sexta-feira, maio 20, 2011

TRÊS MULHERÕES: EMMYLOU HARRIS, LUCINDA WILLIAMS E RORY BLOCK (por Chico Marques)


Existe um bom motivo para que artistas tão diferentes quanto Robert Altman, Edward Albee e Woody Allen gostem de contrapor mulheres em números ímpares sempre que promovem investigações sobre o sexo feminino.

Todos aprenderam com Anton Chekhov que o universo feminino é rico e multifacetado demais para caber em números pares. E também complexo ou confuso demais para ser revelado por inteiro num simples contraponto entre duas mulheres.

Essa conversinha mole é só para introduzir três mulheres maduras, brigonas, e com carreiras musicais muito sólidas. Que, apesar de toda a bagagem que ostentam, não cansam de se reinventar de tempos em tempos, e insistem há várias décadas em se afirmar artisticamente num meio que demora muito até finalmente levá-las a sério.

Emmylou Harris, a primeira delas, oscila há mais de 40 anos entre sua alma country e seu coração rock and roll.

A segunda, Lucinda Williams, desafia classificações desde meados dos anos 1970, e faz uso de uma atitude roqueira para poder circular por vários fronts musicais.

Já Rory Block, a terceira, também veterana, é a evidência definitiva de uma mulher branca pode se afirmar como artista de blues -- certamente o universo musical mais misógino de toda a música americana.

Juntas elas revelam, cada uma à sua maneira, o que a música americana tem de melhor: suas raízes, sua pluralidade e sua originalidade -- olha aí, de novo o número três...


Emmylou Harris surgiu na cena musical pelas mãos de Gram Parsons, o lendário comandante da banda seminal de country-rock The Flying Burrito Brothers. Assim que ele embarcou em carreira solo em 1971 num projeto neotradicionalista muito ambicioso, montou uma banda country com músicos do primeiro time de Nashville, que previa uma cantora para eventuais uníssonos e duetos. Pois a cantora escolhida foi justamente Emmylou, com quem Parsons havia trabalhado nos últimos shows que fez com os Burritos. Nascida em Birmingham, Alabama, mas criada em Washington DC e Nova York, ela viu ali sua chance de brincar de June Carter e Patsy Cline. Não tinha nada a perder. Estava com 23 anos, um filho pequeno na bagagem e recém chegada de Nashville, deixando para trás um LP gravado (em 1968) mas nunca lançado e um casamento mal sucedido.

Com a morte prematura de Parsons em 1973 depois de 2 discos hoje considerados clássicos – “GP” e “Grievous Angel” --, Emmylou Harris herdou sua banda, seu projeto musical e seu repertório inédito, além de um contrato na mesma Warner Bros Records onde Parsons gravava. E então, ela estreou solo em “Angel In The Morning” (1975), desfilando sua voz cristalina e sem excessos num LP magnífico que fazia a ponte entre a herança musical de Nashville e o country rock da Costa Oeste. Em pouco tempo, Emmylou já fazia parte da nova elite de cantoras americanas, ao lado de suas amigas Linda Ronstadt e Bonnie Raitt. Os duetos vocais magníficos que fez ao lado de Bob Dylan no LP “Desire” e a gravação irresistível de “Evangeline”, com The Band, incluída no documentário“The Last Waltz” de Martin Scorsese, colaboraram ainda mais para ampliar ainda mais seu prestígio e, de quebra, seu público.


Ao longo dos anos 1980, no entanto, Emmylou viu sua carreira pouco a pouco perder o foco e seus LPs ficarem cada vez mais formulaicos e desinteressantes. Então, começou a ensaiar uma mudança radical. Aconselhada pelo amigo Neil Young, uniu forças a uma banda de rock and roll que a ajudou nessa virada, e, sob a tutela do produtor Daniel Lanois, renasceu musicalmente na Reprise Records em discos sombrios e estranhamente orgânicos como “Wrecking Ball” e “Spyboy”, onde ela se afirma também como uma compositora de mão cheia – algo inusitado para seus admiradores de longa data. Daí em diante, o interesse em seu trabalho ressurgiu de forma intensa, e ela renasceu artisticamente em performances ao vivo contundentes, sempre com roupas de couro sobre seu corpo esguio e ostentando os mesmos cabelos longos de sempre, só que agora totalmente brancos.


A Emmylou Harris que surge nesse novo Lp, “Hard Bargain”, é a soma de todas as personas musicais que ela criou ao longo de mais de 40 anos de carreira, resgatando o tom delicado e sereno de seu trabalho nos anos 70, mas também incorporando a atitude roqueira de seu trabalho recente. Todas as canções – todas ótimas -- são de sua autoria. A faixa de abertura, “The Road”, é uma homenagem a Gram Parsons e a tudo o que Emmylou aprendeu e vivenciou com ele. A sombria “My Name Is Emmett Till” é uma homenagem inusitada a um velho personagem de Bob Dylan. Já “Dear Kate” é uma ode a sua amiga Kate McGarrigle – mãe de Rufus Wainwright --, falecida ano passado depois de uma longa batalha contra um câncer. A única canção no disco que não é de autoria dela foi composta especialmente para ela. Trata-se da faixa título, uma balada pop lindíssima de Ron Sexsmith que funciona como uma espécie de retrospectiva de vida de uma mulher irriquieta e idealista, que nunca fechou para balanço ao longo de mais de 40 anos de carreira.. Emmylou Harris é – sempre foi -- uma artista notável, do tipo que prefere ousar e quebrar a cara vez ou outra do que optar pelo atoleiro confortável que muitos chamam de “maturidade artística”. Aliás, o título deste LP define impecavelmente a postura de vida e o “state of the art” dessa mulher admirável.


Lucinda Williams é quase tão veterana quanto Emmylou Harris, mas levou mais tempo para aparecer perante o grande público. Nascida em 1953 em Lake Charles, Louisiana, ela é filha de Miller Williams, professor de literatura e poeta de prestígio, com vários livros publicados e passagens por Universidades em todos os cantos dos Estados Unidos, além de Santiago, Chile, e Cidade do México. Lucinda herdou do pai a paixão por country music e blues, e também o espírito aventureiro e o diletantismo artístico que, de certa forma, colaboraram muito para que ela demorasse a achar um foco específico para seu trabalho como cantora e compositora. Perambulou anos e anos entre New Orleans, Austin, Los Angeles e Nova York como artista folk e só foi conseguir uma chance para gravar um LP através do selo Folkways no final dos anos 1970. Mesmo assim, o blend de blues, country e folk de seus trabalhos iniciais não serviu para abrir portas em nenhuma dessas cenas musicais bem distintas, e Lucinda passou a ser vista como uma artista inclassificável pela Indústria Fonográfica -- reconhecidamente avessa a tudo que não soasse como “Thriller”, de Michael Jackson, nos famigerados anos 1980.

Mas Lucinda insistiu, e lançou seu LP seguinte pelo selo inglês Rough Trade, que operava basicamente com bandas independentes, como The Smiths e outras. Com isso, conseguiu chamar a atenção de quem estava atento às novas manifestações musicais vindas do outro lado do Atlântico. E então, suas canções começaram a ser descobertas e gravadas por gente como Mary Chapin Carpenter, Linda Ronstadt e, claro, Emmylou Harris. Tudo isso abriu finalmente as portas de um selo americano, Elektra Records, onde Lucinda gravou o excelente “Sweet Old World” (1993), novamente mesclando diversos gêneros musicais. Mas, dessa vez, deu a sorte de emplacar um single nas paradas country: a irresistível “Passionate Kisses”.


Foi quando sua carreira finalmente começou a decolar. Seu trabalho seguinte, “Car Wheels On A Gravel Road”, resultado de um parto complicadíssimo envolvendo confusões com vários produtores – entre eles, Rick Rubin e Roy Bittan – e duas gravadoras em litígio, acabou vendo a luz do dia pela Mercury Records, e finalmente trouxe o reconhecimento do grande público ao trabalho de Lucinda Williams – que passou a ser vista como um Townes Van Zant ou um Steve Earle de saias, ou coisa que o valha.

De lá para cá, a carreira de Lucinda Williams sedimentou sem problemas. Apesar de continuar insistindo em desafiar classificações, ela foi muito bem recebida no selo Lost Highway, especializado em artistas country desalinhados do mainstream de Nashville. Passou a gravar de 2 em 2 anos, sempre alternando canções de amor e desespero com números de rock and roll fulminantes. Sua popularidade e seu prestígio não param de crescer desde então.


“Blessed”, seu trabalho mais recente, foi produzido por Don Was e conta com participações muito especiais de Elvis Costello e Matthew Sweet em várias faixas. Se por um lado traz uma sonoridade mais uniforme, por outro expande o alcance de Lucinda como cantora e compositora em números extremamente inusitados. Como ‘Soldier´s Song”, escrita sob o ponto de vista de uma combatente na Guerra do Iraque -- quase tão contundente quanto “Powderfinger” de Neil Young. Ou ainda “Seeing Black”, em que tenta mergulhar no calvário pessoal do amigo Vic Chesnutt, falecido no ano passado. Alem do mais, como resistir à doce melancolia de números como “Sweet Love”, “I Don´t Know How You´re Living” e “Kiss Like Your Kiss”? Aposto que nem Bob Dylan conseguira.

Lucinda Williams tem fama de perfeccionista, e não raro se desentende com os produtores de seus discos. Consta que dessa vez ela só aceitou o padrão sonoro mais uniforme proposto por Don Was para “Blessed” depois que sua gravadora autorizou que a primeira edição viesse acompanhada de um bonus disc com as demos originais das 12 canções, gravadas de forma descompromissada na cozinha de sua casa. Ouvir esses demos apenas com acompanhamento de um violão equivale a ser convidado a invadir sua intimidade, como se estivéssemos revendo um filme através de seus storyboards. Bobagem discutir com Lucinda Williams. A moça sabe muito bem o que faz, e onde quer chegar.



Outra que sempre soube o que faz e onde queria chegar é Aurora “Rory” Block, novaiorquina de Greenwich Village nascida em 1949 que começou a tocar guitarra aos 10 anos de idade incentivada pelos pais -- que sempre a levavam para ver todo tipo de música que o bairro abriga tradicionalmente desde sempre. Seu pai era dono de uma sapataria e violinista de uma banda folk chamada Elektra String Band Project, da qual Rory fez parte, e com a qual gravou um disco aos 12 anos. Teve aulas com Reverend Gary Davis e outros bluesmen que viviam em Nova York nos anos 1960, e aos 15 anos, emancipada pelos pais, caiu na estrada para conhecer a música do sul dos Estados Unidos in loco. Foi quando cruzou o caminho de Skip James e Mississipi John Hurt, suas duas maiores influências musicais na juventude. O caso é que, depois de gravar seu disco solo de estréia -- aos 16 anos -- na Chrysalis Records, em Berkeley, Califórnia, Rory nunca mais sossegou em sua busca pelas raízes americanas. Curiosamente, só foi descoberta pelo grande público – da noite para o dia, a velha piada pronta de sempre – no início dos anos 1990, quando já tinha 10 Lps gravados e 20 anos de carreira nas costas.

Se engana quem pensa que, por tocar blues acústico, Rory Block é uma neo-tradicionalista do gênero. Não é bem assim. Rory segue tradições musicais mais por prazer do que por obrigação. De blueswoman xiita ela não tem absolutamente nada. Seus LPs recentes refletem bem isso. Apesar de “The Lady & Mr. Johnson”, seu songbook de Robert Johnson gravado em 2006, ser extremamente reverente ao approach musical original das gravações de Johnson, o mesmo não pde ser dito de “Blues Walkin´ Down Like A Man”, seu tributo a Son House de 2008, e do recém-lançado “Shake ‘Em On Down”, todo dedicado a Mississipi Fred McDowell. Na medida em que conviveu bastante com os dois em seus anos finais, Rory sentiu-se à vontade para brincar com seus repertórios e reinventá-los à sua maneira, sem a reverência que demonstrou quando abordou o repertório de Robert Johnson.


Em “Shake ‘Em On Down”, Rory introduz o songbook de Mississipi Fred McDowell com duas canções próprias onde conta histórias que viveu ao lado dele, chamadas “Steady Freddie” e “Mississipi Man”. Foge de números batidos como “You Gotta Move” e “I Do Not Play No Rock And Roll” e privilegia canções menos conhecidas de seu repertório, como “The Breadline” e “What´s The Matter Now”. Impossivel não se emocionar com o desconcertamente coral afro que Rory introduz em “Ancestral Home” e também na faixa título. E o que dizer das novas roupagens que ela deu para clássicos como “Kokomo Blues” e “Write Me A Few Of Your Lines”?

Além de tudo isso, tem as revisões que ela fez em “Good Morning Little Schoolgirl” e “The Girl I'm Lovin'”, eliminando das letras insinuações de pedofilia ao trocar girl por boy, para assim amenizar o alto teor sexual das versões originais, compostas numa época em que não havia nada de errado em um homem maduro e bem estabelecido na vida se encantar por jovens estudantes uniformizadas. Ora, quem nunca flertou com esse fetiche clássico, que atire a primeira pedra.

A intenção de Rory com essa intervenção foi nobre: poupar a memória de seu mentor musical de controvérsias inúteis, conduzindo as alterações nas letras originais das canções de forma carinhosa e criativa, para com isso garantir que a obra de Mississipi Fred McDowell perdure com as novas gerações e possa ser cantada por mulheres sem constrangimentos. Vale a pena conhecer essa homenagem ao legado musical desse um bluesman gigantesco, e o esforço impressionante de Rory Block em reinventá-lo para deixá-lo mais vivo de que nunca.

E tenham a certeza que essa sua grandeza de espírito se aplica igualmente a suas companheiras de geração Emmylou Harris e Lucinda Williams.

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EMMYLOU HARRIS
DISCOGRAFIA, FOTOS E ENTREVISTAS
http://altoeclaro.blogspot.com/2011/05/senhoras-e-senhores-emmylou-harris.html

LUCINDA WILLIAMS
DISCOGRAFIA, FOTOS E ENTREVISTAS
http://altoeclaro.blogspot.com/2011/05/senhoras-e-senhores-lucinda-williams.html

RORY BLOCK
DISCOGRAFIA, FOTOS E ENTREVISTAS

http://altoeclaro.blogspot.com/2011/05/senhoras-e-senhores-rory-block.html

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HIGHLIGHTS
EMMYLOU HARRIS - "Hard Bargain"







HIGHLIGHTS

LUCINDA WILLIAMS - "Blessed"







HIGHLIGHTS

RORY BLOCK - "Shake ‘Em On Down"




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