quinta-feira, dezembro 08, 2005

O baú de Joe Strummer (Por Arthur Dapieve)


Era inevitável – e justo – que a morte de Joe Strummer, quase três anos atrás, deflagrasse o relançamento de seus discos esquecidos. Ano passado, voltou ao mercado externo a trilha sonora de “Straight to hell”, do cineasta inglês Alex Cox, no qual o ex-líder do Clash colaborou como compositor e como ator. Este ano, ressurgiram, por enquanto também apenas lá fora, pela EMI/Astralwerks, “Elgin Avenue breakdown (Revisited)” e “Walker”.

O primeiro é o único álbum confiável da primeira banda de John Graham Mellor a fazer algum sucesso, os 101ers. Embora contenha gravações de 1975, só foi lançado em 1981. É a primeira vez que sai em CD. O segundo, de 1987, é outra trilha para um filme de Cox, esta toda de Mellor. Entre 1975 e 1987, como se sabe, muita coisa aconteceu na vida do guitarrista, a ponto de ele trocar seu nome artístico de Woody (homenagem ao trovador folk de esquerda Woody Guthrie) para Joe Strummer (algo como “dedilhador” em inglês).

Este “muita coisa” pode ser resumido numa palavra antecedida por um artigo: The Clash. O choque, a colisão, o desacordo. É o meu grupo favorito até hoje. Ativo entre 1976 e 1985, o quarteto/quinteto inglês sobreviveu galhardamente ao movimento punk graças tanto às bandeiras políticas quanto à sua imprevisível música, que, calcada no rock e no reggae, atingiu o soul, o gospel, o funk, a discoteca, o rockabilly, o jazz, o dub, a eletrônica.

Os 101ers tinham em seu nome o número da casa invadida e habitada por seus integrantes na Walterton Road, Oeste de Londres. Faziam pub rock: mistura de clássicos do rock e do rhythm’n’blues para entreter platéias encharcadas de cerveja. Com o tempo, conforme superaram uma inépcia técnica que antecipava a ideologia do-it-yourself do punk, foram, ou melhor, Strummer foi criando um repertório. Ele compôs sua primeira canção, a mediana “Keys to your heart”, no final de 1974. Entretanto, quando o compacto foi lançado, só em junho de 1976, Strummer já havia saído para o Clash havia uma semana.

Para se ter uma idéia do cartaz dos 101ers na cena pré-punk da capital inglesa, talvez baste saber que os Sex Pistols abriram para eles num pub chamado The Nashville Rooms. O título “Elgin Avenue breakdown” – cujo “(Revisited)” marca a expansão das originais 12 faixas do LP para as 20 da versão em CD – incorpora o endereço de outro pub importante na história da banda, The Elgin. O disco reúne duas versões de “Keys to your heart” a outras composições da banda, como as superiores “Sweet revenge” e “Motor boys motor”, e covers. “Out of time”, dos Stones, foi gravada ao vivo na prisão de Wandsworth.

O repertório segue um show dos 101ers: abre com a vertiginosa “Letsagetabitarockin’”, de Strummer, e fecha com a cacofonia de “Gloria”, de Van Morrison. A voz do guitarrista está ali, claro, imaculada em sua ruína, e o Clash até pode ser ouvido à distância. Falta, porém, a fagulha. Falta o trabalho coletivo, porque Strummer não era um gênio (e é isso que faz a sua glória, ser um homem comum lutando para se expressar). Faltam o gosto de Mick Jones pela dança, a cultura reggae de Paul Simonon, a energia batuqueira de Topper Headon.

Contudo, na época dos 101ers, Strummer já cultivava o gosto pela música latina, compartilhado com o baterista Richard “Snakehips” Dudanski e com convidados nos sopros e na percussão (não há registros destes nas faixas de “Elgin Avenue breakdown”). Desenvolvida no Clash, que, não custa lembrar, tem um álbum soberbo chamado “Sandinista!”, essa paixão floresce em “Walker”. Cox faz uma biografia maluca de William Walker, mercenário americano que se torna o “dono” da Nicarágua em meados do século XIX. O tal é muitíssimo bem interpretado por Ed Harris. Há uma cena impagável em que ele “fala” usando sinais de surdos-mudos com a mulher morta (Marlee Matlin).

Para o libertário Strummer, “Walker” juntava a fome à vontade de comer: criticava o imperialismo americano e dava-lhe a chance de fazer música instrumental alatinada, além de uma ponta como ator. Uma declaração reproduzida na capa do CD dá o tom da coisa. “É tudo acústico”, disse o cantor. “Eu pensei, vamos ser 1850, nada plugado.” No álbum, ele comanda uma orquestra que mistura muita música latina (“Filibustero”, “Nica libre”, “Tropic of Pico”), algum folk (“Smash everything”) e claras influências dos scores spaghetti de Ennio Morricone (“Sandstorm”). Strummer canta apenas em três faixas (“The unknown immortal”, “Tennessee rain” e “Tropic of no return”) e outras três que não constavam do LP são acrescentadas (inclusive um remix para “Filibustero”).

Se o verde CD dos 101ers foi superado pelos fatos, ainda bem, aliás, o de “Walker” soa atemporal, preservado, justamente porque amadurecido na experiência com o Clash. Ademais, antecipa a obsessão latina na obra solo posterior de Joe Strummer, cujas bandas de apoio chamaram-se The Latino Rockabilly War e The Mescaleros. Por isso, os dois relançamentos são tão importantes: flagram o antes e o depois do Big Bang.

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