sexta-feira, maio 06, 2011

PETER CASE E STEVE EARLE: OUTSIDERS, GRAÇAS A DEUS! (por Chico Marques)



Até meados dos anos 60, o mundo da música funcionava assim: cantor cantava e compositor compunha.

Os compositores trabalhavam nos escritórios das editoras que publicavam suas canções. Davam duro para abastecer os cantores contratados pelas gravadoras. Ao contrário de Nashville ou Los Angeles, onde compositores trabalham em casa, havia em Nova York um lugar mítico chamado Tin Pan Alley, próximo ao Brill Building da CBS, que reunia a maioria desses escritórios – que, por sinal, desapareceram quase por completo no final dos anos 1960, quando compositores dos mais diversos gêneros se rebelaram e decidiram que podiam muito bem cantar e gravar suas próprias canções. E foi aí que todo mundo descobriu como eram as caras de John Prine, Kris Kristofferson, Carole King, Barry Mann, James Taylor, Jackson Browne, Warren Zevon e tantos outros que sempre tiveram seus nomes escritos em letras bem pequenas nos discos, logo abaixo dos títulos das canções.

Com o passar do tempo, as novas gerações de cantores-compositores perceberam que tinham uma condição privilegiada dentro da Indústria Fonográfica -- que sempre precisava deles para eventualmente abastecer um ou outro artista recém-inventado na sala de algum executivo. Para muitos jovens cantores-compositores que participavam de bandas, essa era a garantia de que, caso a banda falhasse e fosse dispensada da gravadora, haveria a chance de permanecer contratado como artista solo.


É o caso de Peter Case, e também o de Steve Earle, dois dos cantores-compositores mais admiráveis da cena americana dos últimos 25 anos. Apesar de musicalmente muito diferentes, possuem muito mais em comum do que aparentam. Ambos nasceram em 1954. Ambos são meio folk singers, meio rock and rollers. Ambos estrearam solo em 1986 com LPs sensacionais que constam da maioria das listas dos melhores da década de 1980 nos Estados Unidos. Ambos foram alvo de grandes apostas da parte de Indústria Fonográfica e acabaram descartados por ela -- para depois ressurgir na cena alternativa, onde permanecem firmes e fortes até hoje. Ambos são cristãos fervorosos. E, para completar o quadro, são também romancistas e possuem vários livros publicados.


Peter Case sabia desde cedo que queria ser cantor e compositor. Teve várias bandas nas escolas que frequentou, em Buffalo, New York. e sempre que podia dava um jeito de subir com seu violão nos palcos dos clubes folk da cidade. Assim que se emancipou, mudou de mala e cuia para a Califórnia, onde virou músico itinerante, circulando entre San Francisco e San Diego e participando de várias bandas. Uma das canções que gravou com o grupo The Nerves, “Hanging On the Telephone”, recebeu um cover do Blondie, e estourou nas paradas americanas. Infelizmente, The Nerves implodiu antes de poder tirar proveito do feito, mas Case conseguiu capitalizar isso a favor de sua banda seguinte, The Plimsouls, que rapidamente se transformou num dos atos mais disputados na cena de Los Angeles do início dos anos 1980 -- e acabou abençoado pelo produtor Richard Perry em dois ótimos LPs de estúdio e um ao vivo melhor ainda.


Sua carreira solo conseguiu superar ainda mais essas espectativas iniciais, numa seqüência de álbuns brilhantes e sempre inusitados, primeiro para a Geffen e depois para a independente Vanguard, onde deixou claro para todos que era um dos melhores compositores americanos, assim como um excelente cantor, um bom guitarrista e um tremendo gaitista. Gosta de definir sua música como “folk tribal”. Entre seus fãs confessos, nada menos que Allen Ginsberg, T-Bone Burnett e Bruce Springsteen.


Seu novo trabalho, “Wig!”, é surpreendente. É o primeiro LP que ele grava depois de uma delicadíssima cirurgia do coração, onde tinha poucas chances de sobreviver. Quem esperava música tranqüila e sossegada, quebrou a cara. Case voltou mais roqueiro e mais elétrico do que nunca, em blues e rocks bem sujos, sem marcação de contrabaixo, acompanhado apenas pelo guitarrista Ron Franklin e pelo baterista D J Bonebreak, do lendário grupo X. O resultado final é brilhante, cru ao extremo, e muito divertido – tem até uma releitura bem palhaça para “Old Blue Car”, single de sucesso de seu primeiro ábum solo, gravado 25 anos atrás. Totalmente gravado ao vivo em estúdio, “Wig!” é cativante da primeira à última faixa, e possui uma urgência típica de quem andou brigando pela vida e quase a viu escapar pelas suas mãos de bobeira. Uma aula exemplar de rock and roll, blues, jogo de cintura, bom humor e tudo mais que vocês quiserem...


Steve Earle também sabia desde cedo que queria ser cantor e compositor. Nascido em Vancouver, mas criado em San Antonio, no Texas, era fascinado pelo trabalho de Townes Van Zant, e iniciou sua carreira aos 16 anos nos clubes de Houston. A conselho do próprio Townes, que acabou virando seu amigo, Steve foi tentar a sorte em Nashville, e teve boa acolhida na banda de Guy Clark, tanto como guitarrista quanto como compositor. Estreou solo com “Guitar Town”, um disco de rockabilly que foi execrado pela comunidade musical de Nashville mas ganhou fãs incondicionais na cena roqueira americana, na época entusiasmada com artistas country desalinhados como Dwight Yoakam e Lyle Lovett. Oscilou anos e anos entre essas duas cenas musicais. Casou uma dezena de vezes, foi em cana outra dezena de vezes – por posse de heroína, por bater em seus próprios seguranças e por não pagar várias pensões alimentícias --, mas desde 1995 tomou vergonha na cara. Largou as drogas, casou (e sossegou) com a cantora Allison Moorer, e está totalmente dedicado à sua carreira artística, gravando um disco a cada dois anos, escrevendo romances e até trabalhando como ator na premiada série “Treme”, da HBO.


Seu novo trabalho, ‘I´ll Never Get Out Of This World Alive”, é uma homenagem a Hank Williams, que costumava dizer essa frase. Reúne a sua produção dos últimos 4 anos, incluindo duas canções que deu para Joan Baez gravar – “God Is God” e “I Am A Wanderer” – e também “This City”, sobre New Orleans, tema da série “Treme”, com um belo arranjo de metais de Allen Toussaint. Aqui, mais uma vez, Steve une forças ao amigo e produtor T-Bone Burnett, que busca as texturas musicais ideais para a alma texana dessas novas canções – todas compostas em Nova York, onde vive atualmente, bem longe do Estado da Estrela Solitária, e talvez por isso mesmo mais texanas do que nunca. Seu belo dueto com Allison Moorer em “Heaven Or Hell” é simplesmente estupendo, uma das baladas country mais desconcertantes já compostas. Enfim, ‘I´ll Never Get Out Of This World Alive” é um LP tão superlativo e fundamental quanto os anteriores “Transcendental Blues” e “I Feel Alright”. Mesmo quem não gosta de country music não vai conseguir torcer o nariz para mais essa pequena obra prima de Steve Earle.


Cantores-compositores como Steve Earle e Peter Case são mais que menestréis modernos. Eles são o Sal da Terra de qualquer modalidade de Música Popular. Os gêneros e subgêneros musicais passam. Eles permanecem. Sempre possuem a cara do seu tempo. E, vez ou outra, deixam legados que as gerações seguintes não cansam de redescobrir.

Agora, privilégio mesmo é ser contemporâneo desses caras...



HIGHLIGHTS
PETER CASE - "WIG!"








HIGHLIGHTS
STEVE EARLE - "I´LL NEVER GET OUT OF THIS WORLD ALIVE"





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