sexta-feira, setembro 29, 2017

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE OS NOVOS DISCOS SOLO DE RAY DAVIES E DAVE DAVIES, DOS KINKS.

por Chico Marques


Muita gente não consegue entender porque Ray Davies e Dave Davies, os irmãos que formavam a grande dupla de compositores e a linha de frente do grupo londrino The Kinks, não conseguem se entender mais. Se os dois sempre tiveram uma relação turbulenta, e se essa turbulência sempre serviu para alimentar a banda em termos criativos, o que foi que aconteceu? Porque a química deixou de funcionar entre eles?

Se engana quem pensa que Ray e Dave Davies estão rompidos. Não estão. Só não querem mais trabalhar juntos. Quando aposentaram a banda 1994 com o disco "To The Bone", uma espécie de "Unplugged" com seu repertório clássico, Ray chegou a comentar que eles não tinham mais o que dizer, e que não fazia sentido seguir gravando coisas simplesmente por gravar. Vindo de um artista pop que sempre se preocupou em ser relevante e fazer a diferença, acreditem: não são palavras vãs.  



Desde que começaram a trabalhar juntos em 1964, The Kinks emplacou uma sequência demolidora de singles na Pye Records, como “You Really Got Me” (1965), cujo sucesso na Europa forneceu o aval necessário para que a Reprise Records negociasse com a Pye a exclusividade de lançamento de seus LPs e singles no mercado americano.

Infelizmente, The Kinks se meteram numa confusão diplomática até hoje mal explicada, e por conta disso a banda perdeu o direito a tirar vistos de trabalho para tocar nos Estados Unidos entre 1965 e 1969, o que atrapalhou sensivelmente os esforços da Reprise em promover melhor seus discos, levando os irmãos Ray e Dave Davies a fazer tournées apenas no Continente Europeu e no Japão, onde sempre foram muito populares.

Mas eles queriam mesmo é emplacar na América. Mesmo sem tocar por lá, os discos dos Kinks vendiam bem por lá. “The Village Green Preservation Society” e “Arthur” tiveram uma acolhida calorosa no Top 40 da Billboard, e Ray Davies passou a ser visto como um uma espécie de Noel Coward da Era Psicodélica. Howard Kaylan e Mark Volman, do grupo californiano The Turtles, por exemplo, não sossegaram enquanto não gravaram um dos discos da banda em Londres, pois faziam questão que fosse produzido por Ray Davies.



Os Kinks voltaram a fazer tournées pelos Estados Unidos só em 1970, a reboque do sucesso internacional de “Lola” -- sobre um inglês insuspeito que se sente muito melhor vestido como mulher, mais ou menos como acontece com o cartunista Laerte --, e finalmente emplacaram nos primeiros postos das paradas e ganharam discos de ouros e projeção mundial através de um contrato com a RCA International. Na medida em que chegavam na América no exato momento em que os Beatles saíam de cena, não hesitaram em tirar proveito disso para ganhar espaço na imprensa.   

Viraram estrelas, passaram a viver metade no ano de cada lado do Atlântico e seguiram pelos anos 1970 produzindo LPs conceituais sempre muito bem humorados, como os festejados "Preservation Act #1 & #2", "Soup Opera" e "Schooboys In Disgrace". Em 1976, já em plena Era Punk, assinaram com a Arista Records e deixaram os projetos conceituais de lado para apostar em discos bem urgentes. A ideia era evitar ao máximo que a banda fosse estigmatizada pelos punks, que faziam campanhas declaradas contra superbandas veteranas como o Yes e o Pink Floyd.



  Foram apagando pouco a pouco ao longo dos anos 1980, com as vendas de seus discos caindo a cada novo lançamento, apesar dos shows da banda continuarem com um público excepcional.

Mas era um público com motivações nostálgicas, sem o menor interesse em qualquer coisa nova que a banda quisesse apresentar.

Então Ray chegou à conclusão que os Kinks já tinham cumprido sua missão e que encerrar as atividades da banda e partir para algo diferente eram as coisas certas a fazer.



E Ray e Dave Davies seguiram em frente.

Ray dirigiu e escreveu para o cinema, ajudou o produtor musical Bill Flanagan a esboçar a série de TV “VH1 Storytellers”, lançou dois LPs solo muito festejados com canções inéditas de primeira grandeza, e ainda achou tempo para escrever "X-Ray", sua divertidíssima "autobiografia não-autorizada", e "Americana", um livro de memórias sobre seus anos recentes vivendo na America.

Já Dave focou mais na música, montou uma banda com seu filho Russ e já gravou 15 discos solo -- 12 desde o fim dos Kinks. Seu website é uma verdadeira central musical, e distribui os audios de vários concertos de sua banda. Seu trabalho é extremamente bem divulgado em várias plataformas pela web. 

Do início de 2017 para cá, tanto Ray quando Dave surgiram com novos trabalhos solo tão bons, tão vitais, e ao mesmo tempo tão distantes um do outro, que parece não fazer o menor sentido bater na velha tecla de que eles precisam voltar a trabalhar juntos.Ainda mais ao vê-los seguindo caminhos artísticos tão diferentes.



"Americana" é o primeiro álbum de material inédito de Ray Davies em uma década, e é baseado em trechos de suas memórias, só que está longe de ser uma "sentimental journey". Pelo contrário: as canções, todas autobiográficas, falam sobre suas aventuras e desventuras do lado de cá do Atlântico. Tem momentos assustadores, como "The Invaders", que lembra a recepção hostil à banda em sua primeira visita à América em 1965. Mas na maior parte das canções o cinismo habitual de Ray Davies dá o tom, e a excelente e veterana banda The Jayhawks se encarrega das texturas musicais que oscilam entre o country rock, o pop rasgado e até um pouco de blues e jazz. As canções estão encadeadas de uma maneira extremamente envolvente, mas dá para destacar um belo dueto com Karen Grotberg em "A Place in Your Heart" e ainda "Silent Movie" sobre conversas que ele tinha com seu vizinho, o saudoso roqueiro errante Alex Chilton, quando ambos moraram em New Orleans. Que venha um "Americana II" com outras histórias pinçadas de suas memórias, pois o olhar estrangeiro de Davies para as idiossincrasias da América pode até ser generoso, mas está longe de ser carinhoso. 



Já seu irmão mais novo, o prolífico e incansável guitarrista Dave Davies, uniu forças (pela terceira vez) com seu talentoso filho Russ e juntos prepararam esse delicioso "Open Road", onde números elétricos mais climáticos convivem pacificamente com números acústicos e temas com uma levada mais ambiental. Ecos musicais dos Kinks são inevitáveis, já que Dave sempre foi o maestro da banda e seu filho foi escolado musicialmente nos "pet sounds" esboçados pelo pai. Sem contar que Dave está cantando melhor do que nunca, tocando melhor do que nunca e se divertindo um bocado fazendo o que mais gosta de fazer. Os arranjos e o
excelente trabalho de produção de Russ são nada menos que impecáveis, e sequenciam essas novas canções (que falam tanto do passado quanto do futuro) como uma espécie de disco conceitual sobre amadurecer, envelhecer e aprender a conviver com a fragilidade da vida. É sempre bom lembrar que Dave teve um AVC dose anos atrás, que por pouco não o tirou de cena em definitivo. As primeiras três canções — “Path Is Long”, “Open Road” e “I Don’t Want To Grow Up” -- já mostram claramente que Dave Davies ainda tem muito fogo para queimar.

Ou seja: mesmo separados, falando-se muito pouco e seguindo por trilhas musicais quase diametralmente opostas, os irmãos Ray e Dave Davies seguem em frente unidos por um "labour of love" que foi lapidado ao longo de mais de 50 anos de trabalho contínuo. Diante disso, só me ocorre dizer uma frase que já virou clichê:

"Long Live The Kinks"






















CHICO MARQUES
é comentarista,
produtor musical
e radialista
há mais de 30 anos,
e edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO
e o blog musical
ALTO & CLARO 



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