sexta-feira, fevereiro 10, 2006

James Brown, o chefão do... jazz (por Arthur Dapieve para NoMínimo.com)


Os dois inesperados álbuns que James Brown gravou para o selo Verve no final dos anos 60 – relançados em CD em 2004 e em 2005 – devem ser entendidos dentro de um duplo movimento do Homem Mais Trabalhador Do Show Business: em “Gettin’ down to it” e “Soul on top”, ele queria afastar-se da radicalização racial e mostrar o quanto o soul e o funk eram tributários do jazz, inserindo-se na linha evolutiva da música negra americana.

No day after do assassinato de Martin Luther King, a 4 de abril de 1968, Brown tinha uma apresentação marcada para Boston. Primeiro, a prefeitura tentou convencê-lo a cancelar o show, temendo que nele se iniciasse mais uma noite de protestos, quebra-quebras e incêndios, como os que estavam varrendo o resto dos EUA. Depois, com a garantia de Brown ao prefeito Kevin White, fez-se até a transmissão ao vivo pela televisão.

Há imagens em preto-e-branco disso, e elas testemunham o seu poder sobre uma conflagrada platéia negra. Primeiro, sobe um garotinho querendo dançar no palco. Brown deixa. Depois, sobem mais um e mais outro e... O cantor vai protegendo a multidão da polícia. Logo, porém, a zona o impedia de se apresentar. Então, Brown expulsa a rapaziada, passando-lhe uma descompostura federal e lembrando-lhes que tal mau comportamento, televisionado, iria apenas confirmar os piores estereótipos dos brancos sobre os negros.

Esta ascendência sobre as platéias negras – para quem Brown era algo como Frank Sinatra, Elvis Presley e os quatro Beatles, todos juntos numa mesma pessoa – era fascinante e amedrontadora. O FBI começou a pensar nele como o próximo grande líder negro e passou a segui-lo e persegui-lo. Mais tarde, em agosto de 1968, Brown ainda gravou seu hino de orgulho racial “Say it loud – I’m black and I’m proud”. No entanto, ele já cogitava dar um tempo na pregação. A fome juntou-se à vontade comer quando ele encontrou o Dee Felice Trio: Frank Vincent (piano), Lee Tucker (baixo) e o próprio Dee Felice (bateria).

Só com os três jazzistas e com a canja de uma de suas namoradas/vocalistas, Marva Whitney, Brown gravou o primeiro de seus inesperados discos pela Verve, “Gettin’ down to it”, entre dezembro de 1968 e março de 1969, no lendário King Studios, de Syd Nathan, em Cincinnati, Ohio. Nele, o chefão do soul/inventor do funk/avô do hip hop mostrou o quanto apreciava Sinatra, regravando, por exemplo, “That’s life” e “Strangers in the night”. Regravando à sua maneira, é lógico: enfatizando o ritmo balançado e enfiando inúmeros dos seus característicos “ihs” e “ahs” entre os versos. Um Sinatra no cio, digamos assim.

Se Brown humildemente saía de cena em duas faixas, “There was a time” e “Uncle”, para o trio brincar com os guitarristas Lee Garrett e Kenny Poole, também o aliciava para a excelente versão de uma de suas próprias composições-tema, “Cold sweat”, funky que só. Nela, podemos entender a concepção musical do cantor, que ouvia, com seu ouvido absoluto, cada instrumento como se fosse um instrumento de percussão. Descarnada até o osso piano-baixo-bateria, a canção continua sendo uma intimação à dança.

Brown, que já havia gravado esporadicamente standards de jazz, gostou da experiência e, antes do final de 1969, a 10 e 11 de novembro, já estava de volta ao estúdio, o United, em Hollywood, para registrar “Soul on top”. Dessa vez, porém, estava cercado por toda uma big band, liderada pelo baterista Louie Bellson e arranjada e regida por Oliver Nelson. Entre os músicos, estavam Ray Brown, no baixo, e Ernie Watts, no sax alto. Para o piano, Brown trouxe o mesmo Frank Vincent de “Gettin’ down to it” e, para o papel de único solista, o sax-tenorista Maceo Parker Jr., membro de sua banda habitual.

Em “Soul on top”, Brown estava, graças aos metais, mais perto de seu habitat natural. Eles soam como um único e poderosíssimo instrumento de percussão, que leva adiante mais uma versão de “There was a time” e recriações incendiárias para outros dois clássicos temas do cantor, “It’s a man’s, man’s, man’s world” e “Papa’s got a brand new bag”. Nem tudo, todavia, são tempos rápidos. Brown também brilha em baladas como “That’s my desire” e “What kind of fool am I?”. O álbum é tão bom que nem regravar a chorosa “Your cheatin’ heart”, do ícone country Hank Williams, como um animado soul soa lá muito bizarro.

Os pontos altos são o trabalho de Ray Brown por todo o álbum e a faixa “The man in the glass”. Brown, o baixista, passeia sua destreza habitual pelo instrumento acústico e exibe-se no elétrico. Seu trabalho em “September song”, de Kurt Weill, é nada menos que fantástico. Já a gravação da música de Bud Hobgood se revela o mais perfeito casamento entre o vocal melodramático de Brown, o cantor, e a orquestra que o acompanhava. “The man in the glass” sai do disco pronta para estrelar um bom filme de suspense e/ou superação pessoal.

No texto original da contracapa, Brown declarava ao afamado crítico de jazz Leonard Feather: “No coração, eu sempre fui um homem de jazz.” Afinal, um de seus ídolos sempre foi Louis Jordan, cantor e líder de banda que atuou na fronteira entre o swing e o rhythm’n’blues, precisamente a fronteira que Brown buscava ultrapassar de novo em “Soul on top”. Com a modéstia habitual. “O jazz vai se beneficiar de minha associação com ele”, disse a Feather. “Veja o que vai acontecer quando este disco sair. Todos vão procurar músicos de jazz para tocar para eles e arranjadores de jazz para escrever para eles.” Não foi bem isso que se (ou)viu durante os anos 70. Nem havia como. Grandes músicos de jazz havia muitos, mas James Brown, só um. Com sua musicalidade exuberante, seu rebolado lascivo, seu gênio do cão, seu ego anabolizado pelo sofrimento e all that jazz.

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