sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Muito Cuidado Ao Falar Mal De Bono Vox (por Chico Marques para o Trupe Da Terra)


O caso a seguir aconteceu numa dessas noites quentes de fevereiro, numa mesa de bar. Estava eu com alguns amigos jornalistas bebendo e conversando sobre vários assuntos. Não havia nenhuma mulher na mesa. De repente um deles mencionou que havia comprado de presente para a namorada o último DVD do U2, “Vertigo Live In Chicago”. Perguntou o que achávamos da banda.

Pronto: a saia justa foi imediata.

Quem é casado, ou tem namorada, ou simplesmente convive com mulheres, sabe há muito tempo que fazer qualquer comentário jocoso ou maldoso sobre Bono Vox e o U2 equivale a correr o risco de virar alvo de represálias terríveis, como greve de sexo, envenenamento alimentar, espancamento no meio da madrugada e outras perversidades tipicamente femininas.

Mas então, de repente, veio o alívio. Estávamos apenas entre homens naquela mesa. Podíamos dizer o que quiséssemos sem sermos alvo de qualquer represália. Qualquer discussão decorrente do tema seguiria dentro das normas democráticas vigentes na mesa, e a conversa jamais seria encerrada abruptamente com uma expressão de mágoa de uma das partes.

Então, cada um deu a sua opinião. Um disse que odiava o U2, por vários motivos. Outro adorava, por outros vários motivos. Eu fiquei entre um e outro, mas sem ser vaselina. Tinha argumentos bem mais consistentes que eles.

Eu gosto do U2. Comprei o primeiro disco da banda, “Boy”, quando saiu, em 1980. Lembro de ter ficado muito impressionado com a massa sonora que a banda conseguia produzir com apenas 3 instrumentistas. O cantor, Bono, parecia uma espécie de versão irlandesa do Joe Strummer. O baixista e o baterista eram muito bons. Mas o grande destaque era para a guitarra de The Edge, um músico absolutamente original, uma espécie de Jimmy Page minimalista.

O disco veio a reboque de uma campanha publicitária genial que Chris Blackwell, da Island Records, publicou no Melody Maker e no New Musical Express para promover o lançamento. Apresentava o U2 como “a melhor coisa vinda da Irlanda desde W.B.Yeats, James Joyce e a Cerveja Guiness”.

Os ingleses, claro, esnobaram a banda, o que não foi nenhuma surpresa, já que raramente artistas irlandeses são aceitos logo de cara na boa e velha Inglaterra. Os americanos, no entanto, ficaram encantados e adotaram o U2 de imediato, depois de uma rápida tournée americana com os Pretenders. Com isso eles acabaram repetindo a proeza clássica do Led Zeppelin no início dos anos 70, que explodiu na América antes de ganhar o público britânico.

Por conta dessa aceitação americana, o U2 seguiu a fórmula vitoriosa de “Boy” nos discos seguintes, carregando na politização e nas mensagens libertárias das letras. Tem gente que gosta desses dois discos, “October” e “War”, ambos produzidos por Steve Lillywhite. Eu confesso que não senti a menor empatia por eles na época, e continuo não sentindo até hoje. É um sub-Clash, sem humor e sem anarquia. Tudo muito pesado, monocórdico e chato.

Até por isso, não pude deixar de ficar impressionado com o que veio a seguir. Em “The Unforgettable Fire”, o U2 se deixa levar pela orientação da dupla de produtores Brian Eno e Daniel Lanois, e todo aquele som e toda aquela fúria deixam de ser simplesmente uma parede sonora para virar algo orgânico e muito intenso em termos musicais. Veio seguido de “The Joshua Tree”, dando seqüência ao mesmo conceito musical. Depois disso, “Rattle & Hum”, um disco bastante duvidoso, que mostrava a banda numa encruzilhada.

E enfim chegamos ao primeiro momento de maturidade da banda, “Actung Baby”, o disco definitivo do U2. O primeiro em que eles se assumem como uma banda européia composta por cidadãos do mundo. O primeiro em que eles não embarcam nas lamúrias da Irlanda e olham para o mundo com olhos cosmopolitas. A partir de ”Actung Baby”, David Bowie e Wim Wenders passam a ser modelos a ser seguidos, e a banda dá um grande salto qualitativo.

Felizmente, esse disco não foi um fenômeno isolado na carreira do U2. Veio seguido de mais dois trabalhos intensos, climáticos e ousados: “Zooropa” e “Pop”. Que não foram exatamente bem compreendidos, tanto pela crítica quanto pelos fãs mais tradicionais da banda.

Depois deles, o U2 entrou em um período de baixa criativa. Confesso que não vi nada tão marcante e tão intenso nos dois últimos discos da banda, “All That You Can´t Leave Behind” e “ How To Dismantle An Atomic Bomb”. No entanto, não consegui desgostar de nenhum dos dois. São discos honestos, maduros e muito dignos. Só não são superlativos.
Mas, isso é o U2 em estúdio. A pergunta é: o que dizer do U2 ao vivo?

Bom, eu sempre achei o U2 ao vivo muito chato, o oposto do que costuma ser nos discos. O cantor Bono Vox parece ter prazer em cometer todos os excessos possíveis e imagináveis nos shows da banda. Até a tournée ‘Rattle & Hum”, ele tinha o hábito de brindar o público com discursos libertários intermináveis entre uma musica e outra – alguns deles constrangedores.

Imagino que alguém próximo à banda tenha tomado coragem e dito que aquilo era irritante, e daí eles trocaram aquele messianismo verbal por esse messianismo audiovisual que vigora até hoje, sempre em prol de alguma(s) causa(s) humanitária(s).

Eu assisti ao show de São Paulo no telão de TV do Bar Heinz, aqui em Santos. Devidamente acompanhado por chopp gelado e canapés de roastbeef, eu confesso que até deu para encarar. Mas eu tenho certeza que, se eu estivesse lá no Morumbi, no meio da multidão, sendo compelido a gastar a bateria do meu celular bestamente, iria ficar bastante incomodado, tanto com a tentativa de me manipular quanto com o uso que eles fazem daquela parafernália audiovisual politicamente correta deles.

Eu odeio ser orientado por mensagens audiovisuais. Acho um insulto à minha inteligência. Imagino que boa parte do público que estava lá no Morumbi também se irrite com isso, caso contrário não teriam vaiado a imagem do Presidente Lula utilizada pela banda em uma de suas pregações humanitárias.

Será possível que os rapazes do U2 não tem mais nenhum amigo que chegue para eles e diga: “Gente, isso aqui está um pouco demais, vocês não acham?”

Está certo o Ivan Lessa quando diz que Bono Vox parece ter saído da prancheta do Stan Lee, da Marvel Comics. Segundo Ivan, ele seria uma espécie de X-Man humanitário, que usa um par de óculos ridículo para proteger as pessoas das emissões mortais que brotam de seus olhos. Seu ímpeto humanitário seria decorrente da culpa que sente por matar sem querer tudo o que está à sua volta sempre que está sem os óculos protetores. Ivan Lessa odeia Bono Vox.

Eu não. Mas torço sinceramente que, ao final de “Vertigo”, o U2 deixe de lado essas bobagens cênicas e faça de suas próximas tournées recitais vigorosos, sem essa tranqueira audiovisual, só com o excelente repertório que a banda tem.

O U2 está comemorando 30 anos de carreira este ano. Já tem duas gerações de fãs. Não precisa ficar prisioneiro desses expedientes pegajosos e duvidosos. A receita da longevidade do sucesso da banda é bem mais simples. Basta achar um jeito de manter o sex-appeal ativo e continuar compondo belas canções de amor para que o público feminino nunca os abandone.

E quanto ao público masculino? Bem, o público masculino vai continuar como sempre na maior saia justa antes de começar a falar mal do U2 perto das mulheres. Para não ser penalizado com greves de sexo, envenenamentos alimentares e espancamentos noturnos. É simples assim.

A Resistência do Samba (por Arthur Dapieve para NoMinimo.com)


Não é de hoje que o samba vem discutindo sua relação com o carnaval. A reportagem de Cesar Tartaglia e Marcia Cezimbra publicada na última revista do GLOBO expõe a mais recente rusga: a puxada de tapete que a Unidos de Vila Isabel aplicou logo em Martinho da Vila e Luiz Carlos da Vila. Convidada pela diretoria a concorrer ao samba-enredo da escola, a dupla de bambas serviu apenas para valorizar a vitória de outrem.

Talvez seja oportuno, também, discutir algo que, a meu ver, tem feito tanto mal ao gênero musical quanto a clonagem anual de sambas-enredos indigentes, o pagode-mauricinho ou o aluguel das escolas a políticos, celebridades e turistas: o clichê “a resistência do samba”. Fora do carnaval, época em que bem ou mal os tamborins soam ainda mais alto, a expressão surge quase sempre que se fala ou escreve sobre o assunto.

No entanto, é bem difícil entender contra quem o samba resiste. Parece o discurso paranóico do Lula. O sambista Zeca Pagodinho talvez seja, hoje, o cantor mais popular do Brasil. A dúvida fica por conta, claro, do longevo reinado de Roberto Carlos. Pagodinho talvez seja, também, o maior cantor de samba vivo. Aqui, a minha dúvida fica por conta de outro grande Roberto, o Silva, de 85 anos, intérprete, entre outros, dos quatro formidáveis álbuns intitulados “Descendo o morro”, do fim da década de 50 e do começo da de 60.

A popularidade e a excelência de Pagodinho fazem com que ele receba, o ano inteiro, o tipo de cobertura jornalística dedicada apenas eventualmente a um Mick Jagger: o que disse, onde esteve, o que fez, o que comeu (ou bebeu). O canal por assinatura Sportv, por exemplo, estava na casa do alvinegro Pagodinho quando ele recebeu os amigos americanos Monarco e Mauro Diniz para assistirem à decisão da Taça Guanabara. E o anfitrião — a quem assisti pela primeira vez em 1986, no velho campo do América, num showmício do PDT com a falecida Jovelina Pérola Negra e Almir Guineto — já foi até garoto-propaganda disputado por duas das principais marcas de cervejas do país.

Cabe, então, perguntar: a que resiste o samba, se a sua face mais visível goza deste merecido prestígio na grande mídia? A que resiste o samba, se ele é, há décadas, o ramo mais robusto da nossa música, transmutando-se na bossa nova, influenciando o pessoal dos festivais e da Tropicália, fundindo-se ao pop-rock nativo? (Isso num dos três países do mundo que mais escutam a própria música; os outros, a propósito, são EUA e Japão.) A que resiste o samba, se o culto a ele movimenta as casas noturnas da Lapa?

E, no entanto, ouvimos e lemos que o bairro sedia “a resistência do samba”...

Todo clichê, ao imobilizar a fala, imobiliza também o pensamento. O que se quer dizer quando se diz que uma coisa resiste a outra? Que ela está na defensiva, sob ataque, está em posição inferior, de vítima. A intenção dos retransmissores de clichê pode até ser boa, calcada na lembrança da antiga perseguição referida em “Agoniza mas não morre”, de Nelson Sargento. Contudo, na prática, eles diminuem o gênero que pretendem engrandecer.

O samba não é escravo, o samba é senhor. Dizer menos que isso de um gênero musical que vive em, além dos já mencionados, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nei Lopes, Jamelão, D. Ivone Lara, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Beth Carvalho, Walter Alfaiate, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, soa-me até ofensivo. Invocados pela “resistência do samba”, estes nomes acabam é servindo de álibi para a abolição de todo espírito crítico.

Como tal retórica tem caráter patriótico, um mero senão equivale a alta traição. Os bambas são usados, dentro desta lógica, exatamente como Martinho e Luiz Carlos foram usados no concurso da Vila: para referendar gente sem o seu talento. Porque é uma impossibilidade estatística-estética que não haja disco ruim de samba, que toda jovem cantora seja maravilhosa ou que todo velho sambista obscuro seja uma preciosidade.

Admitir isso, todavia, seria crime de lesa-pátria. Então, tome elogio à “resistência do samba”. Este discurso paternalista e mediocrizante já teve conseqüências nefastas na cultura brasileira. Enquanto considerou-se (e foi) merecedor de “uma força” do Estado e da crítica, por exemplo, o nosso cinema patinou. Hoje, mesmo ao largo da retórica nacionalista, a falta de senso crítico alimenta a nostalgia esterilizante do rock dos anos 80.

O conservadorismo é, por sinal, outra faceta da “resistência do samba”. Dois anos atrás, no site “NoMínimo”, o jornalista Paulo Roberto Pires, ao defender Marcelo D2 numa discussão com os xiitas do gênero, criou um termo feliz: talibambas . Foram eles que pediram para Mart’nália tocar mais baixo seu pandeiro numa roda de samba na Lapa, como ela se queixou aqui no Segundo Caderno, também há dois anos, ao repórter João Pimentel.
Recentemente, outro renovador do samba, Leandro Sapucahy, teve até dificuldades de se apresentar no bairro. Só conseguiu graças ao aval de Zeca Pagodinho, que participa de seu ainda inédito CD, bem como Marcelo D2. Aos ouvidos do pessoal entrincheirado no passado, Sapucahy comete a heresia de lançar uma ponte do samba ao rap, falando de tráfico, mineira, bala perdida, Nextel. De tanto proteger o gênero, os talibambas perigam sufocá-lo. Afinal, como diz o samba de Aluizio Machado, “água demais mata a planta”.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Os Rolling Stones vão existir para sempre (por Arnaldo Jabor para O GLOBO)


Não sou do rock, embora tenha dançado em cima das cadeiras do cinema, quando o Bill Halley e “seus cometas” tocaram “Rock around the clock”, no filme “Blackboard Jungle”, no saudoso cine São Luiz, de cujo balcão se jogavam até galinhas vivas, nas “segundas-feiras sem lei”. Meu rock foi apenas uma experiência de comportamento, uma espécie de revolução corporal e sexual que atacou os jovens naquela época, desde que Elvis começou a rebolar. Depois, vivi a famosa divisão entre Beatles e Rolling Stones, amei e amo Bob Dylan, conheci pessoalmente a Janis Joplin, com quem fui a um prostíbulo em Salvador, pouco antes de sua morte, onde ela cantou com as putinhas (verdade...) e achava o Jimi Hendrix “gênio” mas meio chato, acima de meu simplismo harmônico. Nunca fui do rock mas nesses nomes acima havia algo além: uma grande arte infiltrada entre os acordes, havia o aprofundamento do produto massificado, havia algo maior que, depois, se esvaiu até os megashows babacas de hoje, feitos para esvaziar o espírito das massas. Hoje, os megashows são ferventes mas gelados, as grande estrelas são clones de si mesmos, clones do que seria um grande ídolo, pois não há mais espaço para as sinceras aparições dos utópicos malucos dos anos 60.

Eis que então, sábado, vi os Rolling Stones em Copacabana, num ritual entre águas, fogo, dois milhões de pessoas, símbolos projetados em telões e um show poderoso, um bombardeio de maravilhas de som e luz. Quem produz hoje música com essa beleza convulsiva? Quem? E tive a sensação inapelável e brutal: hoje estamos no passado daquele futuro. Explico: sábado, Copacabana parecia mergulhada magicamente nos anos 60/70, com um vento de esperança e militância artística de 30 anos atrás.

Antes, eles eram um “futuro” — que não chegou... Eles, Dylan, Beatles, tantos, previam uma felicidade e uma liberdade que nunca se configuraram. E não se trata de saudosismo: o ápice foi antes, até cairmos no vazio simulado dos anos 80 em diante.

O Ocidente tinha atingido um vértice (ilusório ou não) de projeto, de fé artística, de transcendência sobre o conformismo que foi desconstruído aos poucos. E sábado, de repente, os Stones estavam ali de novo, salvando Copacabana, inoculando dois milhões de jovens e coroas com o santo veneno de sua criação musical, comportamental, física, luminosa. Muitos ali talvez tenham entendido que são netos daqueles quatro doidões pulando no palco.

Vejo ainda nos Stones uma fome além da grana e do sucesso. Eles não querem morrer, claro, parecem pais deles mesmos no passado, mas nos exibem até hoje uma conquista única: conseguiram, como poucos, formar um evento de massas, um feito raro num mercadão de bilhões. E, no ventre desta fera, dentro da baleia econômica do lucro, produziram a melhor arte, das melhores reflexões estéticas (até filosóficas) do século XX, assim como Bob Dylan. São um fenômeno do mercadão capitalista, mas nascem como um Bem que o Mal segrega, um subproduto bom da insânia do mundo.

Eles resistem à morte que já levou Janis, Hendrix, Lennon. Eles querem deixar cravada em nossas mentes anestesiadas, neste tempo de Bush/Osama, uma conquista real que fizeram para a civilização. E não é que eles “denunciem” ou “subvertam” o capitalismo ou algo assim. Não. Eles não lidam com conceitos; eles são matéria concreta, realizada, ali, obra acabada, que vai soar para sempre no futuro careta que se desenha.

Os Stones não vêem as massas de fora, como se estivessem num aquário, usando-as. Eles fazem parte da platéia quase; celebram-na, não a manipulam.

Os Stones parecem mesmo vir de um “terceiro mundo”, como dizíamos. São filhos de múltiplas exclusões: a música de origem negra, a batida do blues, as marcas sofridas da classe pobre de onde vieram, os diabos do bem contra o deus do mal.

Os próprios Stones no palco parecem contar a história de si mesmos. Os três do fundo, Charlie Watts, Ron Wood e Keith Richards, estão mais desbundados, danificados pelos 40 anos de estrada e loucuras, enquanto na frente, nos lados, nas passarelas vibra o Mick Jagger, como um sobrevivente, correndo como um anunciador de boas novas, ligeiro, como pedindo uma providência urgente, conclamando o público para alguma coisa maior. Mas... para o que nos convoca o Mick? Ele está pedindo revolução, guerra? Está querendo dominar as cabeças como um demagogo qualquer, quer palmas, o quê? Nada disso. Mick corre como um Mercúrio, um duende, para estimular as pessoas: “Façam como eu, acreditem na vida, na alegria, na força da beleza, da música, ajam, sejam livres, não se deixem levar por esses FDPs que regem a vida atual!”

Os Rolling Stones me dão uma sensação de importância, não “cultural”, nem museológica, nem saudosista, pois eles representam alguma coisa essencial que não pode se extraviar, se perder nos anos negros que vêm por aí. Os Stones são importantes para a vida mesma e não para a “História”; eles são uma conquista do Ocidente, são a celebração concreta da liberdade individual, da democracia. Eles parecem defender nossa animalidade pulsante, profunda, para que os instintos básicos não se percam, como desejam os terríveis fanáticos do Oriente e Ocidente. Os Stones são parte das grande invenções do século XX. Ainda bem que existiram e existirão sempre.

domingo, fevereiro 19, 2006

Loss, Grief Drive Rosanne Cash´s Black Cadillac (by Mary Houlihan for The Chicago Sun-Times)


Rosanne Cash is tired of talking about "the movie." Of course, that would be "Walk the Line," the film about her parents and stepmother that sometimes threatens to overshadow the release of "Black Cadillac," an album containing some of the best work of her distinguished songbook.

Cash is a member of a special club. She's one of the rare few, sons and daughters of iconic performers who have managed to create singular careers that exist apart from the ties that could suffocate someone less determined and, at times, rebellious. For three decades, she has worked to write her own distinctive chapter in the Cash legacy.

"I was so determined to do this on my own and to be independent that I developed a kind of knee-jerk reaction to associating or exploiting my dad in any way," Cash said. "I was ambitious to become a better songwriter and musician. You make your own choices and see where it carries you."

But Cash, the eldest daughter of Johnny Cash and Vivian Liberto, couldn't sidestep the sad but rejuvenating inspiration that carried her through the two-year creative cycle resulting in "Black Cadillac." The album is dedicated to those three people: her father, her mother and her stepmother, June Carter Cash. All three died during the time in which the singer-songwriter was thinking about, writing and recording this emotionally charged set of new songs.

In her 30-year songwriting career, this is the closest Cash has come to a concept album. The 12-song musical memoir is not a tribute to the iconic figures in her life but rather a songwriter's way of working through death, grief and mourning. It is a revealing assessment of love and loss from a songwriter known for her "smart" songs.

"Rosanne was fearless," producer Bill Bottrell says. "She was able to take very personal content and make it sound profound."
According to Cash, the songwriting process was different this time around -- but in only one way.

"This was only different in that the source material was more compelling and unavoidable," Cash said, in an interview from her New York home. "I didn't feel I had as much choice with these songs about whether or not to write them. There just wasn't any other subject matter for me at the time. It was very compelling material."

The 50-year-old Grammy-winner mined past memories and personal moments in an attempt to make sense of a world without these people who were so close to her through her entire life. She does this without sinking into self-pity.

Inspiration for the title song came from an iconic image from Cash's childhood. Her parents always drove Cadillacs; they were always black. "It was a theme running through my life, and it just seemed obvious to me that it would work as a metaphor for that song," she said. "Obviously, it's a stand-in for the last car that drives you away."

The touching "I Was Watching You" looks at the layers in her life, imagining her parents as a young married couple, her own childhood and, finally, the place where her parents are now watching over her. "House on the Lake" revisits the Cash family home that was recently sold.

Cash admits the emotional part of the process was difficult but the songwriting came easy.

"Bringing a sense of poetry and discipline and structure to these very enormous feelings was incredibly useful," Cash said. "I felt very fortunate that I was a songwriter during all of this. I was getting a lot of solace out of these songs."

Cash laughs when asked about her penchant for working in the studio with her current husband John Leventhal, and earlier in her career, her former husband Nashville singer-songwriter Rodney Crowell.

"That's how I get them to marry me," she said, with a mischievous laugh.

Both men have written songs with Cash and produced her studio work. Crowell, who married Cash in 1979, is responsible for steering her to 11 No. 1 hits on the Billboard country charts in the '80s. The couple had three children together and became the reigning couple of Nashville's singer-songwriter community.

Leventhal and Cash live on New York's Lower West Side with their 7-year-old son Jake and several of her daughters. He produced 2004's "Rules of Travel," Cash's first album in seven years after recovering from a large polyp on a vocal cord, the result of a rare hormone-related condition.

On "Black Cadillac," Leventhal helmed six songs.

"Both John and Rodney are much more disciplined in the studio than I am," Cash said. "John's strength is that he is a multi-instrumentalist. He has access to arrangements and voicings that are very subtle and complex. And he can go as deep into that territory as you want."

But on "Black Cadillac," another man entered Cash's professional realm. Well-known producer Bottrell (Shelby Lynne, Sheryl Crow) was brought in to produce half of the album, including the title song.

Bottrell had no preconceptions about Cash and her musical leanings. For her part, Cash kept an open mind and was ready for what "a stranger" could bring to her music.

"Rosanne was in a very raw emotional time in her life," Bottrrell said. "And she brought that energy into the studio."
In the end, Cash hopes fans don't see "Black Cadillac" as a mere tribute to the Man in Black. She talks openly about her family, but she emphasizes that her job is not to make her father more famous. He is many things to many people; to her, he was simply her dad. Instead, she's much more interested in preserving her memories and making her own distinct contribution to the family songbook.

"It's not a diary. It's not a tribute record," she said. "It's not about these people who died. It's about my experience of exploring the terrain of loss and grief. Obviously, I'm not the first person to lose someone so close. So I think the beauty of the record is that it's universal. And my hope is that people really do bring their own lives to it."

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THE ESSENTIAL COLLECTION
Rosanne Cash's contributions to the music world have been legion. Here are four must-have albums. --Mary Houlihan
'SEVEN YEAR ACHE' (1981)
Her breakthrough album still stands the test of time. Produced by former husband Rodney Crowell, it redefined "the Nashville sound" and ignited the crossover between folk, rock and country. Among the must-hear tracks: "Seven Year Ache" and "Blue Moon with a Heartache."
'KING'S RECORD SHOP' (1988)
Cash and Crowell continue their pioneering ways with this compelling mix of original songs and covers. But this disc finds Cash fearlessly mining more complex topics that defined her life and influenced her as an artist. Essential tracks: "Rosie Strikes Back," "Runaway Train" and "Tennessee Flat Top Box."
'INTERIORS' (1990)
Another breakthrough in that she wrote all the songs for this disc, her final effort for Columbia Nashville. On a gut-wrenching series of songs, she pulls no punches as she sadly chronicles the phases of her disintegrating marriage to Crowell. Must- hear cuts: "Dance With the Tiger," "Real Woman" and "I Want a Cure."
'RULES OF TRAVEL' (2003)
After a seven-year absence from the studio, she returned with this thoughtful album of songs bursting with nuances of heartache, hope and happiness. In fine voice, she moves into the next phase of her career. A must-hear track: "September When It Comes," her only recorded duet with her father.

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ROSANNE CASH HAS A FEW THINGS TO SAY
She's the sibling who's out there, in the occasional limelight, writing songs like her dad did. So when he died, everyone turned to Rosanne to see what she had to say (or sing). Same thing with the movie "Walk the Line" -- what does Rosanne think? Here are some of her summations on these topics and more:

ON 'WALK THE LINE'
"It's basically a fictionalized version of my childhood and my parents' lives. It's not that I begrudge the fact that they made the film. It's just that they didn't make it for me and my sisters. I loved the movie "Ray," but I bet if you asked Ray Charles' kids, they would have a problem with it. It's a Hollywood movie -- very complex lives reduced to two hours."

ON LOSING HER PARENTS
"I don't think you lose them, you integrate them. If you're diligent, you assume their best qualities."

ON HER FATHER'S SONGWRITING
"He was very cinematic and had a great sense of American roots poetry. His images were riveting. There was no fat on anything he wrote. That was a great example for me. He was a great, great songwriter."

« ON HER FATHER'S LAST YEARS
"As often happens between parent and child, I took on more of a bossy role. [Laughs] You know, you shift the weight of authority a little bit. Toward the end, he was very frail. I sang a lot of songs to him in those last few years."

ON SOCIAL ACTIVISM
"I think I get this from the example my father provided. He let us know that you were personally responsible and socially responsible and you spoke up for what you believed in."

ON THE MERCHANDISING OF HER FATHER
"You can't imagine what's said no to. It's all carefully chosen. What you see out there is an infinitesimal fraction of what's been requested."

ON HER MEMOIR
"My editor periodically takes me to dinner and asks, 'How's it going?' I'm about halfway through and hope to have it done within the year. It covers my early years in Nashville, beginning in 1976."

sábado, fevereiro 18, 2006

A blues King reigns with class (by Jeff Johnson for Chicago Sun-Times)


There are about 80 reasons for someone attending a B.B. King concert these days to have only modest expectations. There's one reason to hope for something great, but it's a compelling one: A great showman rises to any occasion.

The new octogenarian summoned all his energy Thursday night at the House of Blues to deliver his best local show in recent memory. The years seemed to melt away through the course of his 100 minutes onstage.

The best-known of all living blues legends played his trusty guitar Lucille tenderly if somewhat sparingly. But with every solo, dazzling one-string run or vibrato, he showed why he's always up near the top of any credible "greatest guitarists" list. His vocals were equally powerful, displaying the range and power of a much younger man.

Maybe it was a brief respite from the road before beginning what has been erroneously billed as King's last world tour.

Perhaps it was the Grammy he received last week -- No. 14 overall -- for "80," a duets album.

It may have been the presence of his Chicago blues belter daughter Shirley King and other relatives.

And then he was making his first appearance at the House of Blues in the city he acknowledged as "the home of the blues."

Or maybe he was just thumbing his nose at critics on several recent tour stops who complained that King at 80 talks more than he plays. (Indeed, he referred directly to that criticism during a lengthy narrative introduction to "Ain't That Just Like a Woman," one of several numbers that required and received enthusiastic audience participation.)

Whatever provided him with extra motivation, King was in peak form for a well-crafted set that started slowly and built to an exciting climax.

His set departed from his gritty Saturday-night-fish-fry standards such as "Let the Good Times Roll" and "Caledonia" in favor of such simple expressions of love as "Affection" and even "You Are My Sunshine."

The program was bookended with King's two late '60s hits, "Why I Sing the Blues" and "The Thrill Is Gone." The former, the Mississippi native's great social statement about the plight of inner-city African Americans, was regrettably abbreviated (and jazzed up). The latter, punctuated by King's three-piece horn section, brought the house down.

Those tunes brought King his first widespread exposure to the type of audiences who pack the House of Blues at $72.50 a head for two consecutive sold-out shows. But if that period represents King's greatest popularity, he has managed to maintain his hold on his blues kingdom ever since.

It's refreshing to see a performer of King's stature displaying such respect for his fans. That's reflected in the fact that each of his backing musicians other than the hardworking drummer was immaculately turned out in black tux. And more importantly, King interacts with the crowd with self-deprecating humor and shows sincere appreciation for each ovation.

Of course, King at 80 conserves his energy as much as possible. He carefully positions himself on a card-table chair, from which he performs what's become his signature move: raising his right arm as he simultaneously closes his eyes and shimmies in his seat.

There's never a sense, though, that he's merely going through the motions. When he sings of love lost and women who've let him down, he may emote in an exaggerated fashion by pretending to weep into a handkerchief or seize his heart. But he pours out his feelings, and you know that such heartache could not have been invented for the sake of a song.

Perhaps the most poignant moment came during Big Bill Broonzy's "Key to the Highway," when he sang, "When I leave this town I won't be back no more." The crowd gave him one last collective kiss, just in case the words proved prophetic.

Opening act Nicholas Barron's Hyperactive, a six-piece soul-funk outfit, displayed all the enthusiasm of the headliner, but with little of the tunesmanship. Barron, a longtime Chicago public-transit performer and advocate for other street musicians, might consider adding a couple of new elements to his sound -- namely a lead guitarist and bassist. But he did display a flair for songwriting with his original numbers.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Senhoras e Senhores, Mais Uma Vez, Os Rolling Stones (por Chico Marques para Trupe da Terra)


Dizer que os Rolling Stones praticamente definem o rock and roll é chover no molhado. Nunca uma banda conseguiu traduzir de forma tão perfeita, em música e atitude de vida, o conceito e a essência dessa brincadeira.

A trajetória deles consiste basicamente em chutar o balde para o alto -- sempre -- e sair de cena com um sorriso cínico nos lábios -- no caso de Mick Jagger, os lábios mais emblemáticos do show business.

São mais de 40 anos fazendo a mesma malcriação, para três ou quatro gerações que não cansam de se mirar neles, e para três ou quatro grandes companhias fonográficas que sempre se empenharam em apagar os incêndios que eles iniciavam, já que não queriam ver-se livres deles de jeito nenhum.

Essa brincadeira começou em 1950, quando Mick Jagger e Keith Richards se conheceram na escola primária. Dez anos mais tarde, eles viraram grandes amigos, graças ao interesse mútuo em blues, rhythm and blues e rock and roll.

Ingressaram numa banda chamada Little Boy Blue and The Blue Boys, que não deu muito certo, mas serviu de passaporte para que eles conhecessem o grande guitarrista inglês Alexis Korner, líder do Blues Incorporated, uma banda com formação bem maleável que brilhava intensamente na noite londrina.

No Blues Incorporated eles conheceram Brian Jones. Viraram amigos rapidamente. Resolveram dividir um apartamento, onde ouviam e tocavam música o dia inteiro. E daí surgiu a idéia de montar uma banda de blues, usando como nome uma canção de Muddy Waters, "Rollin´ Stone".

Custaram a achar um baixista e um baterista decentes. Quando conheceram Bill Wyman, o som da banda começou a acertar. E depois de conseguirem convencer Charlie Watts, um ex-baterista do Blues Incorporated que tinha virado publicitário, a assumir a bateria da banda, ficou faltando apenas convencer o tarimbado pianista Ian Stewart a embarcar numa molecagem que estava fadada a entrar para a história da música popular internacional.

A química entre os rapazes era perfeita. Jagger, ao mesmo tempo em que incorporava em seu jeito de cantar toda a lascividade dos cantores negros americanos, não abria mão de um sotaque britânico aristocrático, que contrastava violentamente com o jeito cockney da maior parte das bandas concorrentes dos Stones no cenário, como o Who, os Yardbirds e os Animals.

Enquanto Keith Richards maltratava sua guitarra seguindo a cartilha de Chuck Berry, Brian Jones dava vazão à sua genialidade musical e experimentava de tudo nos solos e nos arranjos da banda, reinventando de forma sensacional suas matrizes musicais americanas.

Para completar, a segurança da base rítmica de Wyman e Watts dava a credibilidade necessária a todas essas ousadias. E o piano de Ian Stewart, o colorido que faltava.

Quando os Stones lançaram seu primeiro lp, em Abril de 1964, repleto de covers incendiários de clássicos do rhythm and blues, ficou claro para a Decca Records que eles tinham tudo para emplacar na América no rastro dos Beatles.

Pois eles não mediram esforços para facilitar essa travessia atlântica, mandando os Stones para Chicago e agendando sessões de gravação na lendária Chess Records, onde gravavam Muddy Waters e Howlin'Wolf, dois grandes heróis musicais deles todos.

Daí até o estouro mundial com "Satisfaction", em 1965, que consolidou Mick Jagger e Keith Richards como uma grande dupla de compositores, foi um pulinho. Em seguida, veio o estrelato, sempre na contramão do bom mocismo dos Beatles.

Eles faziam questão de ressaltar essas diferenças, investindo num marketing ousado que vendia a banda como barra pesada, um conceito perigoso para a época, mas que funcionou, colocando os Stones como a outra face da moeda da beatlemania, completando de vez a invasão musical britânica na América, e deixando todas as outras bandas inglesas em segundo para terceiro plano.

No ano de 1969, os Stones viviam uma crise sem precedentes. Jagger e Richards haviam sido presos com drogas no ano anterior. As relações pessoais entre eles estavam deterioradas. Para completar o quadro, Brian Jones estava completamente inviabilizado como artista, devido aos exageros com LSD e heroína, que haviam deixado sequelas terríveis nele.
Depois de gravar dois discos -- "Beggar's Banquet" e "Let it Bleed" -- com guitarristas convidados, como Eric Clapton, Jimmy Page e Ry Cooder, Jagger e Richards tomaram a dianteira da situação e, sem consultar Brian Jones, convidaram o jovem guitarrista Mick Taylor, que vinha muito bem recomendado por John Mayall, para ingressar e dar suporte na primeira tournée da banda em muitos anos -- o que seria completamente inviável com Brian Jones.

Com isso tudo, Brian acabou entrando em depressão profunda e, no dia 3 de Julho de 69, foi encontrado boiando na piscina de seu castelo -- justamente dois dias antes da estréia da tournée da banda, num show gratuito no Hyde Park, em Londres.

Tudo isso acabou desencadeando o período mais barra pesada -- e mais criativo -- da história dos Stones, de discos brilhantes como "Sticky Fingers" e "Exile on Main Street", performances incendiárias e muita doideira.

Na primeira metade dos anos 70, os Stones reinaram quase absolutos na cena musical anglo-americana -- só o Led Zeppelin conseguia fazer frente a eles, e mesmo assim eventualmente --, mergulhando de cabeça no big business e no jet-set internacional.

As tournées da banda eram constantes e caóticas, com muita doideira e performances bastante irregulares. Daí, Mick Taylor -- sempre circunspecto e com expressão de anjo barroco --, começou a se cansar daquele estilo de vida, e anunciou sua saída da banda.

Foi substituído por Ronnie Wood em 1976, que já vinha flertando com a banda há tempos e não tinha mais estômago para trabalhar com Rod Stewart nos Faces.

Foi uma escolha mais do que acertada. Ronnie era tão feio e tão louco quanto Keith Richards, e tinha uma afinidade com o rhythm and blues que somava perfeitamente com os gostos musicais de Mick Jagger.
Já se vão 30 anos desde então.

Foram poucos os grandes discos que os Stones gravaram nesse período -- as excessões são "Black and Blue", "Some Girls", "Tattoo You" e "Voodoo Lounge" --, mas a banda ficou musicalmente mais constante, sempre preocupada em manter um contato estreito com as sonoridades do momento e, de quebra, com as novas gerações.

Fora isso, as tournées deixaram de ser perdulárias e atrapalhadas, graças ao talento administrativo do economista Michael Philip Jagger, que trocou a abundância de champagne, caviar e cocaína por mesas de frios e vinhos da California.

Com isso, os shows dos Rolling Stones viraram megaeventos muito bem resolvidos, tanto em termos cênicos quanto em termos musicais.

E agora, à beira de fazer o maior show de seus mais de 40 anos de carreira, diante do aristocrático Copacabana Palace, eles continuam insistindo em desafiar a velhice mantendo-se modernos, atualizados e vigorosos - que o diga a modelo e pseudo-apresentadora de TV Luciana Gimenez, mãe de um dos inúmeros filhos de Mick Jagger.

Até agora, o balanço da saga dos Rolling Stones é bastante positivo: o tempo tem andado ao lado deles, e os anos corrindo com uma certa leveza.

Se esse show de Copacabana for uma espécie de último grande desafio para esses rapazes sessentões, que seja glorioso.

Eles merecem essa satisfação.

E nós também.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Mick e eu (por Joaquim Ferreira dos Santos para O GLOBO)


Aí eu, que sou o da direita da foto, cheguei para o Mick Jagger, que é o da esquerda, e tentei, como me é do estilo, ser gente boa. “Please to meet you, hope you guess my name”. Como todos sabem estes são os primeiros versos de “Sympathy for the devil”, um dos maiores sucessos dos Rolling Stones. Já deviam ter feito a piadinha tantas vezes que o cara nem se mexeu. Ô saco. Silêncio sepulcral, e com toda razão. Mick evidentemente não sabia o meu nome. Muito menos podia retribuir qualquer prazer especial em me encontrar como dizia a letra. Por quem sois? — eu julguei tê-lo ouvido, dublado com sotaque de Trás-os-Montes. Eu era um Zé Ninguém, um Zé Carioca com oclinhos John Lennon. Coloquei no rosto um esgar cético, sublinhei com o dedo sobre os lábios um jeitão de quem já tinha visto o diabo nessa vida e tentei soar frio diante do ídolo. Tudo disfarce. Tudo mentira, falcatrua de quinta. Eu era mais um jornalista, com inglês pavoroso, querendo uma entrevista. Would you, please ? Resolver a pauta do dia e, em seguida, comer um diabólico no Gordon. Um mercenário da curiosidade alheia querendo driblar o ferrolho inglês. O motorista que estava com ele também se chamava Joaquim, mas até aí morreu o abominável homem das neves. Resolvi num raro instinto de dignidade e zelo pela liturgia do cargo não tentar mais uma piadinha como forma de aproximação. Mostrei os documentos. ABI. Kim. Joa. Joa Kim. Quero falar contigo. Be nice . Sentaí, mermão. Era uma técnica de reportagem que eu tinha aprendido com Neném Prancha, o filósofo do futebol. Herbert Moses não recomendaria. Zuenir Ventura, que era meu chefe na “Veja” e tinha me escalado enviado especial para a missão, talvez. Desconheci os sábios da imprensa. Ouvi a voz do divino, obedeci ao destino, como está no samba “Madureira chorou”. E fui. Nenén Prancha dizia que o jogador devia ir na bola como se fosse num prato de comida. Eu não tinha muita alternativa. Matei quase todas as aulas do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF. Tentava ali, tête-à-tête com Mick Jagger, adaptar para a reportagem as únicas lições que tinha ouvido até aquele momento com alguma atenção: as boutades dos campos de várzea e os riffs das guitarras que Jair de Taumaturgo, durante a década de 60, colocou no “Hoje é dia de rock” da Rádio Mayrink Veiga. Cruzei Neném Prancha com o meio é a mensagem de McLuhan. Fui faminto enfrentar a fonte. Disse. Mick, seguinte, ouve só. A história da Humanidade não moveu um centímetro em qualquer direção quando se deu esse encontro, em dezembro de 1975. Os anais da ABI não tomaram conhecimento. É mister e monsieur informar que o pesquisador Nélio Rodrigues faria na década de 90 um curtidíssimo livro, “Os Rolling Stones no Brasil”, uma história das passagens dos componentes do grupo em férias por aqui. Tudo gente normal, atrás dos valores básicos da civilização quando ela se põe em chinelos. Mulhas numas, mar noutras, a mente morta das marmotas. Eu, aceso, Neném Prancha aos gritos no cangote, corria atrás da notícia viva no paraíso tropical. Nélio registrou para a posteridade meu encontro com Mick, e eu lhe sou grato. Coloque a cena acima com mais duas ou três linhas de méritos, do tipo: em 2002 Cafu me deu para segurar, no avião da volta do Japão, a Taça do Mundo; em 2005 comecei uma crônica com a palavra “aliás”; em 2006 outra com “aí eu” — e eis o melhor de um currículo magro. Eu havia escutado todos os LPs, Mick resolveu ouvir as perguntas. Ele passava as noites na boate Sótão, templo doidinho da galeria Alaska, discotecou para o programa do Big Boy na Rádio Mundial e chegou a ver um show da Barca do Sol no Teatro Casa Grande. Todos estão mortos, eu quase e Mick, como veremos sábado, a mil. Trinta anos atrás, quando sentamos para a foto ao lado, no jardim da casa da atriz Florinda Bolkan — por sinal ainda não morta mas totalmente desaparecida — Jagger estava lorde inglês. O fino do rock. Pagou US$ 5 mil para passar, com a mulher, Bianca Jagger, e a filha, Jade, duas semanas de papo pro ar naquela mansão da Joatinga. No entanto, gentil, topava que o repórter blasé , cabelo anunciando o corte Chitãozinho-Xororó de 20 anos depois, perguntasse o que desse na telha. Bissexualismo, Nixon, rock depois dos 40, se havia paz possível no desencontro dos amantes e se tinha sido mesmo ele — confessa, vai — quem esfaqueou Brian Jones antes de jogar o corpo na piscina. Definitivamente, eu tinha aprendido as lições de jornalismo dadas por Neném Prancha. Conversamos por 20 minutos no jardim. Ainda bem que na semana seguinte foram impressas duas páginas da “Veja” com todas as palavras ditas. Não me lembro de qualquer frase. O tempo apaga o que é dor, o que é prazer também. Acho que Bianca fazia topless no jardim da Joatinga. A coitada não tem qualquer culpa. Também não foi por causa dela. O tempo passa a borracha e o que sobrevive o vento da Joatinga joga no mar. Lembro que meu gravador enguiçou. Mick, bad boy em férias, foi lá dentro pegar o dele. Disse one, two, three e bateu palma para testar. A fita gravada faria o orgulho de qualquer museu do repórter. Também foi parar embaixo de alguma pedra da Barra. Escafedeu-se como os pensamentos por trás dos oclinhos do repórter. Acho, e espero que algum novo discípulo jornalístico de Neném Prancha confirme quando ele chegar, que Mick admitiu na fita perdida. Sim, eu matei Brian Jones. Não tenho certeza. Pode ser. Apure-se. Ventava muito. Pela expressão distante, o repórter pensava no paradeiro de alguma Angie ou Lady Jane. Todas até hoje desaparecidas.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Novas Mutações (por Antonio Carlos Miguel para O GLOBO)


A História só se repete como farsa', dizia aquele velho barbudo alemão. Por isso mesmo, muitos dos fãs dos eternos Mutantes não se animam com uma possível reunião do grupo, dentro da programação prevista para a mostra "Tropicália, uma revolução na cultura brasileira", que o Barbican, o maior centro cultural europeu, vai abrigar em Londres, entre abril e maio deste ano. A notícia desse show, no entanto, ainda não é confirmada por Sérgio Dias, o guitarrista e um dos cantores e compositores do trio original.

- Eles podem estar negociando com todo o mundo, menos com a gente - responde, por telefone, de São Paulo.

Em setembro passado, num show solo em Londres, Sérgio Dias confirmou a popularidade que os Mutantes têm na Inglaterra, três décadas depois do fim do grupo. Mas, melhor do que essa incerta volta - e que, a princípio, reuniria os irmãos Sérgio e Arnaldo (Dias) Baptista, mais o baterista Dinho Leme e o baixista Liminha, mas não contaria com Rita Lee - é o relançamento dos principais discos do grupo, gravados entre 1968 e 1972, que agora voltam com nova masterização. Eles acabam de chegar ao mercado, através da gravadora Universal, que, em 1992, já os tinha editado em CD, mas, na época, sem recuperar as fitas originais.

O músico se diz feliz com o relançamento, mas reclama de não ter sido procurado pela gravadora:

- Como pai, é um barato ver seus filhos de volta, mas a Universal faz as coisas sem nos consultar. Eu nem sabia que esses discos iriam sair, não recebi cópias e, conversando com você, vejo que até repetiram erros de informação já identificados na edição anterior em CD - conta Dias, que, por exemplo, não tem seu nome como um dos autores de "Caminhante noturno", canção do segundo disco do grupo; nem os dos Mutantes como os autores da versão em inglês para "Baby", de Caetano Veloso, gravada em "Jardim elétrico".

Detalhes que, no entanto, não atrapalham o principal: a tropicalista mistura de canção brasileira com rock, instrumentações vanguardistas de Rogério Duarte ("Sim, ele era o nosso George Martin, só que mais avant-garde que o produtor dos Beatles", confirma) e psicodelismo continua inovadora. Não por acaso, a música dos Mutantes ainda conquista novos adeptos mundo afora, incluindo astros do pop nos EUA e na Inglaterra. Nos anos 90, foram citados por David Byrne, Beck, Sean Lennon (que desenhou a capa de "Tecnicolor", disco em inglês, gravado pelo grupo na França em 1970, mas só editado em 1999) e até Kurt Cobain.

Curiosidades de cada disco segundo o mutante Sérgio Dias

OS MUTANTES (1968): "Tenho ótimas lembranças desse disco. Ganhamos 'Panis et circenses' de Caetano e Gil; escrevemos 'Trem fantasma' com Caetano, na casa de Guilherme Araújo; minha mãe tocou piano em 'Senhor F'... A gente não era apenas fã de Beatles e rock, como as bandas da época. Gostávamos de muitas outras coisas. Arnaldo teve um grupo de bossa nova; quando ouvi 'Ponteio', fui pedir a Edu (Lobo) para aprender..."

MUTANTES (1969): "A mudança maior foi a entrada de Dinho. É um disco mais dirigido pela gente. Mas, na época, não havia interferência alguma da gravadora, de departamento de marketing, nenhuma sugestão para que a gente seguisse o que a rádio iria querer ou que se chamasse um DJ para remixar. Na primeira edição em CD, tiraram o meu nome como co-autor de 'Caminhante noturno'. E vejo que repetiram o erro."

A DIVINA COMÉDIA OU ANDO MEIO DESLIGADO (1970): "Quando começamos a gravar, estávamos no Teatro Casa Grande, no Rio, com a temporada de 'O planeta dos Mutantes', um show multimídia, com atores, projeções.... Fiz 'Ando meio desligado' para o Festival da Canção e levamos toda aquela gente para o Maracanãzinho. Mas o que mais incomodou os puristas foi a nossa gravação de 'Chão de estrelas'".

JARDIM ELÉTRICO (1971): "O som é muito melhor. Demos um pulo tecnologicamente com os instrumentos fabricados por Cláudio (o irmão mais velho de Arnaldo e Sérgio, uma espécie de Professor Pardal do rock brasileiro). Nesse disco, ampliamos ainda mais as nossas referências, como o som dos mariachis em 'El justiciero'; ou referências lusitanas em 'Portugal de navio', que é cantada, muito bem, por sinal, por Liminha."

...E SEUS COMETAS NO PAÍS DOS BAURETS (1972): "Quem veio com esse nome foi Tim Maia, e 'bauret' significa 'baseado'. Conhecemos Tim na Bandeirantes, ele chegou dos EUA com a influência da música soul, e foi um amor imediato. Quando vimos ele cantando, piramos e o apresentamos à PolyGram. A letra de 'Cantor de mambo' era para Sérgio Mendes, uma carinhosa homenagem, já o solo de guitarra é influenciado por Santana".

HOJE É O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA SUA VIDA (1972): "Apesar de creditado a Rita Lee, é um disco dos Mutantes, foi um erro nosso na época, mas nesse ano o grupo já tinha lançado um disco. A gravadora sempre insistiu na carreira solo de Rita e nunca aceitei isso, e me recusei a tocar no primeiro disco dela, 'Build up'. Aliás, 'De novo aqui, meu bom José', é uma resposta àquela música que Rita gravou solo, que a gente achava uma caretice."

O A E O Z (1973/1992): "Esse foi concebido e gravado inteiramente sob efeito do LSD. Mas não faço apologia, éramos mais reais e mais inovadores antes do ácido do que depois dele, que não traz talento para ninguém. Gravamos já sem Rita, e a gravadora arquivou o disco. No início dos anos 90, falei para Mayrton (Bahia, então diretor artístico da PolyGram, atual Universal) desse disco, e eles vasculharam os arquivos até encontrar a fita".

TECNICOLOR (1970/1999): "Durante a temporada que fizemos em Paris, no Olympia, em 1970, a PolyGram inglesa nos convidou para gravar esse disco com letras em inglês. Eles também queriam que a gente se radicasse em Londres, mas falaram apenas para Arnaldo, que só nos contou isso no Brasil. O disco também foi arquivado e só lançado em 1999, com desenhos de Sean Lennon na capa e no encarte".

James Brown, o chefão do... jazz (por Arthur Dapieve para NoMínimo.com)


Os dois inesperados álbuns que James Brown gravou para o selo Verve no final dos anos 60 – relançados em CD em 2004 e em 2005 – devem ser entendidos dentro de um duplo movimento do Homem Mais Trabalhador Do Show Business: em “Gettin’ down to it” e “Soul on top”, ele queria afastar-se da radicalização racial e mostrar o quanto o soul e o funk eram tributários do jazz, inserindo-se na linha evolutiva da música negra americana.

No day after do assassinato de Martin Luther King, a 4 de abril de 1968, Brown tinha uma apresentação marcada para Boston. Primeiro, a prefeitura tentou convencê-lo a cancelar o show, temendo que nele se iniciasse mais uma noite de protestos, quebra-quebras e incêndios, como os que estavam varrendo o resto dos EUA. Depois, com a garantia de Brown ao prefeito Kevin White, fez-se até a transmissão ao vivo pela televisão.

Há imagens em preto-e-branco disso, e elas testemunham o seu poder sobre uma conflagrada platéia negra. Primeiro, sobe um garotinho querendo dançar no palco. Brown deixa. Depois, sobem mais um e mais outro e... O cantor vai protegendo a multidão da polícia. Logo, porém, a zona o impedia de se apresentar. Então, Brown expulsa a rapaziada, passando-lhe uma descompostura federal e lembrando-lhes que tal mau comportamento, televisionado, iria apenas confirmar os piores estereótipos dos brancos sobre os negros.

Esta ascendência sobre as platéias negras – para quem Brown era algo como Frank Sinatra, Elvis Presley e os quatro Beatles, todos juntos numa mesma pessoa – era fascinante e amedrontadora. O FBI começou a pensar nele como o próximo grande líder negro e passou a segui-lo e persegui-lo. Mais tarde, em agosto de 1968, Brown ainda gravou seu hino de orgulho racial “Say it loud – I’m black and I’m proud”. No entanto, ele já cogitava dar um tempo na pregação. A fome juntou-se à vontade comer quando ele encontrou o Dee Felice Trio: Frank Vincent (piano), Lee Tucker (baixo) e o próprio Dee Felice (bateria).

Só com os três jazzistas e com a canja de uma de suas namoradas/vocalistas, Marva Whitney, Brown gravou o primeiro de seus inesperados discos pela Verve, “Gettin’ down to it”, entre dezembro de 1968 e março de 1969, no lendário King Studios, de Syd Nathan, em Cincinnati, Ohio. Nele, o chefão do soul/inventor do funk/avô do hip hop mostrou o quanto apreciava Sinatra, regravando, por exemplo, “That’s life” e “Strangers in the night”. Regravando à sua maneira, é lógico: enfatizando o ritmo balançado e enfiando inúmeros dos seus característicos “ihs” e “ahs” entre os versos. Um Sinatra no cio, digamos assim.

Se Brown humildemente saía de cena em duas faixas, “There was a time” e “Uncle”, para o trio brincar com os guitarristas Lee Garrett e Kenny Poole, também o aliciava para a excelente versão de uma de suas próprias composições-tema, “Cold sweat”, funky que só. Nela, podemos entender a concepção musical do cantor, que ouvia, com seu ouvido absoluto, cada instrumento como se fosse um instrumento de percussão. Descarnada até o osso piano-baixo-bateria, a canção continua sendo uma intimação à dança.

Brown, que já havia gravado esporadicamente standards de jazz, gostou da experiência e, antes do final de 1969, a 10 e 11 de novembro, já estava de volta ao estúdio, o United, em Hollywood, para registrar “Soul on top”. Dessa vez, porém, estava cercado por toda uma big band, liderada pelo baterista Louie Bellson e arranjada e regida por Oliver Nelson. Entre os músicos, estavam Ray Brown, no baixo, e Ernie Watts, no sax alto. Para o piano, Brown trouxe o mesmo Frank Vincent de “Gettin’ down to it” e, para o papel de único solista, o sax-tenorista Maceo Parker Jr., membro de sua banda habitual.

Em “Soul on top”, Brown estava, graças aos metais, mais perto de seu habitat natural. Eles soam como um único e poderosíssimo instrumento de percussão, que leva adiante mais uma versão de “There was a time” e recriações incendiárias para outros dois clássicos temas do cantor, “It’s a man’s, man’s, man’s world” e “Papa’s got a brand new bag”. Nem tudo, todavia, são tempos rápidos. Brown também brilha em baladas como “That’s my desire” e “What kind of fool am I?”. O álbum é tão bom que nem regravar a chorosa “Your cheatin’ heart”, do ícone country Hank Williams, como um animado soul soa lá muito bizarro.

Os pontos altos são o trabalho de Ray Brown por todo o álbum e a faixa “The man in the glass”. Brown, o baixista, passeia sua destreza habitual pelo instrumento acústico e exibe-se no elétrico. Seu trabalho em “September song”, de Kurt Weill, é nada menos que fantástico. Já a gravação da música de Bud Hobgood se revela o mais perfeito casamento entre o vocal melodramático de Brown, o cantor, e a orquestra que o acompanhava. “The man in the glass” sai do disco pronta para estrelar um bom filme de suspense e/ou superação pessoal.

No texto original da contracapa, Brown declarava ao afamado crítico de jazz Leonard Feather: “No coração, eu sempre fui um homem de jazz.” Afinal, um de seus ídolos sempre foi Louis Jordan, cantor e líder de banda que atuou na fronteira entre o swing e o rhythm’n’blues, precisamente a fronteira que Brown buscava ultrapassar de novo em “Soul on top”. Com a modéstia habitual. “O jazz vai se beneficiar de minha associação com ele”, disse a Feather. “Veja o que vai acontecer quando este disco sair. Todos vão procurar músicos de jazz para tocar para eles e arranjadores de jazz para escrever para eles.” Não foi bem isso que se (ou)viu durante os anos 70. Nem havia como. Grandes músicos de jazz havia muitos, mas James Brown, só um. Com sua musicalidade exuberante, seu rebolado lascivo, seu gênio do cão, seu ego anabolizado pelo sofrimento e all that jazz.

Meu Mico Com Mick e os Stones (por Zuenir Ventura para NoMínimo.com)


Você arriscaria sua vida para assistir a uma coisa chamada Banda RBD, a exemplo do que fizeram as 40 pessoas que saíram feridas e as três que morreram no show do hipermercado Extra em São Paulo? Sei que elas não podiam prever o que ia acontecer, evidentemente. Não podiam imaginar que haveria tanta imprevidência e irresponsabilidade por parte dos organizadores do evento, anunciado inicialmente como uma simples sessão de autógrafos.

Mas mesmo que não fosse para morrer, e sim para curtir, você participaria do que a gravadora EMI, ao lamentar o ocorrido, classificou de “euforia de milhares de fãs”? Euforia no caso é uma rima rica para histeria. Mudando de público e de palco: você se disporia a ficar em pé horas numa fila de ingressos que se esgotaram em meia hora para o espetáculo do U2 em São Paulo? Ou para o dos Rollings Stones no Rio? (esse é de graça, na praia, mas há uma área para convidados especiais).

Pode-se alegar que essas pessoas têm pouco a ver com as outras, não só em termos de gosto, mas também em termos de atitude: não são fanáticos, são aficionados. Não garanto. Leio na Hildegard Angel que a promoter do evento está recebendo mil e-mails de pedidos diariamente e que na lista de espera há quatro mil aflitos candidatos a um convite que dá direito a ficar no cercadinho vip.

Ah, se esses fãs soubessem do mico que um dia fui capaz de pagar! Não me perdoariam. Foi nos anos 60, acho que em 69, em Paris, com Mick Jagger e seu amigo Keith Richards no auge da fama. Logo que chegamos, Vilma e Ziraldo, Mary e eu, soubemos que o grande acontecimento da temporada seria justamente a apresentação dos Rollings Stones, a primeira fora da Inglaterra. No entanto, cartazes espalhados pelas ruas avisavam - “Sold out” - que não havia mais ingressos à venda.

Ao passar por um out-door, Mary viu o nome do produtor. “Engraçado”, comentou, “conheço esse cara”. Meses antes ele trouxera um outro grupo ao Rio e ela, então repórter do “Jornal do Brasil”, o entrevistara. Na saída, ele disse mais por delicadeza do que para valer: “quando for à Europa me procura”. Achamos que era a oportunidade, e começamos a pressionar minha mulher para que ela o procurasse. Não adiantaram suas alegações de que aquele convite fora uma mera cordialidade. “Não custa nada, vai lá”.

Mary acabou concordando, descobriu o endereço da produtora, subiu as escadas, anunciou-se e aguardou. Contava com duas possibilidades: 1. Ele não se lembrar dela; 2. Mandar dizer que estava ocupado e que voltasse outra hora. Na melhor das hipóteses, pouco provável, ele a receberia e diria: “infelizmente, como você sabe, não há mais ingresso nem para dar nem para vender”.

Pois não aconteceu nada disso. Ele a recebeu e perguntou: “quantos ingressos?” Ela tomou coragem e respondeu sem jeito: “tem também um casal...”. Nenhum problema. Ela saiu de lá com quatro dos melhores lugares. Imaginem nossa alegria, não só com a perspectiva de assistir a um espetáculo histórico, mas de poder chegar ao Brasil e fazer inveja aos amigos.

Entramos por uma porta lateral sem nenhum atropelo, nos sentamos e a partir daí é minha mulher quem conta: “mal começou o show, olhei para o lado, Zuenir e Ziraldo dormiam profundamente. O som estourando nas caixas ao lado, Mick Jagger nos molhando de cuspe e suor, tão perto estávamos do palco, e nada disso conseguiu acordar os dois”.

Claro que ao voltar não tive coragem de confessar o mico. Quando me perguntavam se tinha gostado da apresentação, dizia apenas: “Imperdível!”.