segunda-feira, agosto 31, 2015

2 OU 3 COISAS SOBRE "BAD MAGIC", NOVO LP DE LEMMY KILMISTER À FRENTE DO MOTORHEAD

por Chico Marques


O Motorhead está completando 40 anos de vida em 2015.

No início, a banda do ensandecido baixista Lemmy Kilmister, recém-expulso do grupo de space-rock Hawkwind, desafiava definições. Os integrantes do Motorhead usavam (usam) cabelos longos com costeletas e indumentária de bikers, mais camisas pretas típicas dos metaleiros, só que rasgadas e com motivos da Era Punk. Confuso? Nem tanto. Quando tocavam (tocam), produziam (produzem) uma modalidade extremamente barulhenta e acelerada de heavy rock que acabou dando origem a vários subprodutos do heavy-metal, como o speed metal e o thrash metal. 

Guardadas as devidas proporções, o Motorhead sempre esteve para o rock inglês como os Ramones estavam para o rock americano. Com a diferença de que os Ramones -- que também começaram por volta de 1975 -- eram bem humorados e saíram de cena em 1996, enquanto o carrancudo e divertido Motorhead só vai acabar mesmo no dia em que Lemmy bater com as quatro -- o que, a julgar por sua saúde extremamente precária e pelos constantes cancelamentos de shows da tournée atual da banda, pode acontecer a qualquer momento.

Da formação original do Motorhead, só Lemmy Kilmister permanece. Todos os integrantes deste power-trio extremamente atípico foram trocados algumas vezes. Mas, de meados dos Anos 90 para cá, o line-up da banda estabilizou: o guitarrista Phil Campbell segue na linha de frente da banda há 30 anos e o batera Mickey Dee cuida da cozinha há já 22 anos. No comando da brincadeira, claro, a voz escalavrada e o baixo pancadão de Lemmy continuam dando o tom e enlouquecendo a legião de fãs da banda, que abriga metaleiros de diversas tribos e classic rockers os mais diversos.



Pois o Motorhead está de volta, e com boas novas. Seu 22° LP acaba de chegar às lojas, se chama "XXXX - Bad Magic" (UDR Records, com lançamento previsto para Setembro no Brasil) e é tudo o que os fãs da banda podiam esperar de um disco comemorativo de 40 anos de carreira. Cameron Webb, produtor da banda, não mediu forças para viabilizar um disco digno da longevidade do Motorhead e da persistência de Lemmy, que, mesmo muito debilitado, mantém a postura do velho soldado que não se rende jamais.

"XXXX - Bad Magic" traz 13 faixas memoráveis. "Victory Or Die" abre o disco chutando a porta em grande estilo, com grito de guerra e tudo o que tem direito. Na sequência, "Thunder & Lightning" reafirma a profissão de fé dos membros da banda, deixando claro que não é da índole deles sossegar com a chegada da idade. E então, lá vem "Fire Storm Hotel", com um riff que lembra "Cat Scratch Fever" de Ted Nugent, e fazendo a apologia do rock and roll way of life.  E por aí a coisa vai, com o Motorhead disparando artilharia pesada para vários lados e, como de hábirto, se negando a fazer prisioneiros.



Em meio a toda essa pancadaria sonora, "XXXX - Bad Magic" traz duas curiosidades muito interessantes. 

A primeira é "Till The End", uma balada (!!!????) onde Lemmy contempla seu próprio fim de forma doída e contundente, num tom que nunca havia usado antes em nenhuma de suas canções -- cláro que não sem, logo a seguir, debochar de si próprio desdenhando tudo o que disse antes num rock avassalador chamado "When The Sky Comes Looking For You" -- que, de certa forma, encerra a sequência de canções autorais do disco. 

E então vem a segunda surpresa: a décima terceira faixa de "XXXX-Bad Magic" é nada menos que um cover bem pedestre para "Sympathy For The Devil", clássico dos Rolling Stones, onde Lemmy deixa claro que, mesmo estando no bico do corvo, não faz a menor questão de receber a extrema unção na hora em que tiver que sair de cena em definitivo. 

Considerando que tanto Lemmy Kilmister e Keith Richards são tidos como "walking dead" há muitos anos, e considerando também que ambos estão com discos novos na praça e em tournée pelo mundo afora, eu não me espantaria se o amigão Lucifer não tiver feito dos dois entidades indestrutíveis na cena do rock inglês.

Acredite: você não vai ouvir um disco de rock pesado tão honesto e tão divertido quanto "XXXX-Bad Magic" neste ano.



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quinta-feira, agosto 20, 2015

RAPIDINHAS: EMMYLOU HARRIS, RODNEY CROWELL, DWIGHT YOAKAM, THE ASTRAL SWANS E DYLAN SNEED

por Chico Marques


De um ano para cá, a Rolling Stone Magazine, que sempre esnobou solenemente a cena musical de Nashville, se rendeu finalmente e abriu seu website e sua revista quinzenal para a country music. 

O motivo principal? 

Tanto lá quanto cá, a cena country sempre atravessa crises sem grandes dificuldades, ao contrário do que acontece com as cenas pop e rock, tradicionalmente mais vulneráveis a tempos difíceis.

Mas não é só isso.

Hoje, em Nashville, as velhas distinções de gênero estão cada vez mais misturadas. Tudo aquilo que nos Anos 1980 ganhou o rótulo genérico Americana, se mesclou de tempos para cá com os conceitos de alt country e alt rock, e agora segue rumo a novas saídas musicais que insistem em desafiar definições.

 Os quatro discos comentados hoje em ALTOeCLARO trazem artistas de gerações e background musicais distintos, cujos trabalhos não só revelam as muitas facetas da country music atual como também  mostram como o gênero ficou vasto e inusitado.

EMMYLOU HARRIS & RODNEY CROWELL
The Traveling Kind
(Nonesuch Records)
Dois anos atrás, quando Emmylou Harris e Rodney Crowell uniram forças novamente em "Old Yellow Moon", um álbum de duetos que retomava a velha parceria entre os dois depois de 35 anos distantes um do outro nos palcos, tudo indicava estarmos diante de um disco de ocasião -- mais ou menos como "All That Roadrunning", que ela gravou com Mark Knopfler em 2006. Mas, na verdade, era bem mais do que isso. E agora. Emmylou e Rodney estão de volta com um segundo disco juntos chamado 'The Traveling Kind". Aqui, ao contrário do disco anterior, 9 das 11 canções do disco são assinadas por Rodney, sendo que 6 delas também levam a assinatura de Emmylou, o que indica um envolvimento bem maior entre os dois do que parecia estar rolando dois anos atrás. Daí, se havia alguma dúvida de que, depois de tantas aventuras musicais ousadas, Emmylou está voltando aos poucos à persona country-rock de seu início de carreira, agora não há mais. As vozes dos dois combinam perfeitamente, o repertório é perfeito, os dois covers escolhidos -- "I Just Wanted to See You So Bad" de Lucinda Williams e "Her Hair Was Red" de Amy Allison -- receberam um tratamento adequadíssimo e o astral da empreitada é ótimo. Ou seja: são dois grandes amigos numa parceria perfeita que tem tudo para perdurar indefinidamente. Isso se Emmylou não chutar o balde lá pelas tantas e reaparecer de repente com uma banda de rock and roll. Todos nós sabemos que ela é quase tão imprevisível quanto Neil Young.

DWIGHT YOAKAM
Second Hand Heart
(Warner Bros Records)
Dwight Yoakam está comemorando 30 anos de carreira com sua musicalidade completamente revitalizada, alternando seus clássicos honky-tonk hillbillies com rocks rasgados e bem melodiosos. Nesse retorno à velha forma, que coincide com seu retorno à Warner Bros Records, onde passou os primeiros 20 anos de sua carreira, Dwight mostra que continua muito influente para toda a nova cena musical de Nashville, que deve muito a ele em termos estilísticos e nem sempre tem consciência disso. Neste "Second Hand Heart" ele dá voz a dez canções -- oito originais de Dwight Yoakam, mais dois covers --  que soam atemporais e ao mesmo tempo urgentes, sempre com um ar levemente nostálgico e empacotadas de forma a agradar a vários públicos. Tudo aqui é tão bom e soa tão bem que dá para imaginar Elvis Presley cantando algumas dessas canções em suas clássicas gravações do finalzinho dos Anos 60 em Memphis. É um disco que já nasce clássico. E que é desde já, sem sombra de dúvida, o grande disco de Americana deste ano.

THE ASTRAL SWANS
All My Favorite Singers Are Willie Nelson
(Madic Records)
Matthew Swan é uma figuraça. Depois de participar de algumas bandas bandas maluquinhas que deram em nada, com nomes bacanas como Extra Happy Ghost e Hot Little Rocket, ele decidiu sair solo, só que escondido por trás do nome de uma banda. Daí nasceu The Astral Swans, que assina esse disco de estréia deliciosamente intitulado "All My Favorite Singers Are Willie Nelson". Tudo é muito simples: basicamente voz e guitarra com bateria eletrônica e efeitos de sintetizador quase risíveis, que parecem saídos daqueles sintetizadores de primeiríssima geração da década de 60. E, claro, sempre com um mínimo de produção. Mas tudo é muito denso também. As canções são ótimas, divertidas, agradáveis, espirituosas, e funcionam como um recital demo cuja sonoridade lembra desde Lou Reed até o Timbuk Three e o White Stripes. Vale a pena conhecer o trabalho de The Astral Swans. Willie Nelson deve ter adorado a homenagem, mesmo sem entender o motivo.

DYLAN SNEED
Texodus
(Dylan Sneed Records)
Gravado num estúdio da Carolina do Sul com sidemen bem integrados e familiarizados com o repertório, "Taxodus" é uma coleção de ótimas canções de estrada, registradas numa única tarde da forma mais descomplicada possível, como nos velhos tempos. Os temas de Dylan Sneed são recorrentes: fugir da vida corporativa, cair fora da cidade grande e descobrir onde fica o coração a América. E se por um lado não há nada de muito original em seu jeito de cantar -- que lembra às vezes um John Prine menos sonhador, às vezes um Townes Van Zandt sóbrio --, não se pode acusá-lo de não desenvolver um trabalho bem estruturado e envolvente. Se você procura por sonoridades modernosas, veio ao lugar errado. O que temos aqui é country e folk urbanos à moda clássica dos anos 70.  Dylan Sneed é do Brooklyn, Nova York. Tem talento. Um crítico amigo o definiu como "Van Morrison montado numa Harley Davidson". Exageros è parte, é por aí. Vale uma boa conferida.





sexta-feira, agosto 14, 2015

ERNESTINE ANDERSON, DEE DEE BRIDGEWATER E MELODY GARDOT: TRÊS GERAÇÕES, TRÊS EXPERIÊNCIAS DISTINTAS E TRÊS BONS DISCOS

por Chico Marques
para Jazz Jive
ilustração de Gil Mayers



Não é fácil ser cantora de jazz de Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan Billie Holiday, Dinah Washington e Carmen McRae para cá. 

É como se elas cinco tivessem explorado todas as possibilidades artísticas que o gênero tinha para oferecer.

Mesmo assim, legiões de novas cantoras surgem desde os anos 1950 brigando por um lugar ao sol em um mercado extremamente exigente, e muitas vezes desnecessariamente esnobe e cruel.

As três cantoras cujos discos comentamos hoje são de 3 gerações diferentes: Ernestine Anderson (86 anos), Dee Dee Bridgewater (65 anos) e Melody Gardot (30 anos).

Mas passaram (ou passam) por provações artísticas semelhantes, e hoje conseguem vislumbrar o que vem pela frente em suas carreiras musicais sem grandes sobressaltos.

MELODY GARDOT
CURRENCY OF MAN
(Verve)
É meio complicado classificar Melody Gardot como uma artista de jazz, até porque ela não é. Surgida no vácuo do sucesso de Norah Jones e Madeleine Peyroux -- duas artistas crossover que deram a sorte de ser abençoadas pela comunidade jazzística --, Melody é uma cantora e compositora que descobriu sua verdadeira vocação depois de sofrer um atropelamento e ficar num leito de hospital em Nova York entre a vida e a morte por várias semanas. Como tinha estudado piano quando mais jovem, Melody começou a compor canções enquanto convalescia, e isso teve um valor terapêutico enorme em sua recuperação. Quando voltou a andar, levou suas canções para um agente e acabou contratada pela Verve Records, que viu potencial em seu trabalho. "Currency Of Man" já é seu quinto LP, e é o mais ambicioso de todos os que lançou até agora. Aqui, ela deixa de lado os ecos de Joni Mitchell e Laura Nyro que prevaleceram em seus primeiros trabalhos e mergulha de cabeça no legado musical de Bill Withers, Donny Hathaway e Tom Waits. Seus fãs podem até estranhar uma mudança tão radical, mas é inegável o salto qualitativo enorme que seu trabalho deu nesse disco. O produtor Larry Klein -- curiosamente, ex-marido de Joni Mitchell -- substituiu as cordas dos discos anteriores por uma musicalidade mais orgânica, mais despojada, e bem modernosa. Nas 15 canções de "Currency of Man", ela passeia por seu lado mais sombrio, e nos revela justamente o seu lado mais interessante. Não é um disco fácil como os anteriores. Mas é extremamente denso e eloquente. Não negue fogo a Melody Gardot. Ela não veio a passeio.

DEE DEE BRIDGEWATER
DEE DEE'S FEATHERS
Okeh
Dee Dee Bridgewater é uma cantora extremamente talentosa que levou muito tempo até achar um rumo para sua carreira. Perdida no início dos Anos 1970 entre seu trabalho com a Mel Lewis-Thad Jones Orchestra e com o Return To Forever, e sua participação na montagem original de "The Wiz" na Broadway, Dee Dee patinou por muitos anos até ser finalmente contratada pela Verve em 1989 depois de uma longa temporada vivendo em Paris. De lá par cá, seus discos passaram a ter foco e seu estranho blend de hard-bop e jazz tradicional ganhou um público expressivo pelo mundo afora. Nesse novo LP, "Dee Dee's Feathers", ela toma rumo sul de volta para casa e, a pretexto do décimo aniversário da passagem do Furacão Katrina pela cidade de New Orleans, mergulha na alma musical da cidade em companhia de Irvin Mayfield e da New Orleans Jazz Orchestra. Dee Dee contrapõe sonoridades do passado com a música atual da lá de forma muito original. Ela foi criada em Memphis, Tennessee, não muito distante de New Orleans, e consegue trafegar por esse universo musical com propriedade e muito conhecimento de causa. Fãs de Dee Dee Bridgewater e apaixonados pela música de New Orleans não podem deixar de conhecer esse belo disco.

ERNESTINE ANDERSON 
SWINGS THE PENTHOUSE
(HighNote)
Ernestine Anderson está na cena musical americana desde os Anos 40. Apesar de ser uma cantora reconhecidamente brilhante -- talvez a única desde Billie Holiday capaz de fazer a ponte entre o blues de Bessie Smith e o jazz sofisticado de Ella Fitzgerald -- nunca conseguiu o respeito artístico merecido na cena jazzística por ter sido crooner de Orquestras de R&B, como as de Johnny Otis e Illinois Jacket, consideradas "menores" pelos jazzistas mais esnobes. Ernestine gravou discos solo sensacionais ao lado de Quincy Jones e Rolf Erickson entre 1958 e 1964, saudados pela crítica, mas que venderam pouco. Então, depois de vários giros pela Europa no início dos Anos 1960, cansou dos Estados Unidos e mudou para a Inglaterra, fixando residência em Londres. E sossegou por lá. Só em meados dos Anos 70 foi "redescoberta" pelos americanos. Contratada pela Concord Jazz, ela gravou uma sequência impecável de discos de jazz tradicional que, lamentavelmente, estavam muito distantes do vigor e das ousadias do início de carreira solo. Daí a importância do resgate dessa performance sensacional gravada em Fevereiro de 1962  no Penthouse Club de Seattle -- que permanecia inédita e que, se tivesse sido lançada na época, talvez tivesse mudado o rumo de sua carreira. "Swings the Penthouse" é uma explosão de vitalidade, e traz essa grande cantora acompanhada pelo pianista Dick Palombi, mais o baixista Chuck Metcalf e o baterista Bill Richardson em uma série de números conhecidos que ganham releituras insusitadas e envolventes, onde ela corre riscos e esbanja originalidade. Hoje, aos 86 anos de idade, semi-aposentada, Ernestine Anderson se dedica a resgatar pérolas de seu passado como essa. Revelando, sem rancor de espécie alguma, a cantora fantástica que a comunidade jazzística esnobou estupidamente 50 anos atrás. Nada como o passar do tempo para colocar tudo em perspectiva e dar o valor devido a quem merece.




quarta-feira, agosto 12, 2015

BUDDY GUY, ROBBEN FORD E SONNY LANDRETH ESTÃO DE VOLTA COM NOVAS ABORDAGENS AO BOM E VELHO BLUES ELÉTRICO

por Chico Marques para BLUESTIME

Nos início dos Anos 60, quando Otis Rush, Magic Sam, Buddy Guy e Albert King reinventaram o blues, abrindo novas fronteiras musicais para o gênero, que dava sinais claros de esgotamento, todos os artistas que tinham carreiras estabelecidas perceberam que tinham apenas duas saídas pela frente: dançar conforme a música para sobreviver no mercado, ou então migrar para a cena do folk-blues acústico.

Então, em meados dos anos 60, quando os brancos descobriram o blues e o incorporaram a novos formatos musicais bem sucedidos comercialmente, muitos artistas negros entraram mais uma vez em xeque, e desistiram de tentar se adequar aos novos tempos, preferindo deixar de gravar discos e concentrando suas atividades na Europa, onde havia um interesse grande pelos formatos mais clássicos do blues. E assim, entre revoluções e contra-revoluções musicais, o blues foi sobrevivendo, sempre aos trancos e barrancos.

Os três discos que vamos comentar hoje são de três grandes guitarristas de linhagens bem distintas, mas com uma atitude em comum: a fidelidade pela alma do blues, e não necessariamente pelos formatos tradicionais do blues. 

O que prova que se o blues permanece vivo até hoje é graças à atitude pouco ortodoxa, mas sempre fiel, de artistas como esses.


BUDDY GUY
BORN TO PLAY GUITAR
Silvertone RCA
A apenas um ano de virar octagenário, o endiabrado cantor e guitarrista Buddy Guy não sossega o rabo e volta com a corda toda em "Born To Play Guitar", onde -- a exemplo de seu trabalho anterior, o álbum duplo "Rhythm & Blues" (2013) -- ele alterna blues com uma levada mais clássica com números de rhythm & blues mais acelerados e bem eletrificados, num flerte aberto com o rock and roll e com a soul music. Mas cuidado com as expectativas: "Born To Play Guitar" não é um grande disco, e também não traz novidades substanciais em relação à sua produção nos últimos 25 anos. Confesso que achei meio pegajosos os tributos a Muddy Waters e a B B King inseridos no disco, e prefiri mil vezes as dobradinhas dele com o fantástico gaitista Kim Wilson, que remetem diretamente ao trabalho que Buddy desenvolveu ao lado de seu velho e saudoso parceiro Junior Wells por mais de 3 décadas. Mas, por outro lado, também não faz sentido ser rigoroso demais com "Born To Play Guitar", pois o simples fato de Buddy Guy permanecer na ativa a essa altura da vida já é motivo de muita admiração e muito respeito. E pela vitalidade que ele esbanja nas faixas desse disco, não há a menor indicação de que pretenda se aposentar tão cedo.


ROBBEN FORD
INTO THE SUN
(Provogue)
Robben Ford é um músico tão gabaritado e múltiplo que classificá-lo como um artista de blues chega a ser uma heresia. Tudo bem que seu background musical principal origine do blues -- de sua longa associação com a Ford Blues Band, de seus irmãos, e do cantor Jimmy Witherspoon, para quem foi band-leader por muitos anos, antes de sair em carreira solo nos anos 1970. "Into The Sun" dá sequência ao trabalho desencanado e inclassificável que Robben Ford vem desenvolvendo nos últimos anos. Há espaço para tudo aqui, desde rock sulista a jazz funkeado, passando por blues e soul music em doses sempre bem equilibradas. E as participações especiais são realmente especiais, e nada burocráticas: tem desde Warren Haynes e Sonny Landreth até Robert Randolph e Keb Mo, todos quebrando tudo e se divertindo um bocado. Se você não tem uma atitude ortodoxa em relação ao blues, esse disco é para você.


SONNY LANDRETH
BOUND BY THE BLUES
(Provogue)

Desde que o Furacão Katrina assolou o Deep South americano, Sonny Landreth tem trafegado pelos diversos gêneros musicais que compoem a música da região e negligenciado um pouco o blues. Mas agora isso acabou. "Bound By The Blues", seu novo trabalho, traz canções de vários bluesmen que foram importantíssimos em sua formação musical -- como Robert Johnson, Elmore James, Big Bill Broonzy e Skip James -- em releituras modernosas e não muito ortodoxas, o que pode irritar alguns puristas do gênero. Landreth mescla esses números clássicos com composições instrumentais onde se revela masi uma vez um guitarrista absolutamente original, como "Simcoe Blues" e "Firebird" -- esta última dedicada a seu amigo e herói musical Johnny Winter, falecido ano passado. "Bound By The Blues" é uma viagem musical pelo universo do blues sem fronteiras e sem preconceitos musicais. É graças a artistas criativos e corajosos como Sonny Landreth que o blues permanece vivo e testando novas possibilidades. Na minha opinião, o melhor disco de blues deste ano até agora.




segunda-feira, agosto 03, 2015

RICHARD THOMPSON MERGULHA FUNDO NO LADO ESCURO DA ALMA, E CONTA O QUE VIU

por Chico Marques


Richard Thompson é um artista que dispensa apresentações em qualquer canto do mundo -- menos aqui no Brasil, onde nunca teve um disco sequer lançado. 

Membro fundador do seminal grupo de folk-rock britânico Fairport Convention, Mr. Thompson desenvolve há 46 anos um trabalho que desafia convenções e rótulos, mesclando em sua guitarra toques de jazz e de música erudita com influências de rock, blues, folk e música oriental.

Nunca deixou de ser um “cult artist”, até porque nunca aceitou se "adequar" aos requisitos do mercado. Bem que tentaram promovê-lo perante um público mais amplo no final dos Anos 80, mas não funcionou direito. O caso é que Mr. Thompson já tinha um público cativo extenso a essa altura do campeonato. Sua integridade artística e sua liberdade criativa sempre foram fatores inegociáveis. Estava satisfeito com o que havia conquistado, e não fazia sentido o menor abrir mão disso.   

Graças a essa teimosia, Mr. Thompson produziu alguns dos discos mais festejados pela crítica nos últimos 46 anos, como “I Want To See The Bright Lights Tonight” (1974) e “Shoot Out The Lights” (1982), ambos com sua ex-mulher Linda Thompson –, ou os trabalhos solo "Hand Of Kindness" (1983), "Across A Crowded Room" (1985) e "Daring Adventures" (1986), todos dignos de figurar em qualquer antologia de melhores LPs desse período.

Aos 66 anos de idade -- época da vida em que a maioria dos artistas prefere trabalhar tranquilamente dentro de Zonas de Conforto artísticas, dispensado desafios -- Richard Thompson mergulha em mais uma "daring adventure", gravando seu novo disco em Chicago, no The Loft Studio do grupo Wilco -- com Jeff Tweedy, guitarrista do Wilco, como produtor e parceiro musical.


Para surpresa geral, "Still", seu novo disco (um lançamento Fantasy), não é um trabalho alegre e festivo. O encontro entre ele e Jeff Tweedy acabou resultando num disco reflexivo, onde temas como repressão, emoções contidas e vidas sem rumo dão o tom. Não são temas novos no universo thompsoniano -- muito pelo contrário, são temas recorrentes até demais. Mas, cá entre nós, algumas das histórias que ele conta nessas novas canções são de arrepiar.

O disco abre com “She Never Could Resist A Winding Road”, que tenta vender a idéia de que chegou a hora de se aventurar menos na vida e buscar um pouco de paz e tranquilidade. Logo a seguir, "Beatnick Walking" relata uma aventura nada moderada pela Holanda no início dos Anos 70. Dá a entender que de lá para cá ele sossegou. e que finalmente deixou de lado o "look back in anger" dos tempos de juventude. Mas é ilusório. O que vem a seguir segue justamente na contramão disso tudo, com medos e desejos se contrapondo de forma incessante, e razão e instinto dando as cartas ao mesmo tempo.

É um disco surpreendente em termos musicais. A guitarra de Mr. Thompson sempre foi pródiga em pontuar com intervenções dramáticas algumas de suas canções mais assustadoras, e sua banda composta basicamente pelo baixista Taras Prodaniuk e pelo baterista Micheal Jerome é precisa e inusitada. O que esse time conseguiu realizar em "Still" com certeza deve ter deixado o produtor Jeff Tweedy arrepiado. No bom sentido, é claro.

Os personagens das canções de Richard Thompson sempre podem ser anjos ou monstros, dependendo do momento. Um exemplo perfeito disso é a assustadora “Dungeons For Eyes“, que mostra um assassino que vira um político, e que banaliza o mal em seu dia a dia. Não é a única canção contundente do disco. Existem outras. Todas implacáveis.  

"Still" encerra com um número chamado “Guitar Heroes”, onde Richard Thompson viaja ao passado e reencontra a si próprio menino, apaixonado por sua guitarra e encantado ao descobrir os guitarristas que seriam vitais em sua formação musical: Django Reinhardt, Les Paul, Chuck Berry, James Burton, Scotty Moore e The Shadows. Seu perfeccionismo obsessivo está claro nos versos: 

“Well I played and played until my fingers bled,
 I shut out all the voices but the voice in my head, now I stand on the stage and I do my stuff,
 and maybe it’s good but it’s never good enough.”


Richard Thompson nunca teve medo de puxar os temas de suas canções para o lado confessional. 

E nunca se importou em incluir canções doloridas de seu repertório de anos passados nos set-lists de seus shows atuais. 

Sempre mergulhou de cabeça tanto no lado brilhanteo quanto no lado escuro de sua mente. Poeta de mão cheia, nunca hesita em deixar seus ouvintes constrangidos com toda a sua franqueza existencial. 

E continua fazendo tudo isso com uma maestria artística única neste belo e estranho "Still".



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