terça-feira, julho 12, 2011

CINCO VOZES E O SENTIMENTO DO MUNDO (por Chico Marques)

É curioso como todas as grandes transformações musicais da música negra americana aconteceram sempre que algum gaiato transportou os spirituals e gospels cantados nas Igrejas Batistas para ambientes pouco ou nada abençoados pelo Senhor.

Isso aconteceu tanto com o jazz – que surgiu do encontro da música dos negros com os instrumentos vindos da Europa na velha New Orleans --, quanto com o blues – que saiu das plantações que cercavam os Vales do Mississipi e ganhou ares cosmopolitas em cidades como Chicago, Memphis, Saint Louis e Kansas City --, e também com a soul music -- que não difere em praticamente nada dos gospels, a não ser pelas temáticas bem mundanas das canções, que jamais caberiam no ambiente “de elevação” das Igrejas.

Para os artistas de todos esses gêneros musicais, cantar e comunicar andavam sempre lado a lado. Até porque as melhores referências que tinham tanto do ato de cantar quanto do ato de comunicar não vinham do rádio, e sim da Igreja mais próxima. Certos pastores eram verdadeiras estrelas pop nos anos 1950 e 1960. James Franklin – pai de Aretha – era um desses que atraíam verdadeiras multidões por onde passava.

Mas então surgiu Ray Charles, com seus gospels incendiários que falavam de sexo e de relações amorosas turbulentas com uma franqueza assustadora para quem não estava habituado a ouvir aquilo. Foi a partir daí que muitos cantores dos coros das Igrejas constataram que existia vida artística fora dalí, e então largavam tudo e seguiam para Memphis, Tennessee -- o epicentro dessa nova tendência musical.

Foi assim com o ex-Reverendo Solomon Burke -- a primeira estrela soul a surgir depois de Ray Charles --. com o showman absoluto James Brown -- que explodiu nas paradas quase ao mesmo tempo que Burke – e com diversos outros artistas tão seminais quanto eles -- Sam Cooke, Otis Redding, Wilson Pickett, Don Covay, Joe Tex, Arthur Alexander, Bobby Womack, etc. Todos brilharam intensamente na primeira metade dos anos 1960, correndo lado a lado com a explosão do Movimento pelos Direitos Civis na América.

Sintomaticamente, não haviam pastoras nas igrejas freqüentadas por negros. Por conta disso, também não havia uma única mulher de destaque na cena da soul music.

Foi quando Jerry Wexler trouxe para a Atlantic Records uma grande cantora negra que estava perdida no elenco da Columbia há anos, gravando repertório inadequado e indo rápido a lugar algum.

Bastou Aretha Franklin chegar à cena da soul music em 1966 já soltando a voz, e o tradicionalíssimo machismo dos negros foi colocado em xeque. Manifestos musicais como “Think” e “Respect” acabaram se revelando mais contundentes e eficazes para as mulheres da Comunidade Negra do que a obra completa de feministas como Betty Friedan e Gloria Steinem.

Aretha chegou chutando a porta e gritando "Qual é o problema".

Ninguém se atreveu a peitá-la.

Mas, com a morte de Martin Luther King, tudo isso foi meio que deixado de lado de uma hora para outra. E a soul music, de luto, deixou os temas mundanos um pouco de lado para buscar uma espécie de elevação, se aproximando novamente dos gospels -- e, de certa forma, encerrando um ciclo.

Nos anos 1970, o panorama soul ficou disperso, mais voltado para o pop e mais integrado às platéias brancas. E, consequentemente, menos comprometido com mudanças sociais.

Os artistas clássicos do gênero que sobreviveram na cena mantiveram, da meneira que foi possível, a da soul music acesa. Ganharam o reforço dos artistas de blues, que, ao longo dos anos, se deixaram contaminar pela musicalidade e pelas vocalizações soul. Todos eles, de certa forma, passaram a compor uma mesma cena de quarenta anos para cá.

Conheçam agora um pouco dos novos trabalhos de veteranos como Aretha Franklin e Aaron Neville, quase veteranos como Ruthie Foster e Eric Bibb, e também de uma cantora e guitarrista branca, ruiva e surpreendente chamada E G Kight.

Todos os cinco -- cada um à sua maneira -- abraçam o mundo com suas vozes e definem bem a palavra SOUL.




















ARETHA FRANKLIN
A WOMAN FALLING OUT OF LOVE
Às vésperas de completar 70 anos, a Primeiríssima Dama da Soul Music está de volta com um disco que é excepcional pelo simples fato de existir. Explico melhor. Aretha esteve muito mal de saúde nos últimos anos – ela aparenta estar melhor agora. Esteve também numa batalha judicial bastante desgastante com sua ex-gravadora Arista Records -- assunto encerrado de uns meses para cá, desde que ganhou na justiça o direito de lançar este disco, que já está pronto há quase dois anos, por seu selo próprio, Aretha Records. Se por um lado “A Woman Falling Out Of Love” está distante do altíssimo gabarito de seus melhores LPs gravados nos anos 1960 e 1970, por outro lado funciona como uma seqüência bastante digna para seus últimos trabalhos “A Rose Is Still A Rose” (1997) e “So Damn Happy” (2002). É um disco bastante envolvente, onde Aretha solta a voz em duetos com expoentes de várias fronts musicais, mesclando números de r&b bem modernosos com gospels, blues e standards do cancioneiro americano. Aretha tem uma peculiaridade que sempre deixou as outras cantoras profundamente irritadas: quanto mais solta a voz, mais facilmente acerta o ponto. Economia de recursos vocais, definitivamente, nunca foi seu forte. A maneira como descontrói e reinventa números batidos como “A Summer Place” e “The Way We Were” – essa última em dueto com o fabuloso Ron Isley, dos Isley Brothers -- é prova clara disso, e é o que faz de Aretha única e absoluta. Confesso que só não gostei da gravação que ela fez para “My Country Tis Of Thee” -- apoteótica demais para um gospel, mas justificável como hino da Era Obama, de quem Aretha é fiel apoiadora. Agora, é torcer para que Aretha Franklin, com seu selo próprio, consiga administrar melhor sua carreira e manter uma regularidade de lançamentos para os próximos anos. Nós, seus súditos, merecemos.




















AARON NEVILLE

I KNOW I´VE BEEN CHANGED
Aaron Neville é outro que está batendo às portas dos 70 anos de idade com uma vitalidade artística assombrosa. Voz principal dos Neville Brothers e um dos patrimônios mais valiosos da música de New Orleans, Aaron resgatou em 1990 uma carreira solo que estava adormecida desde a segunda metade dos anos 1960, quando, ao lado de Allen Toussaint, emplacou compactos clássicos como “Tell Me Like It Is”. Só que ele exagerou um pouco no direcionamento crossover desses discos de retorno, e, em vez de ampliar seu público, acabou virando prisioneiro de um padrão de produção muito meloso e pouco arrojado – bem na contramão de seu trabalho que desenvolve com seus irmãos. Mas aqui, em “I Know I´ve Been Changed” -- só de gospels tradicionais, com arranjos eloquentes de Allen Toussaint e a sonoridade moderníssima do produtor Joe Henry -- ele finalmente vira o jogo a seu favor . Além de ser um triunfo artístico retumbante, funciona também como um apelo para que alguma coisa seja feita em prol do povo pobre de New Orleans, que teve a vida devastada pelo Furacão Katrina, e até hoje ainda briga para conseguir retomar seu padrão de vida anterior. A delicadeza com que os gospels de “I Know I´ve Been Changed” se encadeiam, receitando fé como remédio para suportar as adversidades, deixam claro que – nas palavras de um crítico americano – “está mais do que na hora de Deus voltar a morar em New Orleans”. Com uma trilha sonora magnífica como essa proporcionada pelo triunvirato Aaron Neville, Allen Toussaint e Joe Henry, duvido muito que Ele não se sinta em casa logo de cara.




















RUTHIE FOSTER

LIVE AT ANTONE´S
Mesmo quem não acompanha a cena musical texana, já deve ter ouvido falar de Ruthie Foster a essa altura do campeonato. Excelente compositora, ela é dona de um tremendo vozeirão que lhe permite passear com muita desenvoltura por gêneros tão diversos quanto blues, jazz, rock and roll e country music, Sempre criticada por não conseguir imprimir em seus (até agora) 7 LPs de estúdio o mesmo vigor e a mesma pegada fulminante de suas performances ao vivo, Ruthie decidiu que estava mais do que na hora de dar um cala-boca nesse pessoal. E acaba de lançar esse cd e dvd “Live At Antone's, gravado no inferninho número um de Austin, Texas. É uma dose cavalar de rhythm & blues e americana, onde abre espaço para apenas 3 canções suas, desfilando covers magníficos de canções de compositores amigos, como Patti Griffin ("When It Don't Come Easy"), Lucinda Williams ("Fruits of My Labor") e Sista Rosetta Tharpe ("Up Above My Head [I Hear Music in the Air]). É uma jovem artista excepcional, aqui num momento precioso de sua carreira. Quem ainda não conhece Ruthie Foster, pode começar a se iniciar por aqui. Não há contra indicações.


















ERIC BIBB WITH STAFFAN ASTNER

TROUBADOUR LIVE!
Quando surgiu com seus primeiros discos no início dos anos 1980, Eric Bibb foi rapidamente aclamado como o príncipe herdeiro do folk-blues e a grande esperança branca para a renovação do gênero numa cena onde havia cada vez menos espaço para ele. As razões disso não eram poucas. Eric vem de uma família musical até demais. Seu pai é o grande cantor e guitarrista Leon Bibb. Seu tio, o notável pianista John Lewis, do Modern Jazz Quartet. E seu padrinho musical, nada menos que o lendário cantor negro da Broadway, Paul Robeson, Depois de se escolar musicalmente na casa de seu pai, por onde circulavam os músicos mais influentes da cena novaiorquina, Eric seguiu para Paris, onde estudou música e permaneceu mais de 15 anos trabalhando como músico profissional. Voltou para a América só quando sentiu que havia finalmente mercado para seu trabalho. De lá para cá, já gravou mais de 20 discos – alguns na tradição do folk-blues, outros musicalmente mais variados e com instrumentação eletrificada. Nesse mais recente, gravado ao vivo num nightclub na Suécia, ele trabalha com um combo básico, toca guitarra acústica e divide a cena com o ótimo guitarrista elétrico Staffan Astner e com o trio vocal gospel Psalm4, num repertório que trafega por diversos gêneros, e que culmina com uma releitura muito original para “People Get Ready”, de Curtis Mayfield. Quem prefere Eric Bibb tocando apenas blues talvez torça o nariz para o ecletismo musical desse LP. Mas todos os que não acreditam em fronteiras nos terrenos musicais com certeza vão ficar extasiados com mais essa aventura musical desse artista notável.


















E G KIGHT

LIP SERVICE
Eugenia Gail Kight nasceu há 45 anos em Dublin, Georgia. É uma ótima guitarrista, uma compositora extremamente simpática e uma cantora com um frescor vocal que lembra tanto Bonnie Bramlett quanto Rita Coolidge em seus inícios de carreira. Trabalhou como sidewoman para muitos artistas de blues e country music até conhecer Koko Taylor em 1995, quando decidiu que seu lugar era na cena do blues e do rhythm & blues. De lá para cá já gravou 6 discos solo e ganhou uma penca de prêmios, mas infelizmente continua uma ilustre desconhecida para o grande público. Quem sabe esse novo “Lip Service” consiga reverter esse status. Com o suporte luxuoso de grandes músicos da cena de Atlanta, como Randall Bramlett, Paul Hornsby e Tommy Talton, ela voa alto numa seqüência impecável de faixas, onde as mais lentas – como “That´s How A Woman Loves”, “Somewhere Down Deep” e “It´s Gonna Rain All Night” – se sobressaem aos números rápidos. Assim como Bonnie Raitt e Susan Tedeschi, E G Kight é mais uma guitarrista ruiva com alma negra e um futuro brilhante pela frente que -- a julgar pela excelência deste “Lip Service” -- não deve tardar a chegar.

DISCOGRAFIA

LPs ARETHA FRANKLIN
Take A Look: Complete Aretha on Columbia (1962-1966)
I Never Loved A Man (1967)
Aretha Arrives (1967)
Aretha In Paris (1967)
Lady Soul (1968)
Aretha Now (1968)
I Say A Little Prayer (1969)
Soul 69 (1969)
Don´t Play That Song (1970)
Spirit In The Dark (1970)
This Girl´s In Love With You (1970)
Live At Fillmore West (1971)
Young, Gifted & Black (1971)
Amazing Grace (1972)
Hey Now Hey (1973)
Let Me In Your Life (1974)
With Everything I Feel In Me (1974)
You (1975)
Sparkle (1976)
Sweet Passion (1977)
Almighty Fire (1978)
La Diva (1979)
Aretha (1980)
Love All The Hurt Away (1981)
Jump To It (1982)
Get It Right (1983)
Who´s Zoomin´ Who (1985)
Aretha (1986)
One Lord, One Faith, One Baptism (1987)
Through The Storm (1989)
What You See Is What You Sweat (1991)
A Rose Is Still A Rose (1998)
Duets (2001)
So Damn Happy (2003)
This Christmas (2008)
A Woman falling Out Of Love (2011)
http://www.aretha-franklin.com/

LPs AARON NEVILLE
Tell It Like Is It (1967)
Mickey Mouse March (1986)
Warm Your Heart (1991)
The Grand Tour (1993)
Soulful Christmas (1993)
The Tattoed Heart (1995)
To Make Me Who I Am (1997)
Devotion (2000)
Believe (2003)
Nature Boy: The Standards Album (2003)
Christmas Prayer (2005)
Bring It On Home (2006)
I Know I´ve Been Changed (2010)
http://aaronneville.com/


LPs RUTHIE FOSTER
Crossover (1999)
Full Circle (2001)
Runaway Soul (2002)
Stages (2004)
The Phenomenal Rothie Foster (2007)
The Truth According To Ruthie Foster (2009)
Live At Antone's (2011)
http://www.ruthiefoster.com/

LPs ERIC BIBB
Rainbow People (1977)
River Road (1980)
Good Stuff (1997)
Me To You (1998)
Home To Me (1999)
Spirit & The Blues (1999)
Painting Signs (2001)
Just Like Love (2002)
Natural Light (2003)
Roadworks (2004)
Sisters And Brothers (2004)
Friends (2004)
A Ship Called Love (2005)
Diamond Days (2006)
Praising Peache: A Tribute To Paul Robeson (2006)
An Evening With Eric Bibb (2007)
Spirit That I Am (2008)
Get On Board (2008)
Rainbow People (2009)
Booker´s Guitar (2010)
Troubadour Live (2011)
http://www.ericbibb.com/

LPs E G KIGHT
Come Into The Blues (1997)
Trouble (2002)http://www.blogger.com/img/blank.gif
Southern Comfort (2003)
Takin’ It Easy (2004)
EG Live & Naked (2007)
It´s Not In Here (2008)
Lip Service (2011)
http://www.egkight.com/

PORTA RETRATOS

“Fui operada de câncer no pâncreas ano passado e achei que não iria sobreviver. Mas então, ao acordar da anestesia, vi ninguém menos que Stevie Wonder ao lado da cama, junto com minha família. Foi quando tive certeza de que iria conseguir dar a volta por cima.” (Aretha Franklin)

“Trabalhava no Porto de New Orleans quando meu compacto Tell It Like It Is explodiu nacionalmente em 1967. Logo imaginei: Estou Rico! Quando fui tentar receber meus royalties, a gravadora tinha acabado de pedir falência. Ou seja: alguém ficou rico no meu lugar. Não há nada mais frustrante que isso.” (Aaron Neville)

“Meu estilo musical é basicamente gospel, apesar de não cantar música religiosa, mas a música que eu toco trafega entre blues, soul, reggae e rock and roll. Espero que isso sirva como definição do meu trabalho. Se não, que sirva como uma carta de intenções.” (Ruthie Foster)

“Acho que os ingleses tem um papel vital nessa ressurreição do blues. Eles mantiveram a coisa viva quando ninguém se importava mais nos Estados Unidos. Então, de repente, tudo voltou. E muito forte. Hoje, blues é quase mainstream.” (Eric Bibb)

“Quando Koko Taylor escolheu uma das minhas canções para gravar em seu disco Royal Blue, eu quase enlouqueci de tanta felicidade” (E G Kight)

“Mesmo sem conseguir encarar uma tournée, confesso que estou muito feliz em voltar a cantar em Festivais como o de Montreal e o de New Orleans. Se der, quero poder voltar a trabalhar a todo vapor. Se não der, quero poder fazer um show aqui, outro acolá, de tempos em tempos. O que não quero é ficar parada.” (Aretha Franklin)

“As pessoas até hoje estranham o contraste entre a delicadeza da minha voz e esse meu jeitão de ex-estivador. Meu jeito de cantar é uma tentativa de trazer para a música negra o yodel que Roy Rogers e Gene Autry faziam em suas canções nos filmes que eu via quando era menino. Acabou saindo meio estranho, e deu no que deu.” (Aaron Neville)

“Sempre combino um set list com a banda, que é para não ser seguido. Serve apenas um porto seguro, caso não consigamos sentir a platéia da maneira certa. Mas felizmente nunca aconteceu da platéia não responder bem, ou de não conseguirmos estabelecer comunicação com ela.” (Ruthie Foster)

“Gosto de trabalhar com músicos estrangeiros. Tenho um guitarrista sueco e cantores sulafricanos em minha banda. Acho que, se saí de Nova York e ganhei o mundo apresentando minha música, nada mais coerente de que receber influências do mundo afora através de músicos. Tem uma comunidade fantástica deles em qualquer canto do mundo onde você vá.” (Eric Bibb)

“Eu não faço como muitos artistas amigos meus, que evitam ler críticas a seus trabalhos. Eu leio tudo. Acho importante. Tenho confiança na qualidade do meu trabalho, mas não posso abrir mão do feedback da crítica.” (E G Kight)

AMOSTRA GRÁTIS















Um comentário:

Anônimo disse...

a MATERIA SOBRE AS CANTORAS ESTA OTIMA , a aretha esta demais mas essa E G KGHT é a dilma pendurada numa guitarra, ate de vermelho ela esta falo na primeira foto da materia. nAO POSSO ME IDENTIFICAR PORQUE SOU UM FAMOSO ARTISTA JA DE CABELO CINZA ENQUANTO ELA TEM CABELO COR DE ABOBORA