)
The Phenomenal Rothie Foster (2007)
The Truth According To Ruthie Foster (2009)
Live At Antone's (2011)
http://www.ruthiefoster.com/

LPs ERIC BIBB
Rainbow People (1977)
River Road (1980)
Good Stuff (1997)
Me To You (1998)
Home To Me (1999)
Spirit & The Blues (1999)
Painting Signs (2001)
Just Like Love (2002)
Natural Light (2003)
Roadworks (2004)
Sisters And Brothers (2004)
Friends (2004)
A Ship Called Love (2005)
Diamond Days (2006)
Praising Peache: A Tribute To Paul Robeson (2006)
An Evening With Eric Bibb (2007)
Spirit That I Am (2008)
Get On Board (2008)
Rainbow People (2009)
Booker´s Guitar (2010)
Troubadour Live (2011)
http://www.ericbibb.com/

LPs E G KIGHT
Come Into The Blues (1997)
Trouble (2002)http://www.blogger.com/img/blank.gif
Southern Comfort (2003)
Takin’ It Easy (2004)
EG Live & Naked (2007)
It´s Not In Here (2008)
Lip Service (2011)
http://www.egkight.com/

PORTA RETRATOS

“Fui operada de câncer no pâncreas ano passado e achei que não iria sobreviver. Mas então, ao acordar da anestesia, vi ninguém menos que Stevie Wonder ao lado da cama, junto com minha família. Foi quando tive certeza de que iria conseguir dar a volta por cima.” (Aretha Franklin)

“Trabalhava no Porto de New Orleans quando meu compacto Tell It Like It Is explodiu nacionalmente em 1967. Logo imaginei: Estou Rico! Quando fui tentar receber meus royalties, a gravadora tinha acabado de pedir falência. Ou seja: alguém ficou rico no meu lugar. Não há nada mais frustrante que isso.” (Aaron Neville)

“Meu estilo musical é basicamente gospel, apesar de não cantar música religiosa, mas a música que eu toco trafega entre blues, soul, reggae e rock and roll. Espero que isso sirva como definição do meu trabalho. Se não, que sirva como uma carta de intenções.” (Ruthie Foster)

“Acho que os ingleses tem um papel vital nessa ressurreição do blues. Eles mantiveram a coisa viva quando ninguém se importava mais nos Estados Unidos. Então, de repente, tudo voltou. E muito forte. Hoje, blues é quase mainstream.” (Eric Bibb)

“Quando Koko Taylor escolheu uma das minhas canções para gravar em seu disco Royal Blue, eu quase enlouqueci de tanta felicidade” (E G Kight)

“Mesmo sem conseguir encarar uma tournée, confesso que estou muito feliz em voltar a cantar em Festivais como o de Montreal e o de New Orleans. Se der, quero poder voltar a trabalhar a todo vapor. Se não der, quero poder fazer um show aqui, outro acolá, de tempos em tempos. O que não quero é ficar parada.” (Aretha Franklin)

“As pessoas até hoje estranham o contraste entre a delicadeza da minha voz e esse meu jeitão de ex-estivador. Meu jeito de cantar é uma tentativa de trazer para a música negra o yodel que Roy Rogers e Gene Autry faziam em suas canções nos filmes que eu via quando era menino. Acabou saindo meio estranho, e deu no que deu.” (Aaron Neville)

“Sempre combino um set list com a banda, que é para não ser seguido. Serve apenas um porto seguro, caso não consigamos sentir a platéia da maneira certa. Mas felizmente nunca aconteceu da platéia não responder bem, ou de não conseguirmos estabelecer comunicação com ela.” (Ruthie Foster)

“Gosto de trabalhar com músicos estrangeiros. Tenho um guitarrista sueco e cantores sulafricanos em minha banda. Acho que, se saí de Nova York e ganhei o mundo apresentando minha música, nada mais coerente de que receber influências do mundo afora através de músicos. Tem uma comunidade fantástica deles em qualquer canto do mundo onde você vá.” (Eric Bibb)

“Eu não faço como muitos artistas amigos meus, que evitam ler críticas a seus trabalhos. Eu leio tudo. Acho importante. Tenho confiança na qualidade do meu trabalho, mas não posso abrir mão do feedback da crítica.” (E G Kight)

AMOSTRA GRÁTIS