domingo, março 12, 2006

Não é isso aí... (por Arthur Dapieve para NoMínimo)


No momento em que seu dueto com Ana Carolina na fraca versão da cantora para “The blower’s daughter”, de Damien Rice, é nauseantemente onipresente nas rádios, Seu Jorge tem lançado no Brasil um álbum inteiro de suas próprias versões para músicas de David Bowie: “The life aquatic studio sessions featuring Seu Jorge” (Universal). É um disco curioso: agradável de se ouvir e, por vezes, irritante de se prestar atenção.

Seis das 13 versões foram incluídas na trilha sonora do quase homônimo filme de 2004, dirigido por Wes Anderson e estrelado por Bill Murray, como o oceanógrafo Steve Zissou. Nele, Seu Jorge também atuava como ator, no papel do marinheiro Pelé dos Santos. Nas músicas do CD, o brasileiro interpreta clássicos como “Ziggy Stardust”, “Life on Mars?” e “Changes” em português. De quebra, a 14ª faixa do álbum é uma canção original sua, a divertida “Team Zissou”, que, apesar do título, também é cantada em português.

Versões noutras línguas constituem grandes desafios. Não é raro que o resultado seja sofrível, como, por exemplo, em muitas das letras em inglês para Tom & Vinicius. Afinal, é difícil manter a musicalidade e, ao mesmo tempo, o sentido. Seu Jorge fez a opção preferencial pela sonoridade, criando versos que nada têm a ver com os de Bowie. A única versão cujo significado da letra tem algo a ver com o da escrita pelo inglês, “Starman”, aliás, nem é de Seu Jorge: é a conhecida “O astronauta de mármore”, feita por Thedy Correa, Sady Homrich e Carlos Stein, do grupo gaúcho Nenhum de Nós, em 1989. As notas do CD não dizem isso claramente: há apenas um “Seu Jorge thanks: Nenhum de Nós”.

Consta do encarte, também, uma declaração de Bowie: “Se Seu Jorge não tivesse gravado acusticamente minhas músicas em português eu nunca teria escutado este novo nível de beleza com o qual ele as imbuiu”. Suponho que Bowie não entenda português ou tenha tido acesso a traduções para o inglês das letras em português. Porque as versões ficaram bonitas desde que não se preste atenção às letras e/ou se desconsidere que aquelas mesmas melodias foram um dia casadas com letras bem distintas (e superiores) em inglês. Se uma destas condições for preenchida, aí, sim, claro, Seu Jorge as interpreta e toca bem ao violão.

Suas versões, porém, banalizam quase todas as letras em histórias de amor, nas quais, escancarada ou oculta, a primeira pessoa do singular tem presença fortíssima. Dói ouvir, em “Ziggy Stardust”, versos como “Não vou misturar/ Cachaça e café/ Só pra te agradar/ Assim me sinto bem/ Não devo a ninguém”. Como? Um extraterrestre que se torna astro de rock cinco anos antes do fim do mundo? Quem?! Não, Seu Jorge não o conhece.

Isso não impede que, justamente na faixa “Five years”, ele tenha se saído melhor na tradução livre. Não por ter sido fiel a Bowie, mas por ter sido, ao menos, fiel ao filme “A vida aquática de Steve Zissou”. A nova letra diz: “Muito tempo eu fico/ A viver pelos mares/ Mergulhando pro fundo/ Em recifes e corais/ Minha missão nesse mundo/ É pesquisar animais/ Mergulhando no escuro/ Com perigos reais”.

Contudo, em quase todas as versões há apenas a substituição das palavras de Bowie por alguma coisa que soa parecido em português. “Rebel rebel”, por exemplo, virou “zero a zero”. É tanto mais curioso que Seu Jorge tenha mexido assim nas letras porque ele foi extremamente respeitoso com as músicas. Seus arranjos voz-e-violão conservam as linhas mestras dos originais. Nada têm de inusitados.

Na minha opinião, a melhor das faixas a desconectar-se da letra original é “Changes”. Em Bowie, escutava-se: “Ch-ch-cha-cha-changes/ Ch-ch-changes/ Don’t have to be a richer man/ Ch-ch-cha-cha-changes/ Ch-ch-changes/ Don’t want to be a better man/ Time may change me/ But I can’t trace time”. Em Seu Jorge, escuta-se: “Ch-ch-cha-cha-changes/ Lá vem meu trem, vem meu trem/ Tou saindo fora porque vou me dar bem/ Ch-ch-cha-cha-changes/ Lá vem meu trem, vem meu trem/ Sei que tá na hora e eu vou me dar bem/ Sempre em frente/ Nunca para trás”. Funciona. E a interpretação é pungente, cativante.

Se é fácil, pelo conhecimento prévio das melodias e pela singeleza das novas letras, ficar cantarolando as faixas de “The life aquatic sessions featuring Seu Jorge”, o mesmo não se pode dizer dos outros discos do cantor. Cantarole uma composição de Seu Jorge aí, vai...

E olhe que ele parece estar sempre nos lugares certos: ex-membro do cultuado Farofa Carioca, ator em “Cidade de Deus”, membro da ainda mais cultuada Orquestra Imperial, ator de “A vida aquática de Steve Zissou”, chapa de Bill Murray, tema de documentário da BBC, em luta incansável contra o racismo e o preconceito social. Seu Jorge tem ampla visibilidade, aqui e no exterior. Há quem diga ser ele “o verdadeiro Rodrigo Santoro”, isto é, ser ele o ator brasileiro de fato importante lá fora. Sua música, entretanto, é curiosamente invisível, como se ele fosse mais personagem do que criador.

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