sexta-feira, dezembro 16, 2005

Eu Prefiro Paul MacCartney (por Joaquim Ferreira dos Santos para O GLOBO)


Paul era melhor.

Não teve a sorte de morrer jovem e merecer todas as lágrimas que as televisões e jornais verteram semana passada pelos 25 anos dos funerais de John Lennon. É um dos vícios da Humanidade. Privilegiar os mortos, os perdedores, os esquisitões, os que sofrem, os que gritam socorro e ainda por cima encontraram um doido com a arma carregada para lhe arrematar a biografia de herói. John, que Deus o tenha entre as flores do seu campo de morangos, entrou para a História como o beatle que pôs o circo de pé. Não foi bem assim. Os especiais dos canais a cabo, as matérias de página inteira nos jornais disseram que o homem deu substância ao pop. Menos, senhores. John usava óculos, era meio gordinho, foi abandonado pela mãe. Essas coisas imprimem bacana numa camiseta de fundo preto e o seu dono só precisa entrar com o punho fechado mais o suor nas axilas. Dá mina aos montes. Nada disso, no entanto, compõe necessariamente uma música melhor.

Paul era o cara, é só ouvir o piano solando “Maybe I’m amazed” ao fundo dessas linhas. Desgraçadamente era um homem bonito, casado com uma loura milionária e tinha aquela mania de fazer delicadas canções solares, getting better all the time , enquanto o colega estava saudando as luzes da Lua. Não fica bem elogiar gente feliz, e os jornalistas sempre souberam sonegar aplausos a Paul. Viva a amargura e a depressão! Vamos dar uma chance à paz, vamos ajudar a Brigitte Bardot a salvar as baleias, vamos acabar com a fome no Brasil. John Lennon, com aquele papo de grito primal, aquela balada para a mamãe morta, os gritos para que o papai voltasse para casa, parece ter sido o sujeito mais complicado dos anos 60. Isso é música para as rotativas. Parem as máquinas porque Lennon largou tudo e convocou o grupo para puxar angústia com o Maharish, um dos maiores salafrários do século. No Brasil, ele seria petista de primeira hora. Cederia ao companheiro Lula os direitos da música que pede poder para o povo. E olhem que quem escreveu “O tolo na montanha” foi Paul.

Eu prefiro Paul McCartney. Respeitosamente como me é de estilo, deixei que as viúvas aliviassem todas as suas lágrimas nas lembranças da semana passada. Esperei que os críticos desovassem suas reflexões e fingissem que não foi Lennon quem compôs “Então é Natal”, essa musiquinha que se alia ao amigo-oculto, ao engarrafamento da árvore na Lagoa e dá vontade a todos de simplesmente pular dezembro.

Paul — se é possível dizer que o preto é superior ao branco, se o jornalismo tem entre suas graças abolir essas zonas de sombra e partir para o pau, eu vos digo — Paul foi quem deu o tom. Deu arte-final ao que era apenas descontrole da pélvis. Só agora, neste cantinho discreto, único lugar do mundo onde não está tocando “Imagine”, eu abro o jogo. O janota era quem fazia, good day sunshine , o sol civilizado brilhar na loucura. Sua franjinha podia ser a mais bem cortada, esse tipo de coisa arrumadinha que passa uma impressão muito ruim aos ativistas de esquerda. Mas foi ele quem colocou a orquestra sinfônica no estúdio e bolou a explosão de sons que instaurou a vanguarda no pop com “A day in the life”. Foi ele quem usou a paródia, a colagem e a metalinguagem, como exigiam as últimas notícias do tempo, e fez “Back in the USSR” curtindo com a cara dos vocais dos Beach Boys, o grupo que tanto invejava.

Lennon discursava. Afinal tinha passado todos os anos 60 casado com uma loura sem sal de Liverpool e isso dá nos nervos de qualquer um. Um agitador genial. Quando a barra doméstica pesava, a televisão na sala estava alta ou as crianças não queriam dormir, ele escapava nas primeiras drogas do rock. Engendrou textos psicodélicos que até hoje desafiam a paciência do planeta porque ninguém consegue atinar, caramba, o que o cara queria dizer com aquela história de que ele era a vaca marinha num verso e logo no outro que ele na verdade era o homem-ovo. Esquizofrenia é uma arma quente para se conseguir a posteridade artística. Dá, além de camiseta em Santa Teresa, radicalidade intelectual. Paul preferiu caprichar na música. Enquanto eu mudo de parágrafo deixo tocando como exemplo os metais de “Got to get you into my life”.

Eles eram Pelé e Coutinho. Na maioria das vezes, como nos filmes escuros dos 60 em que a dupla infernizava o time do Benfica, ficava difícil dizer quem dava o passe e quem marcava o gol. Ninguém faz “In my life” impunemente, como Lennon nos Beatles, a música ciclâmen que ora dedico à Irene e à Helena, do Jardim Botânico. Lennon escreveu a psicodelia de “Tomorrow never knows”, passou para Paul, que colocou os loops, deu uma mamada em Cage, e deixou a música na cara do gol, num jeitão que ainda hoje soa esquisito. Rolava uma química, a tal sinergia que tanto pede o meu chefe de RH. Quando eles se separaram, no entanto, e o John solo veio de “O herói da classe trabalhadora”, aí a coisa ficou clara.

O Pelé era Paul. Foi ele, o careta, quem percebeu sofisticação atrás da pancadaria adolescente e explodiu as espinhas do rock. Fez “Yesterday”, uma das três mais bonitas canções de amor do século passado — as outras duas estão em qualquer LP de Sinatra. Fez “Penny lane”, uma crônica suburbana como essas que de vez em quando aparecem aqui, onde havia um barbeiro mostrando fotos de todas as cabeças que ele teve o prazer de cortar. O rock deixou de ter cara de bandido. Lennon — cara de rapaz zangado, 68 em estado bruto, aquele que cantou ser um perdedor — faturou o pôster da rebeldia jovem. Eu posso até não ficar bem na foto do politicamente correto, mas junto a voz aos corações solitários da banda do sargento Pepper. John sozinho era pau. Prefiro Paul.

O idiota do Mark Chapman matou o beatle errado.

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