quinta-feira, junho 09, 2011

CINCO FILHAS DE LILITH POEM FOGO NO DIA DOS NAMORADOS (por Chico Marques)


Todo mundo sabe -- está na Bíblia -- que, quando Deus criou Adão, Ele percebeu que Sua criação ali, sozinha, fora de qualquer contexto, não servia para grande coisa. Então, criou a mulher.

O nome da primeira mulher era Lilith. De personalidade forte, não se conformava em ter que ser subserviente a Adão e odiava ficar passeando pelada pelo Éden o dia inteiro sem ter absolutamente nada para fazer.

Lilith queria poder discutir sua relação com Adão, mas era imviável -- ele não queria de jeito nenhum. Na época, ainda não existia Terapia de Casais, e Deus era Intransigente e Tempestuoso demais para funcionar como Conselheiro. Adão era um horror. Cutruco como ele só, não dava a mínima para as reclamações de Lilith. Não se dava ao trabalho de discutir com ela, nem mesmo de discordar dela.

E então, um belo dia, cansada de ficar sempre por baixo sempre que pintava um rala e rola entre os dois -- outra de suas reclamações --, Lilith surtou e picou a mula dos Jardins do Éden. Deus, furioso, enviou 3 anjos meio bocós para seguí-la e trazê-la de volta. Pois não é que a danada da Lilith seduziu os três, fez deles anjos caídos, e os obrigou a viver na Terra a seu inteiro dispor, infernizando diariamente a vida de Adão e de sua nova mulher: uma criatura nada fogosa e totalmente desprovida de opiniões próprias chamada Eva...

Quase todas as referências a Lilith que existiam no texto original do Velho Testamento foram removidas durante o Concílio de Trento, por volta de 1560. Uma única referência escapou na revisão. Mas mesmo assim, Lilith sobreviveu no folclore de muitos povos, quase sempre associada às forças da natureza.

Na Babilônia, Lilith era uma Deusa da Noite, simbolizada pela Lua, muito querida pelo povo.

Para o povo hebreu, Lilith era uma parideira desenfreada que dava a luz diariamente a 300 crianças, além de ser também uma insaciável devoradora de homens, tão sedutora quanto castradora.

Para o Catolicismo da Idade Média, Lilith ganhou forma de serpente e de dragão, e simbolizava o mal.

Já na Mitologia Grega, ela é Hécate, uma demônia sedutora que guarda os Portões do Inferno e chega sempre montada num enorme cão de 3 cabeças.

E por aí vai...

O motivo de estar falando tanto disso aqui nesse texto sobre música é que, em meados dos anos 90, Lilith virou a inspiração para uma virada de mesa sensacional no showbiz pop americano -- que até então julgava “inadequado” uma atração feminina abrisse um show para outra atração feminina.

Quem iniciou o levante foi a cantora e compositora canadense Sarah McLachlan, que, no auge de sua popularidade, passou a exigir a contratação de artistas do sexo feminino para os promotores de suas tournées.

Como muitos se negaram a atendê-la, ela criou o Lilith Fair, um festival musical itinerante só com cantoras e compositoras que abrigava várias tendências musicais, e que foi um grande sucesso durante 3 ou 4 anos -- tempo suficiente para o showbiz rever alguns conceitos duvidosos e abrir mercado para muitas artistas do sexo feminino que estavam aguardando ansiosamente na fila por um lugar ao Sol.

As artistas de que vamos falar hoje ou são herdeiras diretas do legado do Lilith Fair -- Joan Wasser, Shannon McNally e Brandi Carlile --, ou tiveram suas carreiras revitalizadas graças ao poder de fogo do festival -- o caso de Sam Philips e Eliza Gilkyson.

Todas as cinco vieram dos quatro cantos da América, e são mulheres lindas, brigonas, admiráveis, extremamente talentosas e totalmente diferentes umas das outras.

O único traço que elas tem em comum é serem mulheres do tipo que Deus e Adão jamais aprovariam.






















ELIZA GiLKYSON
ROSES AT THE END OF TIME
Em seu filme “One Trick Pony”, de 1981, o cantor e compositor Paul Simon mostra a vida nada fácil de um artista veterano que está há muito tempo fora do foco da imprensa, mas, mesmo assim, nunca desiste de seguir estrada afora levando sua música para quem quiser ouvi-la. A longa carrera de Eliza Gilkyson tem um perfil semelhante. Aos 61 anos de idade, essa californiana razoavelmente bem conhecida na cena folk – mais como compositora do que como cantora --, se ressentia por nunca ter conseguido dar um passo muito além desse meio. De 2001 para cá, no entanto – desde que firmou base em Austin, TX, e passou a usar os serviços de seu filho Cisco como produtor --, o trabalho de Eliza Gilkyson começou a chamar a atenção de um público mais amplo e mais jovem. Em conseqüência disso, o tom de suas canções rejuveneceu também. Nesse seu novo LP, ela deixa os temas políticos meio de lado e apresenta um set de canções bem mais confessionais que o habitual, que vão do blues e do folk ao jazz e ao rock and roll, sempre com uma delicadeza ímpar e uma sensualidade arrebatadora. Se você não conhece Eliza Gilkyson, prepare-se para se apaixonar. “Roses At The End Of Time” tem esse poder.



















JOAN AS POLICE WOMAN
THE DEEP FIELD
Muitos compositores tem mania de fazer psicoterapia em suas canções, e isso costuma ser um tanto quanto aborrecido. Joan Wasser, no netanto, faz psicoterapia na cara dura em suas canções, e seu trabalho é tudo menos aborrecido. Uma das figuras mais inquietas da cena americana atual, essa violinista clássica, guitarrista, cantora, compositora e líder do grupo Joan As Police Woman brilhou forte em dois LPs excepcionais nos últimos anos: “Real Life”, sobre seu romance interrompido com Jeff Buckley, e “To Survive”, onde o tema recorrente é a relação com sua mãe, então recém falecida. Agora, aos 41 anos de idade, Joan está de volta com “The Deep Field”, mais uma incursão musical por esse blend curioso de soul music com indie rock que celebrizou a moça. É um trabalho bem mais arejado que os dois anteriores. Aqui, canções mais ou menos sombrias como “Flash” e “Down To Earth” contracenam com o altíssimo astral de números como “Nervous”, “Kiss The Espécifics”, “It´s Possible” e “Forever and a Year”. Sinal de que sua vida vai muito bem e a autoterapia está funcionando. Vamos torcer para que Joan não resolva dar alta para si própria de uma hora para outra. A julgar por “The Deep Field”, está tudo muito bem do jeito que está.



















SHANNON McNALLY
WESTERN BALLAD
Se Shannon McNally não existisse, seria preciso inventá-la. Essa bela novaiorquina de 38 anos formada em Antropologia pela NYU começou cantando e tocando seus blues e baladas informalmente nos nightclubs da cidade, até chamar a atenção de executivos ligados à Capitol Records em 2000. Lá, iniciou uma série de 7 LPs e 2 EPs onde passeia com galhardia por toda a musicalidade branca e negra do Sul e do Oeste dos Estados Unidos, desprezando fronteiras mercadológicas. Seus LP mais recente, “Western Ballad”, é certamente o melhor e mais ambicioso de todos. Com um repertório composto em parceria com o produtor Mark Bingham que aposta na diversidade musical, Shannon brilha com sua voz adorável mais uma vez em canções aparentemente desgarradas que, juntas, formam um “big picture” espetacular, resgatando a atmosfera dos discos clássicos de Gram Parsons gravados no início dos anos 1970. Impossível resistir ao charme cajun de “Tristesse Oubliée”, à melancolia country de “Rock and Roll Angel”, ao deleite soul de “Toast” e ao folk-pop etéreo de “High Western”. Como se isso não bastasse, a letra da faixa título é um belo poema de Allen Ginsberg que Bingham havia musicado anos atrás, mas ainda não tinha achado a voz certa para cantá-lo. Agora achou.



















SAM PHILIPS
CAMERAS IN THE SKY
Talvez vocês se lembrem de Sam Philips como a terrorista loura gelada do filme “Duro de Matar 3”, que faz “par romântico” com Jeremy Irons. Aquele foi talvez o maior mico da carreira de Sam Philips. Nascida há 49 anos em Glendale, California, ela começou gravando música cristã no início dos anos 1980 com seu nome verdadeiro, Leslie Philips. Em 1986, no entanto, cansou de todo aquele louvor e caiu na vida. Adotou seu apelido de infância, Sam, e recomeçou sua carreira na cena indie com um trabalho mais voltado para o acid-pop, contando com o aval precioso de amigos como Elvis Costello e Aimee Mann. Foi quando conheceu e se casou com o produtor musical T-Bone Burnett, seu parceiro em 5 LPs magníficos gravados para a Virgin e para a Nonesuch Aos poucos, conseguiu formar um público fiel na Inglaterra e no continente europeu, apesar de permanecer uma ilustre desconhecida na cena americana. Felizmente, ela já está mais do que conformada com isso, tanto que seu mais recente trabalho, “Câmeras In the Sky”, assumidamente low-budget, foi feito para ser comercializado somente pela web e em vinil. A voz aconchegante de Sam soa melhor ainda nessa moldura sonora menos carregada, ainda que extremamente melodiosa. “Câmera In The Sky” é mais uma coleção de canções envolventes e provocantes dessa loura nada aguada chamada Sam Philips, um dos tesouros (ainda) escondidos do pop angloamericano.



















BRANDI CARLYLE
LIVE AT THE BENAROYA HALL
Ninguém pode acusar Brandi Carlile de não correr riscos em sua carreira. Depois de ser considerada a grande revelação musical feminina de 2005 com seu disco de estréia -- e logo em seguida embarcar em duas aventuras musicais com produtores barra pesada como T-Bone Burnett e Rick Rubin --, ela agora volta num LP ao vivo com a Seattle Symphony Orchestra, redesenhando boa parte de seu repertório folk-pop num contexto musical mais classudo. É uma prova de fogo e tanto para a voz de Brandi, que nunca soou tão bela e contundente. Infelizmente, alguns excessos nos arranjos de orquestra provocaram baixas em canções outrora delicadas, como “Shadow On The Wall” e “Dreams”. Confesso que não consegui entender a intervenção vocal dos irmãos Tim e Phil Hanseroth -- sua banda --, numa versão de “The Sound Of Silence”, de Paul Simon, tão desnecessária quanto fora do contexto. Felizmente, Brandi salva tudo logo a seguir, fechando o set com uma releitura lindíssima de “Hallelujah”, de Leonard Cohen. Se quiserem um conselho, encerrem a audição por aí. É que o LP traz uma faixa secreta desastrosa: uma versão para piano e cello de “Forever Young”, hit abominável dos anos 1980. Cá entre nós, Brandi: cover do Alphaville, ninguém merece... Mas tudo bem, a moça é linda e talentosa e a gente perdoa.


PORTA RETRATO

“Acho engraçado a minha carreira ter começado a vingar depois dos 50 anos de idade. É uma sensação curiosa estar com 61 anos e ler artigos apaixonados pelo meu trabalho, como se eu fosse novidade. Dá um prazer enorme de estar viva. Não foi fácil chegar até aqui. Minha carreira foi interrompida diversas vezes, sempre à minha revelia. Fico feliz por nunca ter desistido.” (Eliza Gilkyson)
Align CenterAlign Center“O nome da minha banda é uma homenagem a Angie Dickinson, que fazia o seriado Police Woman na TV em meados dos anos 70. Eu não perdia um episódio. Dizia que, quando crescesse, queria ser uma mulher opulenta e intensa como Angie. Aí eu cresci.” (Joan Wasser)

“Adoro música. Para mim, é um elixir, você pode adicionar a ela o que quiser. Todos nós temos corações, e eles batem, e batem, e batem. Enquanto estamos vivos, fazemos sons o tempo todo. Isso é basicamente música. Música é apenas som.” (Shannon McNally)

“Essa idéia de oferecer assinatura do meu trabalho em vez de vender cds está indo bem. Ao longo desse primeiro ano, já produzi e entreguei aos assinantes do meu website 5 EPs e esse novo LP. Mas não sei se vou muito adiante com isso. Exige uma logística bastante complicada e onerosa. Não pretendo crescer como empresa. Quero apenas seguir adiante como artista.” (Sam Philips)

“Adorei trabalhar com T-Bone Burnett. A gente pensa que está indo para um lado e ele está conduzindo a gente para outro, completamente diferente. Ele é genial. Por onde ele passa, ele deixa um rastro de Tbone-ness(Brandi Carlile)

“Nunca imaginei que um dia iria ser popular no Canadá e na Inglaterra. Nunca imaginei que tantos artistas jovens iriam querer gravar minhas canções. Gosto de me sentir uma cidadã globalizada.” (Eliza Gilkyson)

“Sofri muito com a morte de Jeff Buckley, e mais ainda com a morte de minha mãe. Entrei em depressão, caí na bebida, me arrebentei toda, mas já purguei tudo o que me incomodava. Agora estou de volta, limpa e renovada.” (Joan Wasser)

“Eu adoro os escritores da beat generation. Tenho uma identidade muito forte com eles. Cantar uma canção feita a partir de um poema de Allen Ginsberg nesse novo LP foi a glória para mim.” (Shannon McNally)

“Eu sempre tive muita sorte em poder fazer todas as escolhas artísticas que achei necessárias ao longo da minha carreira. Mas, até por isso, e por não fazer concessões no meu trabalho, tenho certeza que não nasci para ser popstar.” (Sam Philips)

“As pessoas pensam em Seattle como uma cidade estritamente roqueira. Não é. É uma cidade que acolhe bem qualquer manifestação musical. Eu me sinto bem sendo uma artista do Noroeste americano. É uma honra.” (Brandi Carlile)



DISCOTECA

LPs ELIZA GILKYSON
Eliza Gilkyson (1969)
Pilgrims (1987)
Legends Of Rainmaker (1989)
Undressed (1994)
Redemption Road (1997)
Misfits (2000)
Hard Times In Babylon (2000)
More Than A Song (2002)
Land Of Milk & Honey (2004)
Paradise Hotel (2005)
Live From Austin TX (2007)
Your Town Tonight (2007)
Beautiful World (2008)
Roses At The End Of Time (2011)
http://www.elizagilkyson.com/

LPs JOAN AS POLICE WOMAN
Real Life (2006)
To Survive (2008)
The Deep Field (2011)
http://www.joanaspolicewoman.com/site/

LPs SHANNON McNALLY
Bolder Than Paradise (EP 2000)
Jukebox Sparrows (2002)
Run For Cover (2004)
Geronimo (2005)
North American Ghost Music (2006)
Live At The Jazz Fest (2007)
Coldwater (2009)
Western Ballad (2011)
http://shannonmcnally.com/

LPs SAM PHILIPS
Leslie Philips (1982)
Beyond Saturday Night (1983)
Dancing With Danger (1984)
Black & White In A Grey World (1985)
The Turning (1987)
The Undiscribable Wow (1988)
Cruel Inventions (1991)
Martinis & Bikinis (1994)
Omnipop (1996)
Fan Dance (2001)
A Boot & A Shoe (2004)
Don´t Do Anything (2008)
Cameras In The Sky (2001)
http://samphillips.com/

LPs BRANDI CARLILE
Brandi Carlile (2005)
The Story (2007)
Live At Neurmo’s (2007)
Give Up The Ghost (2009)
Live At The Benaroya Hall (2011)
http://www.brandicarlile.com/

AMOSTRA GRÁTIS















segunda-feira, junho 06, 2011

MANZAREK-ROGERS E TEDESCHI-TRUCKS: CAMARADAGENS MUSICAIS A TODA PROVA (por Chico Marques)


Uma teoria pessoal minha: o rock and roll só conseguiu sobreviver ao egocentrismo megalomaníaco que quase matou o gênero nos anos 1970 graças ao espírito de camaradagem herdado do pessoal do blues.

Ego de roqueiro é complicado. Sempre inflado demais e de difícil trato. O extremo oposto do ego do bluesman, que não está nem aí se alguém vai tentar roubar a cena dele no palco. Bluesman que é bluesman só quer saber de tocar, beber, se divertir, arrastar para casa alguma gostosona da platéia e, com um pouco de sorte, conseguir receber seu cachê depois do show.

Todos os grandes artistas de blues nunca negaram fogo para jovens músicos brancos. Muddy Waters, por exemplo, sempre deu acesso ao palco em seus shows aos então jovens e curiosos Paul Butterfield, Mike Bloomfield e Nick Gravenites. Existem fotos muito reveladoras -- e muito engraçadas -- de B B King chamando para o palco os então muito jovens guitarristas Eric Clapton e Jimi Hendrix -- ambos visivelmente acanhados com a honraria. É assim mesmo: músicos de rock and roll se assustam na hora de subir num palco de blues. Conhecem o poder de fogo musical dos negões e a facilidade com que improvisam em jams que podem durar 10, 15 minutos.

(cá entre nós: é altamente improvável que uma estrela de rock com o ego nas alturas e milhões no banco se disponha a correr o risco de fazer papel de bobo num palco onde jamais será figura principal, apenas um convidado)

Mas, mesmo assim, aos poucos o vírus do espírito colaborativo começou a se espalhar pela cena musical roqueira. Primeiro com as visitas à Inglaterra dos grandes mestres do blues americano, que adoravam contracenar com os músicos ingleses aficcionados no gênero, lá pelo final dos anos 1960. Depois, com o surgimento das primeiras jam bands americanas, como a Allman Brothers Band e o Grateful Dead. De repente, o medo de dividir o palco com músicos convidados em situações improvisadas se dissipou. Dos anos 1990 para cá, a camaradagem musical radicalizou, virando uma tendência irreversível -- quase uma regra -- na cena do rock and roll angloamericano.

A Allman Brothers Band, por exemplo, faz todo ano uma série de concertos no Beacon Theater, em Nova York, sempre no início de Maio, e tradicionalmente recebe todas as noites convidados especiais no palco. O Grateful Dead – agora simplesmente The Dead – é outro que vive constantemente em tournées sempre abrilhantadas por músicos de outras bandas que não resistem à tentação de passar bons momentos musicais ao lado deles. E tem ainda o Phish, a Dave Matthews Band, o My Morning Jacket, o Gov't Mule e dezenas de jam bands que nunca perdem uma oportunidade de encher seus palcos de amigos talentosos. Virou mania nacional.

Este é um momento curioso na cena musical americana, em que artistas antes avessos a jam sessions embarcam em projetos de colaboração meio que empurrados por uma tendência de mercado, e assim descobrem o prazer de improvisar em boa companhia.


É o caso de Ray Manzarek. Organista, pianista, compositor, arranjador e comandante dos Doors entre 1966 e 1973, ele esboçou um estilo musical calcado no blues e na música barroca que fornecia o tom de elevação que a poesia do frontman Jim Morrison pedia. Foi um sucesso estrondoso, como todos sabem. Quando Morrison morreu, Manzarek tentou seguir adiante com trabalhos solo muito autocentrados, que infelizmente não deram muito certo -- tanto que ele acabou optando por trabalhar apenas como produtor e arranjador.

Daí em diante, passou a separar seu trabalho como compositor -- fornecendo molduras musicais para poetas como Michael McGlure -- de seu trabalho como instrumentista -- sempre arrojado e dinâmico, mas invariavelmente vinculado a seu passado com os Doors. Convidado pelo exímio guitarrista (também) californiano Roy Rogers para se juntar à sua banda, Manzarek viu alí sua chance de fugir de uma armadilha – muito rentável, diga-se passagem -- que amordaçou sua carreira durante anos: a de ser o curador do espólio musical dos Doors. Não pensou duas vezes. Jogou os Doors para escanteio por uns tempos, desceu do pedestal e topou a brincadeira.


Não podia ter tomado uma decisão melhor. “Translucent Blues”, segundo LP que os dois gravam juntos, é tão bom e tão vigoroso que faz com que a colaboração anterior gravada 3 anos atrás pareça um simples aperitivo. Não é um disco de blues, como o título sugere, e sim um passeio musical por diversas vertentes do rock californiano, onde o passado de Manzarek nos Doors e a experiência de Rogers como comandante da banda de John Lee Hooker por quase 20 anos se unem numa alquimia musical perfeita. Não se assustem se “Game Of Skill” e “New Dodge City Blues” lembrarem números clássicos dos Doors, ou se “Hurricane” lembrar certas investidas de John Lee Hooker em “The Healer”. É tudo intencional mesmo. Mas o contexto é totalmente brincalhão e inusitado.

O espírito aventuresco impera em “Translucent Blues”. É no mínimo curioso ver os dois imitando George Benson e Brother Jack McDuff na faixa instrumental “Na Organ, a Guitar And A Chicken Wing”, ou reinventando padrões musicais que Lowell George e Bill Payne desenvolveram para o Little Feat em números funky como “Tension” e “Those Hits Just Keep On Coming”. Agora, que está desobrigado de comandar uma banda, Manzarek, aos 72 anos de idade, se diverte conspirando contra a seriedade e a sisudez de Rogers, que, aos 61 anos, tenta colocar um pouco de método na loucura musical de Manzarek. E os dois se divertem um bocado fazendo isso. E quem está escutando, também!


Já a associação musical entre Derek Trucks e Susan Tedeschi não é novidade para quem acompanha há alguns anos as carreiras desses dois craques da guitarra. Casados na vida real, era apenas uma questão de tempo até que decidissem unir também suas carreiras e bandas numa coisa só, já que um vinha integrando a banda do outro há algumas tournées.

Pois foi assim que surgiu a enorme Tedeschi Trucks Band, com nada menos que 11 integrantes, dentro do espírito de camaradagem musical da lendária banda americana Delaney & Bonnie & Friends -- uma empreitada que já estava em gestação nos últimos LPs solos de Derek Trucks, e que agora se consolida definitivamente.


Confinar Derek Trucks em um segmento musical sempre foi uma tarefa árdua. Dono de um estilo que desafia definições, esse jovem guitarrista de Jacksonville, Florida, com apenas 32 anos de idade já é responsável por uma discografia bastante sólida, com nove discos impressionantes lançados de 1997 para cá, além de dividir a cena com o veterano guitarrista Warren Haynes na linha de frente da lendária Allman Brothers Band -- banda da qual seu tio, Butch Trucks, fez parte na década de 1970.

Sua música é uma combinação demolidora de fogo, improvisação e delicadeza num blend musical único de rock, blues e jazz. E o que é mais impressionante -- para mim, pelo menos -- é que, em seus LPs solo, Derek parece estar sempre fugindo de fórmulas que tornem sua música mais simples de ser absorvida pelos fãs de seu trabalho na Allman Brothers Band -- que, diga-se de passagem, não reclamam dele jamais.

Susan Tedeschi é um caso tão interessante quanto o dele. Exímia guitarrista e compositora, essa bostoniana de 41 anos de idade foi, por muito tempo, prejudicada por possuir um timbre vocal muito semelhante ao de Bonnie Raitt. Só recentemente, quando gravou “Angel From Montgomery”, de autoria de John Prine, que havia sido um grande sucesso na voz de Bonnie Raitt, é que essa má impressão começou a se dissipar, e suas habilidades passaram a ser consideradas com menos ranhetice pela crítica.

E então, de LP em LP, e de tournée em tournée, Susan foi conseguindo forjar um público só seu, deixando claro que não está na cena musical a passeio. Em 1995, gravou seu primeiro trabalho para um selo não-independente – no caso, a Verve Records --, e desde então segue em alta tanto na cena do blues quanto na cena roqueira – eclipsando inclusive sua própria mentora, Bonnie Raitt.


“Revelator”, esse primeiro trabalho da Tedeschi Trucks Band, funciona como um mix entre o Soul de Memphis e o Blues do Delta do Mississipi, mas é também uma prova de fogo para esse casal de jovens músicos, que iniciaram suas carreiras bem cedo, aos 13 anos de idade. Cantar diante de uma banda tão grande, e com tantos metais, é novidade para Susan -- e ela se sai muito bem nessa empreitada. Conseguir encaixar seus dramáticos solos de guitarra slide em arranjos feitos para uma banda tão grande também é novidade para Derek -- e ele tira isso de letra com uma destreza comparável à de seu “tio” Duane Allman nas guitarradas hoje clássicas que promovia nos estúdios Muscle Schoals, sempre que era requisitado por artistas de soul music nos anos 1960.

Quanto à banda... bem, a banda é simplesmente impecável. Todos brilham por igual na enorme Tedeschi Trucks Band, o que é surprendente. E as canções são perfeitas. Enquanto "Don't Let Me Slide", "Simple Things" e "Shelter" passeiam com certa ternura pela vida cotidiana do casal, números mais perigosos como "Midnight In Harlem" e "Ball & Chain" revelam a barra pesada de se viver na estrada dois terços de cada ano. Se bem que, no final das contas, o que predomina são as canções de amor, como "Until You Remember", "Love Has Something To Say" e "Learn How To Love", todas com a delicadeza que é marca registrada do trabalho de Susan Tedeschi.

Acreditem, "Revelator" é um trabalho de colaboração precioso, que resgata em grande estilo o som atemporal da clássica banda do casal Delaney & Bonnie Bramlett. Definitivamente, um time de músicos que vale o quanto pesa.

Diante de todos os argumentos apresentados, eu diria que temos aqui dois perfis bem distintos de camaradagem musical.

A dobradinha de Ray Manzarek com Roy Rogers funciona como uma provovação musical entre dois músicos de backgrounds extremamente diferentes, que se divertem tentando achar um meio termo possível entre eles.

Já a dobradinha de Susan Tedeschi e Derek Trucks é um "labor of love" genuíno -- algo muito difícil de definir em palavras, mas com uma grandeza musical indiscutível.

Se camaradagem é sinônimo de troca, e troca sempre soma, o que podemos concluir é que todos os envolvidos -- Ray Manzarek, Roy Rogers, Susan Tedeschi e Derek Trucks, e nós também -- saem no lucro com esses dois LPs superlativos, muito inspirados, extremamente bem resolvidos, que deitam e rolam no espírito alegre e sempre colaborativo do blues.

Benvindos à festa.



PORTA-RETRATOS


“Um dos chaves para a música dos Doors ser tão boa é que nós tocávamos muito bem juntos, e ouvíamos uns aos outros extremamente bem. Nunca funcionamos na base do 'Cada um por si, aumente o volume, 1, 2 , 3, já!' Não, nós ouvíamos carinhosamente o que o outro estava tocando.” (Ray Manzarek)


"Quando estou tocando, a última coisa que passa na minha cabeça é se estou satisfazendo o público ou não. É um lance totalmente egoísta. E quanto mais perto você chega de se satisfazer plenamente com o que está tocando, mais universal é a sua maneira que você encontrou de se comunicar através da música.” (Roy Rogers)


“Nesses dois últimos anos, devo ter tocado perto de 300 noites – algumas com os Allmans, outras com Phil Lesh e muitas com a Tedeschi Trucks Band. A banda estava tinindo quando estávamos chegando a Chicago para uma série de shows. Daí, conseguimos reservar um bom estúdio e gravamos todo esse disco praticamente ao vivo no estúdio em poucos dias. Odeio quando a gravadora chega com um estúdio agendado e diz que temos que começar a gravar daqui a 10 dias. Nunca funciona direito. O certo é gravar quando a banda está realmente pronta para isso. Como fizemos nesse disco.” (Derek Trucks)


“Esse disco é como se fosse a aventura recente de nossas vidas. As canções foram quase todas compostas na estrada e falam de amor, proteção, esperança e até de descanso. Aliás, esse disco parece para mim uma seqüência de canções com temas correlacionados. É como se estivéssemos contando uma longa história em pequenos episódios aconchegantes de 4 ou 5 minutos cada. É assim que vejo esse disco, Revelator. Estou muito feliz por ter participado dele.” (Susan Tedeschi)


Paul Rothchild gostava de me irritar dizendo que o órgão de Riders On The Storm parecia cocktail jazz. Hoje, muitos anos mais tarde, trabalhando com Roy Rogers, penso naquilo e acho que ele até estava certo. Curiosamente, foi justamente essa levada cocktail lounge de alguns números dos Doors que ajudaram a banda a não ficar datada, e permanecer sempre atual.” (Ray Manzarek)


Ray Manzarek acha engraçado eu tê-lo chamado para trabalhar comigo sem nunca ter sido admirador do trabalho dos Doors, mas é a pura verdade. Nos anos 1960, eu estava completamente focado no blues, só ouvia Howlin' Wolf, Muddy Waters, John Lee Hooker, Bobby Blue Bland... Mas hoje eu ouço a música dos Doors com muita atenção e muito carinho.” (Roy Rogers)


“Cair na estrada dividindo a mesma banda com Susan Tedeschi é perfeito. Ia ser muito difícil para nós, individualmente, conseguir programar nossas tournées a ponto de conseguir fazer com que as paradas para descansar coincidissem. Agora isso está resolvido, e da melhor maneira possível. Ela é uma artista magnífica. É um privilégio estar ao lado dela em mais essa empreitada.” (Derek Trucks)


“Sinto que estou cantando cada vez melhor, até porque estou menos pressionada a desempenhar na guitarra agora que tenho na minha banda meu marido, Derek Trucks, que é simplesmente o melhor guitarrista deste mundo. Aliás, é uma honra fazer parte dessa banda maravilhosa.” (Susan Tedeschi)


DISCOGRAFIAS


















LPS RAY MANZAREK


The Doors (com The Doors 1967)
Strange Days (com The Doors 1968)
Waiting For The Sun (com The Doors 1968)
The Soft Parade (com The Doors 1969)
Morrison Hotel (com The Doors 1970)
L A Woman (com The Doors 1971)
Absolutely Live (com The Doors 1972)
Other Voices (com The Doors 1972)
Full Circle (com The Doors 1973)
The Golden Scarab (1974)
The Whole Thing Started With Rock & Roll (1975)
Nite City (com Nite City 1977)
An American Prayer (com The Doors 1978)
Alive She Cried (com The Doors 1979)
Carmina Burana (1983)
Love Lion (com Michael McClure 1993)
Atonal Head (2006)
Love Her Madly (OST 2006)
Ballads Before The Rain (com Roy Rogers 2008)
Live In Vancouver, 1970 (com The Doors 2010)
Translucent Blues (com Roy Rogers 2011)
http://www.raymanzarek.us/


















LPS ROY ROGERS


Chops Not Chaps (1986)
Slidewinder (1988)
Blues On The Range (1989)
Roy Rogers & Norton Buffalo (com Norton Buffalo 1991)
Traveling Tracks (com Norton Buffalo 1992)
Slide Of Hand (1993)
Slide Zone (1994)
Rhythm & Groove (1996)
Pleasure + Pain (1998)
Everybody´s Angel (1999)
Roy Rogers & Shana Morrison (2001)
Slideways (2002)
Roots Of Our Nature (com Norton Buffalo 2002)
Live At The Sierra Nevada Big Room (2004)
Ballads Before The Rain (com Ray Manzarek 2008)
Split Decision (2009)
Translucent Blues (com Ray Manzarek 2011)
http://www.roy-rogers.com/


















LPS DEREK TRUCKS


The Derek Trucks Band (1997)
Out Of The Madness (1998)
Peakin´ At The Beacon (com Allman Bros. 2000)
Joyful Noise (2002)
Hittin´ The Note (com Allman Bros. 2003)
Soul Serenade (2003)
Live At Georgia Theatre (2004)
One Way Out (com Allman Bros. 2004)
Songlines (2006)
Already Free (2009)
Roadsongs (2010)
Revelator (com Tedeschi Trucks Band 2011)
http://www.derektrucks.com/


















LPS SUSAN TEDESCHI


Just Won't Burn (1998)
Better Days (1998)
Wait For Me (2002)
Live From Austin TX (2004)
Hope & Desire (2005)
Back To The River (2008)
Revelator (com Tedeschi Trucks Band 2011)
http://www.susantedeschi.com/





AMOSTRAS GRÁTIS













quarta-feira, junho 01, 2011

BENVINDOS DE VOLTA À INVASÃO BRITÂNICA, COM SEUS ANFITRIÕES: THE KINKS E THE ZOMBIES (por Chico Marques)


A tournée mundial de Paul McCartney, que passou recentemente por São Paulo e pelo Rio de Janeiro, serviu para revelar uma faceta bastante irritante no comportamento de seus admiradores mais fervorosos.

Ao longo dessas quatro décadas que nos separam do momento fatídico em que os Beatles anunciaram que iriam pendurar as chuteiras, a beatlemania vem-se transformando pouco a pouco numa modalidade de idolatria muito semelhante ao lulismo, na medida em que, segundo seus adeptos mais fundamentalistas, ela inicia e encerra em si mesma, desprezando um fenômeno musical muito maior no qual está historicamente inserida: a British Invasion.

A British Invasion foi, na verdade, a mais eloqüente resposta dos ingleses aos americanos desde que foram postos para correr de volta ao Velho Continente durante a Revolução Americana de 1776. Obviamente, não ficou restrita aos Beatles. Junto com eles, vieram os Rolling Stones, o Who, os Yardbirds, os Small Faces, o Them, os Animals, e – entre muitos outros – os Kinks e os Zombies. Uma explosão de talentos que ajudou a mudar a cara da música popular e da Indústria Fonográfica – e que, sintomaticamente, inexistem no imaginário e nos iPods de mais de noventa por cento dos beatlemaníacos mais febris.
Cá entre nós: qualquer um que vá a um show de Paul McCartney nos dias de hoje segurando uma plaquinha com a sílaba NA -- isso quase 50 anos após a explosão da British Invasion nos Estados Unidos --, com certeza não faz a menor idéia do cataclisma que aquilo tudo causou no início dos anos 1960. Havia então uma cena musical dominada por produtores-compositores, como Burt Bacharach e Phil Spector, que moldavam os artistas que lançavam ao material e às tendências que criavam para o mercado. Tanto que, para conseguir ter acesso a ele, tanto os Beatles quanto os Rolling Stones, malandramente, aportaram na América em 1964 para suas primeiras tournées jogando pelas regras dele – ou seja: apresentando repertórios de covers com sotaque britânico de composições americanas bem conhecidas. Enquanto os Beatles passeavam pelo repertórios de Buddy Holly, Carl Perkins e de girl bands como as Shirelles e as Ronettes, os Stones preferiam rever sucessos de artistas de rhythm & blues como Solomon Burke, Marvin Gaye, Chuck Berry e Muddy Waters, dando a eles roupagens musicais inusitadas.

A princípio, a Indústria Fonográfica Americana não se assustou muito com a chegada dos ingleses. Acharam que seria uma moda passageira, como tantas outras. Mas, na segunda tournée dos Beatles e dos Rolling Stones pelos Estados Unidos no ano seguinte, as duplas de compositores Lennon & McCartney e Jagger & Richards já estavam devidamente estabelecidas no mercado, com vários singles nos primeiros postos das paradas. Chegava ao fim a era dos produtores-compositores e começava a era dos cantores-compositores. De uma hora para outra, toda a estrutura da produção musical estava de ponta cabeça, e nada mais foi como era antes.
Claro que os Beatles e os Rolling Stones tinham a vantagem de ser mais universais que as outras bandas que vieram no tsunami da British Invasion. O Who e os Small Faces, por exemplo, faziam a apologia do estilo de vida mod, um fenômeno tipicamente inglês que o resto do mundo não compreendia bem. Os Animals e o Them imprimiam no rhythm & blues deles toda a fúria e o inconformismo das classes operárias inglesas e irlandesas. Já os Zombies se pautavam por melodias pop envolventes que incorporavam elementos jazzísticos e música erudita, antecipando tendências que seriam melhor digeridas anos adiante, com o surgimento do rock psicodélico. E os Kinks... bem, os Kinks se divertiam muito satirizando os costumes ingleses e esculhambando com a Família Real Britânica – assuntos em princípio pouco atraentes para quem não vivia no Reino Unido.


O motivo de estarmos falando disso é que não é só Paul McCartney que continua com tudo em cima, com essa vitalidade invejável que demonstrou no Morumbi e no Engenhão. Os Rolling Stones também estão muito bem, vão sair em tournée mundial novamente no ano que vem comemorando 50 anos de carreira com direito a disco novo e tudo mais. O Who é outro que se prepara para uma tournée ano que vem – talvez com disco novo, mas, certamente, com a tão aguardada autobiografia que Pete Townshend finalmente nas vitrines das livrarias. Já os Kinks estão entrando em estúdio nos próximos meses para gravar seu primeiro LP com material inédito desde “To The Boné”, de 1994. E, para completar o quadro, os Zombies acabam de sair do estúdio, e estão lançando “Breathe Out Breathe In”, o primeiro disco de inéditas da banda desde “Odessey & Oracle”, seu épico pop de 1968.

Comecemos pelos Kinks. Logo que surgiram em 1964, emplacaram uma série de singles vitoriosos na Pye Records, como “You Really Got Me” (1965), que forneceu o aval para que a Reprise Records adquirisse a exclusividade de seus LPs e singles para lançar nos Estados Unidos. Infelizmwnte, num golpe de azar deflagrado por uma confusão até hoje mal explicada nos vistos de trabalho dos integrantes da banda em sua primeira tournée americana, os Kinks ficaram impedidos de pisar em solo americano por quatro anos. Isso afetou o desempenho de vendas dos LPs da banda na América, levando os irmãos Ray e Dave Davies a focar seu trabalho no público europeu, ainda que a contragosto. Mas mesmo sem tournées, álbuns como “The Village Green Preservation Society” e “Arthur” tiveram uma acolhida calorosa na América, e Ray Davies passou a ser visto como um gênio pop, uma espécie de Noel Coward da Era Psicodélica. Howard Kaylan e Mark Volman, do grupo californiano The Turtles, por exemplo, não sossegaram enquanto não gravaram um de seus discos em Londres, pois faziam questão que fosse produzido por Ray Davies.

Os Kinks voltaram a fazer tournées pelos Estados Unidos só em 1970, a reboque do sucesso internacional de “Lola” -- sobre um inglês insuspeito que se sente muito melhor vestido como mulher, mais ou menos como o cartunista Laerte --, e finalmente emplacaram nos primeiros postos das paradas de lá. Viraram fregueses, e passaram a voltar por lá todo ano, enquanto seguiam pelos anos 1970 produzindo LPs conceituais sempre muito bem humorados para a RCA, e depois, já na Era Punk, apostando em projetos mais urgentes e pesados para a Arista Records. Foram apagando aos poucos ao longo dos anos 1980, até decidirem encerrar atividades como banda em 1996. Mas Ray Davies continuou em frente. Dirigiu e escreveu para o cinema, casou-se com Chryssie Hynde e ajudou o produtor musical Bill Flanagan a esboçar a série de TV “VH1 Storytellers”, sendo o primeiro a se apresentar por lá. Recentemente, lançou dois LPs solo muito festejados com material inédito de primeira, mantendo seu prestígio criativo intacto.




Enquanto prepara novas novas canções para o tão aguardado LP de retorno dos Kinks, Ray Davies dedicou-se a dois projetos de ocasião extremamente simpáticos, onde recicla com muita dignidade o velho repertório dos Kinks. O primeiro deles é espetacular: “The Kinks Choral Collection”, onde regrava clássicos da banda com coral, banda e uma orquestra de câmara. Já o segundo projeto pretende ser, antes de mais nada, simpático e divertiodo: “See My Friends” também resgata o repertório clássico nos Kinks, mas em outro contexto -- vem repleto de duetos com amigos como Bruce Springsteen, Jackson Browne, Alex Chilton, Billy Corgan, Lucinda Williams e vários outros. Esses dois songbooks dos Kinks servem como introduções ao trabalho brilhante de uma banda que demorou a cair no gosto do grande público porque nunca facilitou as coisas além do limite do artisticamente aceitável.


Quanto aos Zombies, dizer que a música deles sempre esteve muito além do seu tempo equivale a chover no molhado. Quando o grupo surgiu num subúrbio londrino em 1961, não havia nada remotamente semelhante a eles em toda a Inglaterra. O piano e o órgão Hammond B-3 bem jazzísticos de Rod Argent pareciam ter sido feitos sob medida para emoldurar a voz delicada e cristalina de Colin Blunstone. E a alquimia resultante disso gerou logo de cara singles curiosos como “She´s Not There” e “Tell Her No” – que, por mais estranhos que fossem para a época, conseguiram pegar carona na British Invasion e acabaram emplacando nas paradas americanas, mesmo tendo passado quase despercebidos nas paradas inglesas. A maldição dos Zombies é que eles não conseguiam ser uma banda de singles. Eram arrojados demais para o hit parade britânico. Deram o azar de surgir numa época em que havia a obrigação de emplacar singles nas paradas para poder realizar um LP.

Depois de uma série de singles que infelizmente não emplacaram nas paradas, os Zombies foram descartados pela Decca Records. gravadora. Rod Argent e Colin Blunstone, desanimados, reuniram os membros da banda e decidiram que gravariam só mais um LP. Assinaram um contrato bem xinfrim com a Columbia, que repassou para eles uma verba quase ridícula, que os impedia até de contratar músicos adicionais para o projeto -- tanto que Argent teve que emular os arranjos da orquestra num mellotron, algo inédito na época. O descaso da Columbia para com eles era tamanho que ninguém se preocupou em enviar alguém para supervisionar o trabalho dos rapazes. Resultado: sem qualquer compromisso em emplacar um LP de sucesso, os Zombies produziram “Odessey & Oracle” (1967), uma pequena obra prima pop psicodélica, que acabou lançada sem publicidade na Inglaterra e por pouco não teve uma edição americana. Se Al Kooper, fã de banda e também contratado da Columbia, insistindo tanto, "Odessey & Oracle" nunca teria cruzado o Atlântico.


Então, o inusitado ACONTECE: quase dois anos após o lançamento do LP, com todos os membros da banda já trabalhando em outros projetos, alguém na Columbia americana decide lançar “Time Of The Season”, uma das canções de “Odessey & Oracle”, no formato single, e a música explode misteriosamente nas paradas do mundo todo. A saia justa dos integrantes dos Zombies foi terrível, pois nenhuma dos integrantes originais dos Zombies pretendia voltar atrás na decisão de aposentar a banda. Rod Argent já tinha montado o Argent, banda progressiva de muito sucesso nos anos 70, e Colin Blunstone estava gravando seu primeiro disco solo. Pela primeira vez na história da música popular, uma banda chegava ao seu apogeu dois anos depois de ter saído de cena.

Nos anos 1980 e 1990, Rod Argent e Colin Blunstone voltaram a contracenar em diversas ocasiões. Argent firmou-se como produtor de sucesso, ajudando a viabilizar as carreiras de vários artistas ascendentes, como Tanita Tikaram e Jules Shear, enquanto Blunstone seguiu com LPs solo sempre muito bem recebidos por crítica e público. Até que, em 2000, inventaram de gravar um disco juntos. E esse disco fluiu tão bem que os dois, saudosos dos velhos tempos, decidiram ressucitar os Zombies para uma pequena tournée de 6 datas. Que acabou durando mais de 10 anos, num sinal claro de que a velha sintonia entre os dois velhos parceiros permanecera inabalada depois de tantos anos.


Só agora Rod Argent e Colin Blunstone tomaram coragem para lançar um LP repleto de canções inéditas. “Breathe Out, Breath In” é impecável, composto inteiramente de canções deliciosas que eles andaram testando ao vivo nos shows. Não pretende em momento algum atualizar a sonoridade dos Zombies e muito menos recomeçar de onde “Odessey & Oracle” parou. Na verdade, funciona como um registro de como Argent e Blumstone pensam e agem musicalmente nos dias de hoje. “Breathe Out, Breath In” traz baladas pop lindíssimas, como a homenagem aos Beach Boys “Shine On Sunshine” e a barroca “Let It Go”, àmoda do Procol Harum. Que se contrapõem a números mais suingados como “Play It For Real” e “Any Other Way”, além da faixa título, simplesmente magnífica. Não é nenhum exagero afirmar que desde “Before We Were So Rudely Interrupted” (1977), dos Animals, não se via um LP de retorno de uma banda clássica tão honesto e íntegro quanto este. “Breathe Out, Breath In” é tudo isso, podem ter certeza. Isso para não dizer que é um prazer ver uma banda tão vital quanto os Zombies – que influenciou bandas seminais como The Doors e Steely Dan – voltando à cena com tamanha leveza e galhardia.


Diante de toda a vitalidade e criatividade demonstrada nesses novos trabalhos desses veteranos da cena inglesa dos anos 1960, é totalmente inaceitável que a beatlemania queira agora se afirmar através dos fan-clubs como um fenômeno isolado e desconectado dos diversos outros fenômenos artísticos da British Invasion.

Verdade seja dita: bandas como os Zombies e os Kinks só não tiveram o mesmo apelo de público dos Beatles porque uma série de circunstâncias adversas não permitiram.

Queiram ou não, gostem ou não, os Beatles pertencem a um contexto histórico e artístico muito bem definido, histórica e artisticamente. E nunca estiveram sozinhos. Sempre estiveram em ótima companhia.

Querer negar isso é tão inócuo e tão ridículo quanto ir a um show de Paul McCartney segurando uma placa com a sílaba NA para participar de uma coreografia idiota para “Hey Jude” digna de um desenho do Gasparzinho. Pronto, falei.





HIGHLIGHTS - Ray Davies
The Kinks Choral Collection - See My Friends






HIGHLIGHTS - The Zombies
Breathe Out, Breathe In